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A sociedade americana vê a educação pública em estado de crise terminal.

Numa altura em que a escola pública aparece ameaçada por discursos que a dão como incapaz de responder às necessidades sociais e do mercado de trabalho, e em que o futuro da educação se conjuga cada vez mais com o verbo "privatizar", a PÁGINA entrevista Gustavo Fischman, professor na Universidade Estadual do Arizona, nos Estados Unidos, que considera que a escola pública corre um sério risco de sucumbir à influência dos grandes "lobbies"  comerciais no sector educativo. Fischman fala-nos, entre outros temas, da experiência americana e de como a comercialização do sistema educativo naquele país está a pôr em risco a democratização do acesso ao ensino, apontando o exemplo brasileiro como contraponto à crescente tentativa de apropriação daquilo que considera ser um "direito" e um "bem social".

Afirma num recente artigo, publicado no jornal A PÁGINA da educação, que "as escolas nos Estados Unidos estão cada vez mais abertas ao mercado através da influência das grandes empresas financeiras, industriais e comerciais". De que forma se tem produzido esse fenómeno?

O primeiro facto que devemos ter em conta é que este não é um fenómeno recente. Desde o princípio dos anos oitenta, em particular com a administração Reagan e através da publicação do relatório "A Nation at Risk" (Uma Nação em Risco), a sociedade americana vive com a sensação de que a educação pública está num estado de crise terminal. Essa noção de crise educativa recebe muita atenção dos meios de comunicação social americanos e levou alguns educadores e políticos a procurar soluções para os problemas das escolas públicas nos modelos de mercado.
Isto é patente nos temas que hoje dominam boa parte do debate educativo. Os temas mais importantes, e que estão a ser objecto de discussão na actual campanha eleitoral, referem-se às mudanças nos modelos de financiamento a partir do uso de créditos educativos (os chamados ?vouchers?) e a expansão do modelo das escolas ?charter? (financiamento público e administração privada). Os vouchers e as escolas charter, pelo menos pela forma como estão a ser implementadas actualmente, mostram a força do movimento favorável à privatização das escolas públicas.
A isto há que juntar o aumento continuado dos preços dos serviços educativos, as propostas de implementação de modelos de pagamento por índice de produtividade dos docentes, a venda de produtos e serviços educativos a escolas e universidades, e finalmente a proliferação de empresas comerciais no sector educativo e a utilização de espaços e material escolar como veículos publicitários, em particular no que se refere às diferentes formas de patrocínio por parte das grandes empresas.
Resumindo, hoje em dia as escolas públicas americanas enfrentam três problemas intimamente ligados e simultâneos: a comercialização da educação, a corporativização dos serviços educativos públicos e a restrição do acesso ao conhecimento.

Essa comercialização da escola pública está ligada ao processo de privatização das escolas?

Considero que o avanço da comercialização da educação tem de ser encarado com preocupação e analisado além da velha disputa entre ensino público e privado. Em princípio, é mais fácil as escolas privadas serem objecto de comercialização, mas nos Estados Unidos esse processo já está instalado nas escolas públicas e particularmente no sector universitário. Apesar disso, não podemos generalizar e falar do sector privado o do sector público como um todo.
Nos Estados Unidos há muitas universidades públicas e privadas de boa qualidade, trabalhando com muito rigor nas áreas de pesquisa e em relação com as comunidades locais e regionais, mas são cada vez em maior número as universidades privadas e cada vez mais algumas universidades públicas (habitualmente mais pequenas e com menor prestígio) que funcionam com critérios puramente comerciais e pouco pedagógicos. O grande paradoxo é que essas universidades públicas têm de se ?comercializar? para poder competir com as universidades privadas e nesse processo perdem muito do seu carácter de instituição pública.
A educação tem de ser encarada primeiro como um direito e como um bem social e, por isso, o Estado tem que garantir o direito de acesso e permanência de todos os cidadãos aos bens educativos. Se for transformada em actividade comercial, simples e pura, só para ganhar dinheiro, vai seguir as regras do mercado. E a lógica do mercado é que há vencedores e vencidos. Ou seja, algumas pessoas vão aprender e outras não. As que têm dinheiro vão pagar por serviços melhores e outras nem acesso a eles terão.
 

A gestão das escolas públicas através de empresas privadas poderá, no futuro, vir a constituir um excelente álibi para a desresponsabilização do poder político na área da educação. Isto, porque no caso de estas empresas terem êxito na administração das escolas os governos podem apresentá-las como um trunfo; caso contrário imputam-lhes a responsabilidade pelo fracasso e limitam-se a substituí-las por outras empresas do sector. Concorda com esta ideia?

Em princípio estou de acordo com a orientação geral da sua ideia, mas discordo com a noção implícita da possibilidade de as empresas comerciais poderem ter êxito e, portanto, substituírem o papel fundamental do Estado. As empresas comerciais apenas têm êxito se produzirem lucro, de outra forma não se podem considerar bem sucedidas.
Porém, sabemos que é possível ganhar dinheiro vendendo serviços educativos e sabemos também que para gerar lucro as escolas têm muito poucas estratégias: vender mais caro o mesmo serviço (o qual só é possível em situação de monopólio, que seria muito difícil de sustentar) ou baixar a despesa. Numa escola esta última opção implica despender menos dinheiro nos salários dos professores e professoras, aumentar o número de alunos por professor, substituir professores que cobram salários altos por outros que recebem menos ou professores com formação específica por pessoas que não têm formação para a docência.
O decréscimo da despesa é também possível a partir da selecção dos estudantes, procurando aqueles que são mais facilmente ?ensináveis? (implicam menores custos) ou aceitando apenas aqueles que podem pagar mais pelo serviço. Esta última estratégia implicaria uma grave deterioração dos já deficientes sistemas de ensino que contemplam as parcelas de população mais marginalizadas (minorias étnicas, raciais, alunos portadores de deficiências, etc.).
Enfim, não creio sequer em teoria que se possa pensar na total transferência dos serviços educativos para a esfera privada, a menos que estejamos dispostos a suportar o enorme preço em termos de acentuação e perpetuação da já gravíssima situação de iniquidade educativa e social.

Na prática, assiste-se à globalização da mercantilização da educação. Que outros países estão a pôr em prática este comércio e que consequências poderão advir da abertura aos mercados dos sistemas públicos de educação a médio/ longo prazo?

Este é um fenómeno muito desenvolvido nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Europa continental, Austrália e também na Ásia e América Latina. A globalização, particularmente com as grandes mudanças nos sectores económicos, produtivos e informáticos, o grande aumento do número de pessoas que hoje lutam para se manter dentro das escolas e universidades (não é por acaso que este período é denominado como ?época do conhecimento?), e, particularmente importante no caso de América Latina, as reformas económicas e políticas de redução da participação do Estado nos assuntos nacionais, inclusivamente na área de educação, põem cada vez mais em risco a escola pública.
Além destes factores, sabemos que em qualquer parte do mundo, inclusivamente nos Estados Unidos, o custo mais elevado de uma instituição diz respeito ao salário dos professores. Para expandir os serviços com qualidade, seria necessário criar mais escolas e formar mais docentes. A alternativa encontrada pelas escolas foi aumentar o número de alunos por sala de aula e gastar menos com os salários. Só que, dessa forma, a qualidade diminui.
Costuma dizer-se que no passado a educação era melhor do que actualmente. Apesar de tudo, acho que essa afirmação é difícil de sustentar quando sabemos que, actualmente, os professores desempenham um maior número de tarefas e têm de dar resposta a exigências sociais e educativas que antes não existiam. Isto acontece porque, em muitos lugares, a capacitação não é vista pela administração como parte do desenvolvimento profissional do docente. Quando as escolas se comercializam procuram sempre ter o menor custo possível e para fazer investimentos querem ter garantias de lucro, o que é muito difícil de prever no sector educativo.
É uma situação muito complexa, com muitos agentes económicos a concorrer no sector educativo para ganhar dinheiro. Nos Estados Unidos, 250 das companhias do grupo da Fortune 500 envolvem-se nesta corrida através da oferta de materiais educativos e existem grandes cadeias de televisão e rádio a querer vender ?pacotes educativos?, tornando muito difícil distinguir quem decide aquilo que os estudantes devem ou não aprender.

O risco da comercialização do ensino público

O poder das empresas comerciais no sector educativo transcende muitas vezes o poder das escolas e, em alguns casos, são os próprios Estados a favorecer a sua implementação. Que armas e estratégias têm os defensores da escola pública para enfrentá-las?

Em primeiro lugar aceitar o facto de que para compreender os efeitos destas mudanças e desenhar alternativas é necessário transcender os discursos meramente defensivos da ?escola pública? a partir de perspectivas nostálgicas. Não cair num olhar nostálgico implica defender a noção de público sem perder a capacidade de criticar e propor modificações no funcionamento das escolas públicas que, muitas vezes, discriminam as minorias, são autoritárias e de baixa qualidade.
Eu defendo o papel fundamental do Estado na garantia do acesso e permanência de todos os estudantes nas escolas e universidades. Mas essa garantia deve ser acompanhada por uma profunda melhoria no trabalho quotidiano dos profissionais da educação com o objectivo pedagógico e político de assegurar as características e o potencial democratizador da educação.
Entre muitas tarefas isto implica, nomeadamente, uma melhor preparação profissional, uma modificação do modelo 1 professor/30 alunos, uma relação mais estreita e fluida entre a produção e a partilha do conhecimento (nomeadamente entre universidades e centros de investigação e as escolas dos diferentes níveis de ensino) e, muito possivelmente, uma modificação das condições de ensino e aprendizagem, através da criação de escolas mais pequenas, horários mais flexíveis e outro tipo de organização.
Em segundo lugar, é indubitável que para impedir que a lógica comercial se institucionalize definitivamente e que a propaganda continue a invadir as escolas públicas é imprescindível que os espaços escolares se reformem, aprofundando os aspectos mais ligados à lógica de cidadania e democratização. Vale sempre a pena enfatizar que a democratização da educação exige mais e não menos democracia.
Concretamente, a melhor arma que os docentes têm para defender as escolas públicas é transformá-las a partir do interior, reconhecendo o carácter altamente político da sua profissão. Isto é, as escolas públicas correm hoje o risco de serem privatizadas porque a escola do passado não foi suficientemente democratizadora (no que respeita ao conhecimento, ao acesso e à permanência) e isso afectou fundamentalmente os alunos das famílias trabalhadoras e também (ainda que usando outros mecanismos) os estudantes de famílias pertencentes a minorias marginalizadas.
Se não conseguirmos reintroduzir no discurso público sobre o ensino a noção de potencial democratizador da escola, os benefícios individuais e sociais de aceder a uma educação com princípios de cidadania e solidariedade, sem perder de vista a dimensão qualitativa, então o risco da comercialização da educação é muito alto. 

As escolas "charter" estão a avançar em força nos Estados Unidos e em outros países anglo-saxónicos. Os apoiantes da liberalização do sistema educativo defendem que esse avanço se deve à necessidade de contrariar a ineficácia e o fraco rendimento dos alunos das escolas públicas. Este argumento tem algum fundamento válido?

Essa é uma pergunta difícil de responder na generalidade, merecendo uma resposta caso a caso e olhando para os dados do rendimento académico de cada escola.
Em 17 Setembro de 2004, sessenta escolas charter geridas pela empresa ?Califórnia Charter Academy? tiveram de encerrar, deixando sem aulas mais de seiscentos estudantes. As razões que motivaram este encerramento foram de ordem financeira e tiveram origem no manuseamento pouco claro por parte do dono daquela empresa, constituindo um sério aviso dos perigos que implica reduzir o direito à educação a uma operação de mercado.

Mas há ou não evidências ou estudos que demonstrem que estas escolas produzam melhores resultados do que as escolas públicas?

Bom, também em Setembro deste ano, a American Federation of Teachers (um dos sindicatos de educadores americanos) publicou o relatório National Assessement of Educational Progress, respeitante a 2003, que avalia a evolução das escolas nos Estados Unidos. Este relatório conclui, por exemplo, com dados bastante sustentados, que os estudantes das escolas charter obtêm piores resultados em matemática e leitura nos 4º e 8º anos de escolaridade por comparação com os estudantes das escolas públicas.
Apesar de estes dois estudos confirmarem que as escolas charter não estão a funcionar tão eficientemente como os seus promotores o fazem crer, há muitas pessoas e organizações que continuam a assegurar que elas são um bom sistema. Apesar de os resultados não serem conclusivos, creio ser importante ter em conta que não se podem estabelecer comparações sem considerar os contextos gerais e específicos de cada uma delas.

O exemplo brasileiro

O professor insiste que "a democratização da educação exige mais e não menos democracia", dando, neste contexto, o exemplo das escolas de Porto Alegre, no Brasil. Como é o modelo de funcionamento dessas escolas e que exemplos se podem colher delas?

A cidade de Porto Alegre e respectiva área suburbana tem uma população estimada de 1.286.000 habitantes, distribuídos por 85 zonas. Em 1989, a administração municipal adoptou um sistema participativo de tomada de decisões sobre o orçamento do município. Este programa, chamado Orçamento Participativo, tinha como objectivo incluir a população na discussão e elaboração do plano anual de investimentos a realizar na cidade.
Um recente relatório ilustra como este programa beneficiou a área da educação na cidade: em 1989 existiam 37 escolas municipais com 24.232 alunos inscritos; em 2000 o número de escolas aumentou para 89 e serviam um total de 49.673 alunos. No mesmo período a taxa de abandono da educação básica desceu de 9,2% para 2,4% e a retenção aumentou de 71,2% para 85,5%.
Este esforço para levar a cabo um reforço da oferta educativa está intimamente relacionado com o amplo processo participativo de tomada de decisões e ilustra a vontade política que pode existir para combater o tipo de colonização corporativista associada às agendas neoliberais de reforma educativa que enformam o processo de globalização em curso.

Entre os projectos desenvolvidos pelo município de Porto Alegre destaca-se o Projecto Escola Cidadã. Como surge e como se estrutura este projecto?

O projecto Escola Cidadã foi desenvolvido pela administração do Partido dos Trabalhadores na altura em que ganhou as eleições para o município de Porto Alegre em 1989. Durante os últimos quinze anos, educadores, alunos, pais, organizações comunitárias e indivíduos tiveram a oportunidade de expressar as suas opiniões sobre o papel que devem ter as escolas na sociedade e reflectir sobre o tipo de prática social, política e educativa que desejariam ver funcionar nas escolas municipais.
Este processo de reforma educativa expressa a articulação de ideais democráticos, experiências comunitárias, o legado do movimento educativo popular e um firme compromisso de criar um novo modelo de escola, no contexto de uma crise financeira e económica de grande magnitude.
É um programa que funciona a partir da premissa fundamental de que democratizar as escolas requer um esforço colectivo, de forma a criar um projecto educativo aberto e flexível, mantendo, por sua vez, as metas de democratização integral em contexto de sala de aula. No âmbito deste projecto, as escolas transformam-se em laboratórios práticos do exercício de direitos individuais e sociais, incentivando o desenvolvimento de indivíduos autónomos, críticos e criativos, que sustentem práticas diárias de solidariedade, justiça, liberdade e igualdade de relações entre homens e mulheres, combinando todas as práticas curriculares com um compromisso de uma relação menos abusiva com o ambiente.

Acha que o modelo de Porto Alegre pode, de algum modo, ser "exportado" para outros lugares do mundo?

Sem pretender comparar o desempenho das escolas de Porto Alegre com as escolas americanas, não tenho dúvidas que se as nossas sociedades querem reforçar o seu carácter democrático devem avançar no sentido da democratização e não da mercantilização da educação.
Para isso, as escolas que queiram alimentar uma verdadeira participação democrática terão de transformar-se em espaços abertos, protegidas dos regimes disciplinares das regras de mercado; cada componente desse espaço dependerá necessariamente do outro. É fácil compreender a necessidade de abertura porque ela é axiomática em todas as formas de democracia.
Mas tão importante como aceitar a necessidade de abraçar e pôr em prática diferentes credos e formas de olhar o mundo e realizar diversos tipos de actividades e práticas educativas, é a necessidade de as escolas estarem protegidas das pressões do mercado.
Eu estou convencido que o exemplo de Porto Alegre - com todas as críticas que se possam fazer deste modelo que está em constante renovação e discussão - é de que ele nos dá sinais muito claros de como avançar na construção de sociedades e escolas mais justas, percebendo que a democracia, como qualquer sonho, não se faz a partir de palavras bonitas e de boas intenções, mas a partir de processos complexos e profundos de reflexão e de práticas colectivas.
Pelos seus próprios méritos educativos e por constituir uma alternativa real face ao constante avanço dos sectores que querem comercializar as escolas, a população de Porto Alegre - sem esquecer muitas outras cidades brasileiras e de outros lugares do mundo -, e as suas escolas merecem não só que lhes prestemos atenção, mas que lhes dediquemos a nossa reflexão e as nossa acção.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 138
Ano 13, Outubro 2004

Autoria:

Gustavo E. Fischman

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Gustavo E. Fischman

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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