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Sobre Sérgio Niza

Na retrospetiva que, por vezes, realizamos sobre o nosso contributo para a PÁGINA, demos conta que, pelo menos, os três últimos artigos que subscrevemos nesta revista tiveram como objeto de reflexão Nuno Crato e, de um modo geral, o cratês como ideologia pedagógica.
Sendo necessário promover a denúncia de uma leitura da Escola que, por se ter transformado num projeto de poder, deixou de poder acalentar as ilusões que se andavam por aí a semear, há que reconhecer, no entanto, que nós, autora e autor de tais textos, corremos o risco de ficar aprisionados nessa mesma recusa, parecendo, por isso, que mais do que contribuir para a afirmação de uma alternativa a esse projeto, nos focalizamos sobretudo na denúncia do mesmo e no modo como este impede a Escola Pública de se construir como uma instância educativa coerente com os valores de uma sociedade que se afirma como democrática.
É tendo como pano de fundo uma tal preocupação que se poderá compreender melhor o conjunto de razões que explicam o tema deste artigo – um texto sobre Sérgio Niza, justamente um dos entrevistados da última edição da PÁGINA, cujas palavras, na entrevista que o António Baldaia tão bem soube conduzir, constituem um excelente pretexto para transitarmos do já referido registo de denúncia para o desejável registo de afirmação.
Sérgio Niza (S.N.), uma pessoa que conhecemos e admiramos, é, tal como António Nóvoa o caracteriza num livro recente [Escritos sobre Educação: Sérgio Niza], “a presença mais constante, mais coerente e inspiradora da pedagogia portuguesa nos últimos cinquenta anos”.
Uma presença que, tal como pode ser comprovado pela leitura da entrevista referida, exprime a existência de um homem que assume os seus compromissos políticos e pedagógicos de forma inteligente, informada, exigente, culta e congruente.
É este homem que, nessa entrevista, nos incita à mobilização “para contrariar esta contrarreforma ideológica, avançando com outras visões e práticas disponíveis”.
Visões e práticas que nos obrigam a reconhecer, contudo, que “no plano de como quer o ensino da Matemática ou do Português, o ministro Crato é muito parecido com muitos professores”, mesmo que – acrescentamos nós – uma parte significativa destes professores, hoje, o possam contestar. Neste sentido, importa discutir, então, o sentido de uma tal contestação.
Se se circunscrever, apenas, a um movimento de natureza corporativa, sem estabelecer as conexões entre a visão pedagógica que o cratês proclama e as medidas de política educativa que Nuno Crato promove, parece-nos que estamos perante um movimento que, a prazo, se mostrará incapaz de responder aos desafios e problemas da Escola Pública portuguesa. É que, tal como S.N. nos recorda, para que uma escola seja democrática não basta “que os professores fossem supostamente democratas”.
Isso, na sua opinião, não seria suficiente “para que os meninos se formassem para a vida democrática”.
Em suma, uma escola capaz de responder aos desafios das sociedades contemporâneas, suportada em princípios e valores que fundam o projeto de uma sociedade que não se assuma, apenas, em função de uma visão minimalista de democracia, “tem de ser um lugar de iniciação ao mundo da cultura, à vida social, e não um simulacro”. Um lugar que, por isso, obriga S.N. a perguntar “quem é que ensina: são os professores ou são os manuais e os materiais escolares?”.
Trata-se de uma questão incontornável nas escolas em que vivemos, sobretudo quando se reconhece o risco destas práticas se tornarem reféns da sua subordinação aos manuais e materiais escolares. É que tais “materiais, feitos exclusivamente para a Escola, cada vez mais caros, e os manuais de todos os feitios, foram a pior coisa que nos aconteceu, porque nos afasta do conhecimento autêntico, das suas fontes e sobretudo do caminho para o alcançar. Quer dizer, dos processos de apropriação da herança cultural e da sua produção atualizada”.
Como se constata, não é a afirmação da Escola como um espaço de demissão cultural o que S.N. defende. Pelo contrário, é justamente contra essa demissão que ele se bate, nomeadamente quando defende que “está quase tudo por fazer (…): é só não escolarizar, não passar as coisas pelas velhas didáticas; é pôr a cultura nas mãos das crianças, compartilhando-a com os adultos, e pormo-nos a escrever, a ler, a aprender como se faz; e não gastar tempo sem fim e rios de dinheiro com uma Escola que não serve a cultura nem o desenvolvimento humano”.
É um desafio cuja ambição e dificuldades S.N. reconhece, no momento em que afirma que “leva muitos anos a aprender a fazer coisas diferentes no trabalho das escolas”. Um desafio que explica o seu investimento na criação e afirmação do Movimento da Escola Moderna Portuguesa (MEM) como um espaço onde educadores, professores, e até outros profissionais da educação, participam no desenvolvimento de projetos de autoformação cooperada, em função dos quais assumem as suas responsabilidades cívicas e pedagógicas na construção de uma Escola que possa satisfazer “o direito à aprendizagem escolar com êxito para todos”.
Na entrevista à PÁGINA, não podemos deixar de valorizar o modo rigoroso e refletido como o Sérgio nos entreabre as portas através das quais vislumbramos as contradições das “escolas novas do Movimento de Educação Nova”. Apreciamos a qualidade do discurso sobre Freinet e o Movimento da Escola Moderna, bem como o posicionamento sério e frontal que o Sérgio assume face a um e face a outro.
De igual modo, importa registar o testemunho histórico valioso sobre a vida num tempo que o salazarismo moldou, onde, apesar da liberdade de pensar e agir serem objeto de repressão, foi sendo possível, com maiores ou menores dificuldades, mas com inteligência e argúcia, encontrar soluções que permitiram a construção de alguns cantos e momentos de afirmação de outros modos de pensar, de ser, de fazer e de estar na Escola. A lucidez na análise da relação entre os movimentos da escola moderna e os cantos de sereia do poder instituído constitui, também e do nosso ponto de vista, outro aspeto marcante da entrevista.
Admitimos, no entanto, que aquilo que mais nos tocou no trabalho jornalístico em causa, influenciados certamente pelo momento em que vivemos, foi a reflexão oferecida pelo Sérgio a propósito das condições e implicações político-pedagógicas da construção de uma Escola democrática e das razões subjacentes à recusa de qualquer tipo de proselitismo pedagógico por parte dos educadores e dos professores do MEM.
Tanto um como outro dos assuntos referidos remetem-nos para a afirmação das responsabilidades de cada um de nós na construção do projeto de uma outra Escola, afirmando as condições que são necessárias para que tal iniciativa seja bem sucedida, nomeadamente aquelas que têm a ver com o facto de a mudança ter “de emergir como um desejo ou uma afirmação de cidadania”. Daí que S.N. afirme, referindo-se a todas e a todos que se encontram no seio do MEM, que “aquilo que cuidamos entre nós é de não sermos ostensivos; ir trabalhando discretamente com os alunos e compreender que os outros não têm que trabalhar como nós”. Tal como o próprio reconhece “não podemos dizer que não queremos influenciar os outros, porque seria mentir. Seria não acreditarmos no que estamos a fazer!”
O problema é de natureza diferente. Tem a ver, por um lado, com o reconhecimento “da complexidade da vida social e dos caminhos da política” e, por outro, com a necessidade de se reconhecer que um projeto de intervenção educacional, como o que no MEM se propõe, obriga a que compreendamos que o trabalho de transformação pedagógica nas escolas é um contributo inestimável no âmbito do trabalho de transformação política “do mundo que nos coube viver”.

Ariana Cosme e Rui Trindade


  
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Edição:

Edição N.º 199, série II
Inverno 2012

Autoria:

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