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Células, embriões e clonagem

O ovo fertilizado, a célula primordial que dá origem a todas as outras, bem como as células dos primeiros estádios do desenvolvimento embrionário, são ditas totipotentes. À medida que o processo de diferenciação avança, é bloqueado de forma permanente o acesso a determinada informação genética, conduzindo a célula e os seus descendentes por uma espécie de estrada sem regresso, que culmina nas células diferenciadas dos diversos tecidos, que perderam até a capacidade de proliferar.

As diferentes células de um organismo partilham a mesma informação genética que, ao exprimir-se de diferentes maneiras, origina uma diversidade de formas e funções absolutamente admirável. O mesmo pacote informativo permite, por exemplo, criar uma célula muscular, especializada na contracção muscular, ou um neurónio, especializado na recepção e condução de informação. Os manuais de histologia reconhecem a existência de mais de uma centena de tipos celulares morfologicamente distintos. Se cada uma destas células possui exactamente a mesma informação base, o que a impede de se transformar noutro tipo celular?
É evidente que o bom funcionamento do organismo não é compatível com um processo de diferenciação celular relaxado, em que, a qualquer momento, uma dada célula pudesse "arrepiar caminho". O que seria de nós se as células cardíacas de repente perdessem a capacidade de se contrair ritmicamente?
É assim que se entende a existência no organismo de vários patamares de diferenciação celular. O ovo fertilizado, a célula primordial que dá origem a todas as outras, bem como as células dos primeiros estádios do desenvolvimento embrionário, são ditas totipotentes. À medida que o processo de diferenciação avança, é bloqueado de forma permanente o acesso a determinada informação genética, conduzindo a célula e os seus descendentes por uma espécie de estrada sem regresso, que culmina nas células diferenciadas dos diversos tecidos, que perderam até a capacidade de proliferar. Num patamar intermédio, encontramos as células ditas estaminais, pluripotentes, que se multiplicam e têm a capacidade de dar origem a um número limitado de tipos celulares. Esta população de células, embora mais rara, existe no organismo adulto, sendo responsável pela reposição de algumas células que se perdem ao longo do tempo. Um exemplo são as células estaminais da medula óssea, que têm a capacidade de originar os vários tipos de células sanguíneas.
É fácil compreender o valor médico de poder controlar a diferenciação celular. É o facto de muitos tipos celulares não se poderem voltar a formar no estado adulto que faz com que certas lesões sejam irreparáveis. Conseguir introduzir no organismo novas células estaminais pode ter consequências extraordinárias. Por exemplo, as lesões da medula espinal, tão frequentes nos acidentes de viação, poderiam ser reparadas pela formação de novos neurónios que substituam os lesados. Da mesma forma poderíamos reparar os danos de um enfarte do miocárdio. Ou libertar os doentes com leucemia do fardo aleatório de encontrar um dador de medula compatível.
Durante muito tempo julgou-se que o processo de diferenciação celular fazia com que o acesso à informação contida no património genético da célula ficasse condicionado de maneira irreversível, de tal forma que uma célula diferenciada  nunca poderia modificar a sua actividade de forma a tornar-se pluripotente. A famosa experiência da clonagem da ovelha Dolly veio mostrar que isto não é verdade. Para fazer nascer a Dolly os investigadores introduziram o núcleo de uma célula da glândula mamária de uma ovelha adulta dentro de um óvulo a que previamente retiraram o núcleo. A estimulação deste óvulo conseguiu o que era até aí considerado impossível: reprogramar o acesso à informação genética contida no núcleo da célula adulta, de tal forma que esta se tornou totipotente e, após implantação num útero, levou a cabo um programa completo de desenvolvimento embrionário. A reprogramação para o estado de totipotência claramente não foi perfeita e este e outros animais gerados desta forma apresentam problemas de saúde significativos. O processo caracteriza-se por uma eficiência baixíssima e uma total falta de controlo da forma como a reprogramação acontece. É por esta razão que não se pode seriamente advogar a utilização desta via para gerar seres humanos. Mas não é isso que os investigadores que defendem a importância de se continuar a trabalhar nesta área pretendem. O que os investigadores vêem nesta técnica é a possibilidade de eliminar a programação que restringe a utilização da informação genética de uma célula diferenciada, gerando células indiferenciadas que podem ser utilizadas em inúmeras aplicações médicas. É disso que se fala quando se fala de clonagem terapêutica, e não da produção de embriões. No actual momento do conhecimento científico, a única forma prática (ainda assim extremamente pouco eficiente) de reprogramar células envolve o recurso a óvulos. Mas não é exagerado prever que, caso a investigação continue a bom ritmo, os avanços na compreensão dos mecanismos que regulam este processo permitirão, num futuro próximo, que a reprogramação seja obtida por via química, sem recurso a óvulos. Será então possível uma aplicação mais generalizada daquilo que muitos acreditam ter um potencial revolucionário - a terapia celular. Importa por isso desmistificar a clonagem terapêutica, para que se possa reflectir e decidir livremente sobre o valor deste tipo de investigação.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 138
Ano 13, Outubro 2004

Autoria:

Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular
Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular

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