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Todos os brasileiros têm uma origem mestiça, quer se goste, quer não

Alípio de Souza Filho é doutorado em sociologia pela Sorbonne [Paris] e professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no Brasil. Aproveitando a sua passagem por Portugal, onde participou como orador em duas conferências – “Mestiçagens no Brasil”, na Universidade do Minho, e “Orientação sexual, escolha e política”, no pólo de Miranda do Douro da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro – a PÁGINA entrevistou este investigador, que faz o elogio das origens mestiças do povo brasileiro e explica de que forma este legado tem efeitos sociais e históricos incontornáveis na actual sociedade brasileira.

 

Considera que a mestiçagem é, provavelmente, o principal traço da cultura brasileira, com efeitos sociais e históricos incontornáveis na sociedade brasileira contemporânea. Pode desenvolver um pouco esta ideia?
A miscigenação biológica que juntou populações de indivíduos africanos, indígenas autóctones e europeus, e que resultou nos diferentes tipos antropológicos humanos que formam a actual sociedade brasileira, é, de facto, o elemento fundador do nosso país. Aquilo que mais me tem interessado, no entanto, e que constitui o tema central do meu trabalho, é a derivação dessa realidade histórica nas práticas de hibridismo cultural, traduzidas em práticas culturais, valores, crenças e hábitos, que resultou numa sociedade e numa cultura de mestiçagens. Gilberto Freyre, na sua obra “Casa Grande e Senzala”, faz referência ao facto de as instituições brasileiras poderem ser caracterizadas como instituições moles. Eu gosto bastante desta ideia porque ela traduz não a ideia de instituições fracas, mas sim de instituições flexíveis. E, de facto, encontra-se no tecido social brasileiro um trato flexível com as coisas. E esta referência poderia estender-se ao domínio moral, ao domínio político, à sexualidade, etc. Somos, enfim, uma sociedade que praticamos mestiçagens em vários domínios.

Há quem considere esse legado como uma característica negativa da sociedade brasileira. É também a sua opinião?
Esse é, de facto, um traço forte da sociedade brasileira, contribuindo até para uma certa leitura desconfiada e pessimista do Brasil, tanto por parte do intérprete não brasileiro, como por parte dos próprios brasileiros. O que, na minha opinião, é um equívoco. Há uma verdadeira tradição intelectual no Brasil, pontuado por expoentes como Sérgio Buarque de Holanda ou Caio Prado Júnior, e toda uma corrente de pensadores marxistas que influenciou de forma determinante as ciências sociais brasileiras, que sustenta uma leitura negativa das mestiçagens e associa erradamente a ideia de instituições moles a instituições fracas, produzindo uma concepção pessimista e desconfiada das mestiçagens relativamente ao futuro da sociedade brasileira.

Refere num dos seus artigos que esse é um conceito importado dos colonizadores mas que acabou por ser interiorizado pelos próprios brasileiros...
Sim, numa espécie de ventriloquismo inconsciente por parte do intérprete brasileiro. É como se o colonizador, no seu discurso – e refiro-me em particular ao discurso europeu – que participou na produção das mestiçagens, renegasse a sua própria criação, maldizendo um povo e uma cultura que pratica fusões, que ele supostamente não praticaria nas suas sociedades de origem, deixando no imaginário nacional esse mal-estar com as mestiçagens. E o intérprete brasileiro ainda hoje reproduz inconscientemente esse discurso.

De que forma se reflecte esse traço cultural nos hábitos e nas representações do povo brasileiro?
Eu diria que ele se reflecte em praticamente tudo. O brasileiro é capaz de fundir aspectos que noutras paragens culturais são tomadas como díspares, mas que no Brasil se reúnem com muita facilidade. É o caso, por exemplo, de um diálogo muito comum, que eu considero muito rico do ponto de vista sociológico, através do qual, face a uma resposta negativa, se pergunta se não haverá uma possibilidade de arranjar uma alternativa, de contornar a situação. A resposta, quase invariavelmente, é “eu vou tentar dar um jeito...”

O tal “jeitinho brasileiro”...
Sim, que, embora inusitado em outras paragens culturais, nomeadamente na Europa, onde não me parece que haja abertura para isso, é muito comum no quotidiano brasileiro.

Pessoalmente, considera essa atitude negativa ou positiva?
Mais uma vez demarco-me da interpretação da cultura brasileira adoptada por Holanda ou Júnior e opto pela corrente proposta pelo sociólogo Gilberto Freyre, seguida por Roberto DaMatta, que, entre outros aspectos, fazem uma leitura positiva deste jeitinho brasileiro. O que não significa que ele possa ser lido sempre desta maneira, porque este jeitinho tanto pode ser sinónimo de solidariedade espontânea, que é muito habitual no Brasil, como corrupção na esfera política. O que não podemos é fazer uma leitura que associa esta postura apenas à ideia de lesar ou de corromper o sistema, tendência de um certo intérprete brasileiro desconfiado em relação às mestiçagens. Nós devemos encarar o jeitinho como um ethos, como um modo de ser e de agir brasileiros através dos quais se procura fazer fluir a vida, fazer as coisas acontecerem.

Defende que essa postura é considerada pelas elites intelectuais e políticas como a justificação para os “males do Brasil”. Esse é ainda um discurso actual?
Sim. Essa expressão está associada à conhecida tese do Sérgio Buarque de Holanda, o “Raízes do Brasil”, que é a pedra de fundação dessa leitura que associa as mestiçagens “males do Brasil” – ainda que ele não tenha utilizado essa expressão, que é original de um pensador anterior, Manuel Bonfim, que refere que os portugueses, tendo vivido sob o domínio árabe durante oito séculos, já eram um povo dado a misturas. À semelhança de Bonfim, o Sérgio considera também que o povo português, relativamente a outros povos europeus, era um “povinho de misturas”, exemplificando com o facto de as classes dominantes portuguesas, nomeadamente a nobreza, comer com a criadagem, entregar as crianças aos cuidados dos criados, etc. Ou seja, ele vê já no Portugal colonizador a imagem do Brasil que irá ser fundado. E uma nação fundada por um povo que já é dado a misturas não podia resultar noutra coisa senão numa gente que não consegue desenvolver, nas suas palavras, “a urbanidade, a civilidade, a modernidade”, uma sociedade de instituições fracas, sem a força dos povos do norte, onde não existe a noção clara de separação entre a esfera pública e a privada. Embora haja quem não aprecie a minha crítica, porque no Brasil ele é considerado como uma referência incontornável, é um lamento que eu considero elitista e racista.

O que revela um mal-estar identitário...
Ainda que a sociedade brasileira seja de mestiçagens, é um facto que existe um mal-estar identitário relativamente não só às práticas culturais mas também ao carácter antropológico do homem brasileiro. E isto porque as nossas elites – económicas e políticas, mas também intelectuais, inclusivamente as de esquerda – parecem sofrer com o facto de não terem uma ascendência europeia directa. É muito comum uma certa classe média da sociedade brasileira procurar em si uma ascendência nobre, nomeadamente britânica, espanhola, holandesa ou francesa, tudo menos portuguesa…

Provavelmente fruto das nossas origens igualmente híbridas...
Precisamente. Esse mal-estar identitário inicia-se desde logo, então, pelo facto de essa gente saber que as suas origens são portuguesas, indígenas e africanas. Um mal-estar que se estende ao domínio das práticas sociais, na mistura de códigos, culinária, religião, enfim, da vida social em geral, tomadas como “coisas do povo”, descartadas como incultura, falta de urbanidade, civilidade, modernidade. Esse é também um fantasma das elites políticas e intelectuais brasileiras, isto é, a ideia de que são as nossas mestiçagens que nos mantêm atados ao arcaísmo, ao pré-modernismo.

Embora as desigualdades sociais no Brasil tenham na sua origem factores sobretudo económicos, considera que esse discurso serve de algum modo para reforçar essa situação no país?
Eu diria que sim, que a manutenção das desigualdades sociais passa em grande medida por esse mal-estar identitário das nossas elites, que se reflecte no desprezo pelo povo e pelo abandono a que maioria da população está votada. O racismo no Brasil não existiria se não tivéssemos esse mal-estar identitário.

Qual é a sua opinião face ao estabelecimento de quotas nas universidades destinadas a minorias?
Sou contra, porque parece-me um grande equívoco estabelecer quotas para a população negra – porque a discussão passa sobretudo por aí – seja na universidade seja na administração pública. Até porque as raízes antropológicas das mestiçagens no Brasil fazem com que seja difícil distinguir quem é negro, quem é branco, quem é indígena. Como dizia Gilberto Freyre, “o brasileiro é mestiço no corpo e na alma”. A título de curiosidade, na Universidade de Brasília, por exemplo, dois irmãos gémeos foram separados com base nestes critérios, um tomado por negro, a quem foi aceite a matrícula, outro a quem foi recusada a inscrição por supostamente ser branco… O mais grave nesta discussão das quotas, porém, parece-me ainda assim a tentativa de retomar o conceito de racialização da sociedade. E não há coisa mais racista do que a ideia de raça. Do ponto de vista antropológico não há qualquer sentido para ela. Mas o movimento negro no Brasil considera o contrário, isto é, que pode combater o racismo trazendo de volta este conceito.

Num dos seus artigos fala da necessidade de mudar a maneira de compreender a sociedade brasileira. De que forma?
Antes de mais, considero que as elites brasileiras precisam de “ir para o divã” e fazer um processo de auto-análise, saindo do desconforto identitário em relação às mestiçagens e assumi-las no corpo e na alma. Todos os brasileiros têm uma origem mestiça, quer se goste, quer não. É preciso um olhar de elogio face a nós próprios, entendendo as mestiçagens como algo positivo não só no que elas representam em termos do colorido dos grupos humanos mas também da sua riqueza cultural. Porque as mestiçagens brasileiras têm algo a dar à humanidade, pela tolerância, pela convivência com a diversidade e com a diferença. No actual contexto mundial onde proliferam os fundamentalismos, a intolerância, a guerra, eu diria que uma consciência mestiça é um bom caminho para a promoção da convivência pacífica entre os povos. Se no século XX os socialistas afirmavam “socialismo ou barbárie”, no século XXI eu diria “mestiçagens ou barbárie”. Aproveitaria também para lançar uma pequena provocação: quando actualmente se discute a questão do trânsito ilegal de emigrantes no continente europeu e nos Estados Unidos destinados à exploração sexual, penso que há um discurso oculto no sentido de barrar a emigração. Não se trata de legitimar o tráfico de seres humanos, nem mesmo a exploração sexual de forma criminosa, mas não se pode utilizar esse discurso como forma de colocar entraves à entrada de pessoas. É um discurso claramente anti-emigração, que procura legitimar as medidas de expulsão dos emigrantes.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
Fotografia de André Tentugal


  
Ficha do Artigo

 
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