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Novos rostos na pobreza

Num dia normal não seria necessário pedir ajuda. Num dia normal seriam eles a contribuir para ajudar os outros. Mas estes dias de crise deixaram de ser dias normais. Perderam-se os rendimentos, as oportunidades de trabalho; pensa-se em proteger a família e até se equaciona sair do país. Perdeu-se quase tudo, menos a vergonha, porque a necessidade não faz com que seja mais fácil pedir ajuda. São muitos os novos rostos que a pobreza não conhecia, mas que um dia menos normal fez com que estendessem a mão.

 

O desemprego, a falta de rendimentos, de oportunidades de trabalho, o abandono escolar dos filhos – é cada vez maior o número de estudantes do Ensino Superior a sair por falta de condições de pagamento das propinas, por exemplo –, a despensa vazia. Cenários comuns a tantos portugueses, cenários que fizeram com que muitos destes, que sempre viveram ao lado da pobreza, recorressem às diversas instituições que existem pelo país fora.

“Existe efetivamente um maior pedido de ajuda em relação a anos anteriores”, começa por esclarecer La Salete Piedade, presidente do Coração da Cidade, uma instituição que nasceu em agosto de 1996, com o intuito inicial de apoiar os sem-abrigo da cidade do Porto. Hoje, a ajuda estende-se a outros carenciados. E são muitos os novos rostos. “Confirmam-se rostos novos na linha da pobreza. Não porque já eram pobres ou porque os pais eram pobres, mas devido a outras circunstâncias que se prendem com a forma como vivenciavam o seu dia a dia. Percebe-se que foram apanhados de surpresa, num mundo sem capacidade de lhes oferecer trabalho, donde provinham os ganhos com que estavam habituados a pagar as suas despesas. Creio que contavam que a sua vida seria assim vitaliciamente e de repente tudo mudou... Ninguém estava preparado para enfrentar este desastre social”, frisa a responsável, explicando que os principais motivos referidos pelos utentes são “a perda de emprego, o endividamento, o divórcio decorrente da crise e do desajuste familiar; por fim, referem a saúde como ponto de rotura com o trabalho”.

Os pedidos de ajuda aumentaram também na Cáritas Diocesana do Porto (CDP), uma instituição particular de solidariedade social que depende diretamente do bispo da diocese e cujos principais objetivos se prendem com a satisfação das necessidades mais básicas das pessoas, mas também com a promoção da sua autonomia. “Efetivamente, os pedidos de ajuda aumentaram, sobretudo pelas pessoas que se encontram pela primeira vez a necessitar de apoio institucional. Para conseguirmos dar resposta a todos os pedidos de apoio, para além das cerca de 350 famílias apoiadas mensalmente pela Cáritas Diocesana do Porto, socorremo-nos das conferências vicentinas, encaminhando várias famílias para o apoio destas estruturas de maior proximidade”, explica Daniela Guimarães, técnica superior de Educação Social da CDP.

O tipo de pessoas que recorrem à CDP é diferenciado, e muitas fazem-no pela primeira vez. “Há situações de nova pobreza, de pessoas que, face à conjuntura socioeconómica atual, de perda ou decréscimo de rendimentos, pedem apoio pela primeira vez a instituições como a Cáritas. Estas novas famílias, que neste momento se encontram em situação de pobreza conjuntural, têm uma série de caraterísticas que nos permitem diferenciá-las das situações de pobreza dita estrutural. Falamos de hábitos de trabalho e experiência profissional, de graus de escolaridade superiores, de competências pessoais, sociais e profissionais solidificadas”, sublinha Daniela Guimarães.

Nas situações de nova pobreza são vários os motivos, “diferentes as histórias de vida e diversos os tempos e momentos”, que passam por situações de desemprego súbitas e/ou recentes de um ou dos dois elementos de um casal, pela redução das horas de trabalho, part-time ou trabalho pontual, pelo encerramento do próprio negócio ou pelo fim do subsídio de desemprego. Além disso, “há uma grande preocupação com o bem-estar dos filhos e muitas vezes as pessoas apontam as necessidades das crianças como a grande causa do pedido de ajuda”.

 

É visível o sentimento de vergonha

Do saber que é preciso pedir ajuda a fazê-lo vai um passo de gigante. Não será fácil admitir que se perdeu tudo e que é necessário recorrer a instituições para se conseguir ter o que comer. Apesar da crise e da necessidade decorrente desta, que poderia minimizar o sentimento de vergonha, esta é bastante notória.

Num programa matinal de televisão, La Salete Piedade falou de um projeto que o Coração da Cidade tem em mãos e apelou para que as pessoas que carecem de ajuda fossem à instituição. “A meio da tarde apareceu um senhor, que era encarregado da construção civil de uma grande empresa, e muito envergonhado referiu que esteve mais de quatro horas para se convencer de que tinha de entrar para pedir a sua refeição. Acabou por levar três. Mais tarde saiu sorridente e estupefacto pela diversidade de alimentos que conseguia levar para casa”, conta a responsável.

Quem recorre à CDP também vai desconfortável. “É visível o sentimento de vergonha, o desconforto, o não saber sequer o que dizer ou o que pedir. A abordagem é tímida e no primeiro contacto as pessoas falam baixinho. Algumas precisam sobretudo de serem ouvidas, porque como tudo é novo e todas as experiências de privação são sentidas pela primeira vez, não conseguem sequer falar com os amigos ou familiares”, refere Daniela Guimarães.

A discrição e o sigilo são máximas das instituições, que acolhem de braços abertos quem delas precisa efetivamente. Como a solidariedade é uma palavra ainda bem presente no dicionário português, multiplicam-se as ajudas, os serviços, os projetos: peditórios de dinheiro e alimentos, lojas sociais (que vão vendendo de tudo um pouco, como roupa, acessórios ou móveis, a preços reduzidos e cujas verbas servem para ajudar os mais carenciados ou para apoiar os próprios projetos de ajuda), take away (que permitem aos utentes levar para casa uma refeição), apoios mensais, médicos e jurídicos.

A Cáritas oferece vários tipos de apoio: apoio alimentar mensal e em vestuário bimensal (que são regulares), apoio médico semanal e jurídico (sempre que solicitado). “Pontualmente, nas situações de apoio mensal efetivado, com avaliação personalizada e casuística, disponibilizamos apoios económicos de acordo com as necessidades identificadas. A Cáritas Diocesana do Porto substitui-se aos devedores no pagamento de rendas e mensalidades de crédito à habitação em dívida, de faturas de água, luz e gás em atraso, no pagamento de tratamentos médicos, próteses oculares e dentárias, no pagamento de propinas, entre outros”, refere o presidente da CDP, António Barros Marques.

 

Ajudar, um vício diário

Sopa de salsa, filetes de sardinha com arroz de tomate, pão e sobremesa. Esta era a ementa do take away do Coração da Cidade no dia em que a PÁGINA visitou a instituição. Na cozinha, vários voluntários preparavam a refeição que iriam servir ao jantar. “O take away é uma rubrica alimentar que contempla pessoas que estão desempregadas pelo menos há um ano e pessoas que estão a trabalhar, mas de forma precária. Damos a essas pessoas a possibilidade de aceder a este serviço, exigindo apenas a identificação e a prova do estado de carência que declaram”, afirma La Salete Piedade, acrescentando que tem havido bastante procura, daí ser feita “uma rigorosa apreciação de quem necessita efetivamente” deste serviço.

À hora de jantar, as refeições estão disponíveis para levar para casa. Um euro vale uma refeição completa, bem servida, e à medida que o agregado familiar aumenta o preço das refeições diminui. “A quantidade servida é substancial, no sentido de prever uma maior necessidade alimentar”, adianta a presidente da instituição.

Além do take away, o Coração da Cidade tem outros tipos de ajuda, “para atingir o mesmo fim”. Um outro programa em funcionamento é o Programa VER – Vidas Em Risco. “É um programa de apoio familiar, que oferece ajuda a famílias carenciadas. Este programa obriga o utente a fazer trabalho comunitário – 32 horas de trabalho mensal – para que possa usufruir dos produtos alimentares que estão expostos diariamente no nosso Mercado Social, equipado para o efeito”, revela La Salete Piedade, adiantando que este programa oferece ainda “apoio médico e medicamentoso, roupa, calçado e mobiliário para conforto doméstico”.

São muitos os voluntários que ajudam diariamente nesta instituição. Voluntários residentes ou integrados no Programa VER, mas todos com a mesma vontade de contribuir, de ajudar. Ana Antunes é voluntária residente do Coração da Cidade. Há dez anos perdeu o emprego e decidiu tornar-se voluntária. Instalou-se, disse a rir. “Já não sabemos ficar em casa... Não sei explicar. Aqui sentimo-nos bem” – referiu Ana à PÁGINA, adiantando que ser voluntária é uma espécie de vício. Um vício diário, das oito às 21 horas.

Maria João Leite (reportagem)

Ana Alvim (fotografia)


  
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