Jarbas dos Santos Vieira é professor adjunto da Universidade Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, onde lecciona nos níveis de graduação e de mestrado e doutoramento. Graduado em Pedagogia pela Universidade Federal de Pelotas, Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Pós-Doutorado na Universidade de Barcelona, em 2003, tem experiência na área de Educação, com ênfase em áreas como Teoria Curricular e Trabalho Docente, trabalhando principalmente os seguintes temas: currículo, educação, identidade, políticas educativas e processo de trabalho docente. Esteve presente como conferencista no encontro "A Educação Pública em Debate", que se realizou no final de Maio na Universidade do Minho, onde apresentou a comunicação "Política educativa e curricular: a mercantilização do ensino público no Brasil". Partindo deste tema, entrevistamos este especialista através de correio electrónico e colocamos-lhe uma série de questões através das quais pretendemos contribuir para desconstruir o actual discurso neoliberal sobre a educação.
Jarbas dos Santos Vieira desconstrói actual discurso neoliberal sobre a educação: "Caminhamos a passos largos para a hegemonia de uma lógica mercantil e padronizada da educação"
O processo de mercantilização do ensino público do Brasil ? apesar das suas próprias especificidades ? pode ser considerado um exemplo daquilo que se está a passar um pouco por todo o mundo na área da educação?
Acredito que sim, mas gostaria de pontuar algo sobre o Brasil neste aspecto. No Brasil este processo de mercantilização é posterior às investidas neoliberais sobre a América Latina, que começaram na década de 70 no Chile de Pinochet. Foi apenas no período de redemocratização do Brasil, depois de 25 longos anos de ditadura militar, que as políticas neoliberais começaram a ser aplicadas ao Brasil. Em 1985 foi nomeado pelo congresso nacional um primeiro presidente civil. Era um deputado da base governista, José Sarnei, que sempre apoiou os governos militares. Assim como os militares, Sarnei era partidário do desenvolvimentismo, doutrina que, de uma forma ou de outra, mantinha a ideia de autonomia económica do país e de uma educação pública e gratuita - claro que sob a doutrina da segurança nacional imposta pelos militares. Mas nesta época começou a proliferação de discursos contra a presença do Estado em muitas dimensões da sociedade civil e na economia do país. Entretanto, foi no primeiro governo eleito através do voto directo ? Fernando Collor de Mello ?, que começou a ser praticada uma política claramente neoliberal, com a venda de empresas estatais e terciarização de vários serviços públicos, que colocava em risco as conquistas sociais em termos de ensino público e gratuito e de democratização da gestão das escolas e universidades. De toda forma, Collor de Mello e os governos que lhe seguiram ? Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso ? trataram de aprofundar uma política privatizadora para todas as áreas da sociedade e a educação não poderia estar fora desse processo. No actual governo Lula esperava-se uma alteração desta lógica privatizadora, mas não foi isso o que aconteceu. Embora se possa reconhecer que a educação vem recebendo, por parte do governo federal, um conjunto de acções que tentam atacar uma série de problemas relacionados com a escolarização brasileira, o seu escopo político está cada vez mais vinculado a concepções utilitaristas e pragmáticas da educação e do ensino. A concepção de educação que está a tornar-se prevalecente no Brasil é aquela que a vê como um negócio ? um negócio chamado educação. Nesse sentido, as políticas desenvolvidas desde 1989 vêm combinando a ideia de que a qualidade da educação somente pode ser obtida se as escolas e os sistemas de ensino adoptarem um modelo de gestão empresarial, balizadas pela instituição de avaliações padronizadas, o que garantirá tanto uma mesma orientação curricular, quanto didáctica. De qualquer maneira, o discurso prevalecente passa a ser aquele que defende a educação como serviço e não mais como um direito. Assim, caminhamos a passos largos para a hegemonia de uma lógica mercantil e padronizada da educação, talvez adiantando aquilo que, a nível europeu, vem sendo sinalizado pelas resoluções do Processo de Bolonha.
Quais são as principais características deste processo de mercantilização?
Vistasem conjunto, as propostas de política educativa formuladas no Brasil e em muitos países ocidentais partilham de um imediatismo vinculado com as necessidades do mercado. Por isso, as competências estão no centro dessa política educativa e das reformas curriculares, constituindo-se num dos focos centrais da formação de novos docentes. Em termos de currículo, o foco está na eficiência prática e no acumulo de capital humano, traduzido em destrezas e habilidades para a empregabilidade. Enfim, uma exacerbação do pragmatismo educativo ou de uma pedagogia das competências. A par com esta primeira característica ? formação voltada para as competências ?, verifica-se a ideia de domínio dos saberes docentes originados e construídos nas ditas experiências práticas na sala de aula, e isso vem substituindo a ideia de uma formação mais teórica, mais reflexiva. Os docentes brasileiros, por exemplo, estão sendo empurrados para uma compulsória e interminável actualização cujas balizas se reduzem a sugestões de condução da sala de aula e inovações didáctico-metodológicas, desconsiderando as especificidades de cada rede e de cada local. O nosso grupo de pesquisa tem compreendido que tal política, entre outras características, vem produzindo também um profundo sentimento de falta no professorado, alimentando a sua culpa pelo permanente desfasamento em relação aquilo que as políticas lhes vêm exigindo. Os docentes, face a essas novas exigências, são subjectivados por uma lógica assente na culpabilização e responsabilização crescente frente ao sucesso ou fracasso dos seus alunos e alunas. Talvez essa seja uma das características mais perversas desse processo, alimentado por constantes avaliações externas padronizadas que ignoram as diferenças que existem entre lugares e redes de ensino. Talvez uma experiência que os docentes europeus comecem a viver caso vinguem algumas ideias de padronização defendidas no Processo de Bolonha.
Sob que discurso a ideologia neoliberal legitima estas práticas?
Creio que a ideologia neoliberal tem conseguido legitimar-se ao interpelar o professorado (e a sociedade de forma mais ampla) combinando dois discursos: um que diaboliza o Estado e outro que apela à ideia de profissionalismo como missão "quase-sagrada". No primeiro caso existe uma compreensão de que o Estado perdeu todas as suas atribuições e que apenas o mercado é gerador de qualidade na educação. Assim, vende-se a ideia de que a concorrência ideal deve resultar da competição entre os melhores. A multiplicação de formas de controlo é aquilo que está a definir aquilo que muitos governos têm chamado política educativa, mormente com acréscimo de potentes mecanismos de avaliação externa sobre o desempenho dos alunos e, principalmente, do professorado. O que está em jogo nessas políticas é a imposição de saberes que atendam a necessidades específicas do capitalismo globalitário, o que acaba produzindo novas formas de controlo sobre as escolas, especialmente via currículo ? o currículo como instrumento de gestão da produção educacional e dos seus clientes. Esse discurso ? seguidor das teses de diabolização do Estado e da beatificação do mercado ? ganha eco e corpo em vários sectores da sociedade, em particular aqueles ligados à classe média e ao empresariado, que partilham a ideia de que o Estado é perdulário e oneroso para cada um dos habitantes do país e para o próprio desenvolvimento da nação, seja lá o que isso signifique. Esse discurso precisa ainda combinar-se com a ideia de profissionalismo do professorado. Assim, as políticas neoliberais têm promovido um conjunto de acções cujo efeito é convencer o professorado de que o aumento da intensidade de trabalho é sinónimo de profissionalismo, e isso sem contrapartida salarial, apenas defendendo a ideia de competência, responsabilidade e compromisso do professor pela sua profissão, o que significa colocar o professorado no centro das causas de sucesso e/ou fracasso dos seus alunos, independentemente das condições sociais que ambos ? docentes e discentes ? vivem, e independentemente das condições de trabalho que experimentam. A ideia de dedicação é vendida ao professorado como sinónimo de profissionalismo, um conceito ou termo que tende a combinar-se ou a exigir dos mestres uma atitude pastoral, vinculada à velha ideia de "dom" natural para o exercício do magistério. Acho que aí reside a eficácia e eficiência dessa política: interpelar o professorado como uma categoria de "profissionais-pastores", que devem comprometer-se com o destino do rebanho fazendo de tudo para levá-los às melhores pastagens (postos no mercado de trabalho); e isso tem promovido mais horas de um trabalho cada vez mais mecânico; cada vez mais dependente de materiais didácticos produzidos por editoras e sob a orientação de dirigentes e intelectuais conservadores, em geral colocados em ministérios, secretarias e instituições financeiras.
Que consequências podem advir para os sistemas educativos dos países que se encontram sob este processo, principalmente aqueles que tradicionalmente sempre se basearam numa filosofia pública de ensino?
A grande consequência é a padronização dos sistemas de ensino, atingindo fortemente nossas diferenças culturais e precarizando o trabalho docente. A padronização dos processos de ensino pode contribuir para transformar o mundo numa grande Disneylândia e, no caso do professorado, torná-lo facilmente substituível, seja por instrutores, como já fazem algumas empresas de "ensino", seja por modelos de educação à distância, seja pela efectiva eliminação da ideia do mestre.
Os professores estão a aperceber-se desta reviravolta? Que defesas têm e de que forma podem "contra-atacar"?
Acho que o professorado, pelo menos no caso brasileiro ? e falo aqui dos professores do ensino fundamental e médio, principalmente ? encontram-se atordoados frente a esta avalanche de ataques que a escola tem vindo a sofrer por parte de sectores como os media, confederações de empresários e do próprio governo federal, além de muitos governos estaduais. São discursos que, como disse acima, tem interpelado o professorado tentando convencê-lo das suas responsabilidades (e culpa) pelo futuro das novas gerações. Esse discurso "cola" no professorado pela sua tradição pastoral, pelo seu histórico compromisso salvacionista. Pagamos agora, sob o ardil do neoliberalismo, o preço por nos acharmos os condutores e salvadores do mundo civilizado. Esse discurso tem facilitado a colonização de espaços de decisão sobre a educação, como as nossas escolas e as nossas salas de aula. Face a isto, não tenho muito optimismo quanto à nossa capacidade, enquanto categoria, de algum "contra-ataque", a não ser pela nossa também histórica capacidade de não pôr em prática tudo aquilo que as políticas nos exigem. Seria isso um contra-ataque por inércia ou incompreensão do que significamos ou do que significam as actuais políticas educativas? Não tenho essa resposta, apenas sei que o contra-ataque não poderá vir somente dos professores e professoras. É preciso que as lideranças, seus grupos de discussão e pesquisa, procurem alianças de resistência ao neoliberalismo, que não são ? não estão sendo ? forjadas dentro das escolas.
Qual o papel que podem ter as estruturas sindicais? Ou elas estão simplesmente de "mãos atadas"?
Continuando o raciocínio anterior, creio que a procura de alianças deve ser feita com grupos sociais fora da escola, mas não estou seguro de que as actuais estruturas sindicais sejam um desses espaços, ou o mais importante a ser procurado. Pelo menos no caso brasileiro as estruturas sindicais estão bastante comprometidas com muitas dessas políticas de controlo; suas estruturas são muito semelhantes às estruturas burocráticas dos governos, e isso tem impedido o fluxo de pensamentos e acções da classe. Os sindicatos continuam vivendo no século XIX, no máximo com os modelos de apoio ou de oposição a Outubro de 1917 ? mas a revolução Russa não seria uma revolução típica do século XIX? ?, e isso pouco tem contribuído para um debate sobre as complexidades sociais e políticas que estamos a viver sob a globalização.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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