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Palácio do Bolhão: uma casa com alma

A Academia Contemporânea do Espetáculo (ACE) tem uma nova casa. Reconstruída e renovada, 14 anos depois de a ter descoberto. Uma casa com alma, inaugurada a 27 de fevereiro, Dia Mundial do Teatro, e que marcou a comemoração dos 25 anos da ACE. Palco de festas da elite portuense do século XIX, com os faustosos bailes que ali se realizavam ricamente descritos nos jornais por Camilo Castelo Branco, o Palácio do Bolhão é hoje palco de Teatro e de outras Artes. Fora de cena quem não é de cena! O espetáculo vai começar…

 

António de Sousa Guimarães mandou construir, em 1844, um dos edifícios portuenses que melhor expressa o vigor da burguesia do século XIX. O edifício viveu tempos de glória, mas acabaria por ser entregue aos credores, depois de o Conde do Bolhão ter ficado arruinado e ter sido acusado de falsificação de moeda no Brasil. Posteriormente, foi Casa Biel (1890) e mais tarde abrigou a Litografia do Bolhão, que ali funcionou até cerca de 1990. Foi nesse ano que surgiu a ACE/Escola de Artes, por iniciativa de alguns membros de companhias de teatro do Porto, como António Capelo, João Paulo Costa e Pedro Aparício, ainda hoje membros da direção da estrutura; entretanto, em 2003, foi criada a ACE/Teatro do Bolhão.

Instalada provisoriamente no antigo Colégio Almeida Garrett, a ACE procurava um espaço definitivo para a expressão da sua arte. Encontrado o Palácio do Bolhão, começaram as lutas para a conquista desse espaço: primeiro, foi preciso convencer a Câmara Municipal do Porto a adquiri-lo, o que aconteceu em novembro de 2001, por ação da vereadora da Cultura, Manuela de Melo, e do presidente da câmara, Nuno Cardoso; depois, o edifício foi cedido em regime de comodato por 50 anos à ACE, que ficou com a responsabilidade de o restaurar.

“Procurávamos um espaço com alguma alma. Queríamos estar na Baixa, no centro do Porto, que é o lar natural de uma escola de artes. E este espaço é uma espécie de síntese de tudo aquilo que é significativo para qualquer portuense. É uma casa de teatro, de Artes, de Cultura, no coração da cidade, num edifício que é um bem coletivo, um monumento nacional, e que é digno de ser habitado, vivido e partilhado com a comunidade, transformado numa matéria viva de Cultura”, explicou à PÁGINA Pedro Aparício, diretor da academia.

O Palácio do Bolhão está situado na Rua Formosa, “uma zona particularmente massacrada pela desertificação”. Mas já vai havendo “sinais claros de um movimento de reabilitação e de reabitação da Baixa”. A ACE está a cumprir parte desse papel, mas, para aqui chegar, foi preciso travar muitas lutas, principalmente políticas. “Nunca nos deparámos com um político que dissesse que não tinha sentido fazermos isto. Pelo contrário, foram imensos os que nos foram dizendo que sim, que era fundamental e incontornável. Mas entre o que se dizia e o que se fez decorreram, na verdade, 14 anos”, refere Aparício. Por isso é que a Sala D. Maria II – onde decorreu esta conversa – foi batizada como Sala das Promessas pelo também diretor António Capelo. “Foi a sala onde acolhemos seis ministros da Cultura, quatro presidentes da Câmara, dois ministros da Educação... Portanto, um conjunto muito significativo de políticos, dos quais, na verdade, um núcleo muito restrito fez efetivamente algo pela concretização deste projeto.”

 

 

 

Orgulho portuense

Já é possível passear por algumas salas do palácio, fazer visitas guiadas, que em setembro serão dramatizadas. Entrar no Palácio do Bolhão é respirar nobreza e viajar até ao século XIX, com alguns pormenores mantidos na recuperação. Primeiro é preciso subir a Escadaria Monumental que se ergue entre varandas interiores, e em cujos degraus estão registados os nomes de todos os que contribuíram para a sua recuperação. No primeiro andar, o Salão Nobre mantém os estuques que enquadravam os lustres do que foi o salão de baile, que agora vai ser transformado num pequeno auditório para espetáculos, cafés-concerto, conferências e palestras.

Entre os espaços a visitar está também a Sala D. Maria II, a mais ilustre das salas, com um teto deslumbrante, e a Capela, no último piso do edifício, onde vai ficar instalada a biblioteca. Mas há mais: a Sala de Fumo, a Sala de Jantar, o Quarto Chiari... E o auditório principal, criado no anexo arruinado onde funcionou a Litografia do Bolhão.

Já é possível visitar esses espaços, mas ainda há muito a fazer até o edifício estar perfeitamente operacional para a mudança total da escola, prevista para setembro. Até ao momento, foram gastos dois milhões e 800 mil euros, conseguidos através de fundos comunitários e de apoios do Ministério da Educação, da Secretaria de Estado da Cultura e da Câmara Municipal do Porto, “que, aliás, tem agora um papel determinante no projeto”. Agora, porque é do atual Executivo que Pedro Aparício fala. “Nesta nova Câmara coloca-se claramente a questão da identidade cultural da cidade, da mais-valia da cidade enquanto organismo cultural, com a sua história, a sua capacidade criativa. Foram abertos canais de comunicação com muita facilidade e isso é que mudou muito.”

E foi com a autarquia que a ACE lançou já mais uma candidatura a fundos comunitários, para que possa ser posto um ponto final nos trabalhos de recuperação e no apetrechamento técnico. “Passamos a ter dois auditórios e, portanto, temos uma necessidade grande de modernizar e requalificar os nossos equipamentos técnicos. Além disso, tudo o que é visível e que é significativo dentro do palácio está recuperado (as salas principais com o apoio de mecenas e de várias entidades, a escadaria com o apoio da comunidade e, principalmente, dos habitantes do Porto), mas estão por recuperar as salas secundárias, fazer alguns trabalhos finais, como rodapés, portas, etc. E esta candidatura tem esse objetivo.”

Encontrar apoios privados foi um dos grandes desafios. Procuraram empresas significativas da região e do país que pudessem sentir-se mobilizadas para esta causa, mas não foi fácil. “Fomos um bocadinho atrás daquela ideia, que era uma marca distintiva do Porto na altura em que o palácio foi construído, do Porto dos mecenas, dos burgueses orgulhosos do seu património e da sua identidade, que não precisavam do poder público para enobrecer a cidade. Mas foi uma luta muito complexa e difícil”, explica Pedro Aparício. Mas entre alguns sins e muitos nãos, a obra andou.

Curiosamente, aquando do lançamento do projeto ‘Degrau a Degrau’, para conseguir junto da comunidade o financiamento do restauro da Escadaria Monumental, a resposta foi rápida e muito positiva, apesar da crise. “De repente, tínhamos associações culturais, famílias, grupos de amigos, empresas, cafés, bares, sindicatos, etc., a ajudar. Parece que a cidade se mobilizou para tomar conta disto, que também é dela. Em oito meses, e também com o patrocínio de uma empresa de andaimes que fez baixar o orçamento, foi possível angariar os 28 mil euros necessários para o restauro.”

Porque o Porto também é isto, “grupos de pessoas que se juntam e que têm como objeto principal do seu lazer dedicarem-se à cidade, ao seu património, à sua natureza, à sua história, e essa gente esteve presente em força. Foi um motivo de ânimo enorme para o nosso trabalho”, frisa o diretor da ACE.

 

 

Comunicar com a cidade

Entretanto, a ACE está a dar vida ao projeto. Inaugurou a casa nova com a reposição de “Édipo”; depois estreou “A Revolução dos que não sabem dizer nós”, seguindo-se, até ao início de agosto, “Começar a Acabar”, “Almas Mortas”, “Território” e “Maison Marlène”. “Temos uma programação bastante diversificada. Procuramos mostrar facetas muito diferentes da nossa atividade como criadores de teatro: temos o clássico, temos um projeto multidisciplinar, teatro e dança, temos um espetáculo musical”, entre outros. São várias as expressões artísticas apresentadas no palácio, não faltando também a música, fruto de uma parceria com a associação Turbina, que vai assegurar a programação musical. A estreia foi em abril, com um concerto de apresentação do mais recente CD de Peixe.

A ACE faz ainda uma aposta forte no Serviço Educativo, que desde 2010 tem promovido aulas livres de dança contemporânea, cursos de formação teatral, oficinas de fotografia de cena ou atividades de teatro para os mais novos. “O Serviço Educativo é uma secção muito importante do nosso projeto, a partir dos recursos humanos, financeiros e materiais da escola e da companhia. Tentamos assim comunicar de uma maneira diferente e aproximarmo-nos mais da comunidade, de públicos que não querem fazer uma carreira profissional de interpretação, mas que gostavam de ter aulas de expressão dramática ou de voz, ou de experimentar técnicas de dança contemporânea, por exemplo. Há uma série de atividades paralelas à escola e à companhia que são uma forma muito importante de estarmos em comunicação com a cidade”, sublinha Pedro Aparício.

Projetos há muitos, sempre. “Se não houver, é porque estamos mortos ou muito envelhecidos.” Mas a caminhada que já começou é longa e exigente. “Estarmos aqui instalados obriga-nos a pensar numa escala diferente do que estávamos habituados. Isto impõe-nos uma visibilidade pública e uma responsabilidade muito grande e, portanto, do ponto de vista da programação, também temos de crescer.”

São 25 anos a dar formação teatral e mais de uma dezena a dar espetáculos. Num caminho com altos e baixos, é preciso resistência. “As coisas são sempre muito mais complicadas para nós, e não é de admirar que tenhamos demorado 14 anos a chegar aqui. Somos uma companhia independente, um grupo de agentes culturais da cidade, e isto é o projeto de uma vida para se concretizar.” E quando faltam apoios do Estado para a Cultura, e quando nas escolas há a pressão dos números, é tudo mais complicado.

“Estamos completamente coagidos e pressionados por números, independentemente da natureza mais específica da formação e de estarmos sempre a dizer que é impossível ter uma aula de voz ou de canto com 25 pessoas numa sala. Porque aquilo significa pouco e não é, nem de longe nem de perto, o mais adequado. Porque há muita subjetividade naquilo que fazemos… E, principalmente, um lado humano que exige muita proximidade...”

Ainda assim, os projetos seguem avante, com mais ou menos contratempos. Porque esta é gente firme. “A gente da Cultura e das Artes tem de ter muita resiliência, muita resistência, muito espírito de sobrevivência, para levar a cabo os seus projetos.” Aqui chegados, fora de cena quem não é de cena! O espetáculo vai continuar…

Maria João Leite (reportagem)

Ana Alvim (fotografia)

[Entrevista a António Capelo]


  
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