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Portugueses mantêm ideia tradicionalista face à pobreza

O Ano Europeu de Combate à Pobreza e à Exclusão Social (AECPES) está a chegar ao fim. Um ano de iniciativas e de actividades através das quais se procurou chamar a atenção da opinião pública para estes problemas e mobilizar o poder político e a sociedade civil para os combater. Mas enquanto o coordenador nacional da iniciativa faz um balanço positivo, as organizações não governamentais afirmam que as representações sociais dos portugueses sobre a pobreza e as suas causas continuam a ser bastante conservadoras.

 

Apesar de ser uma das regiões mais ricas do mundo, em 2008 existiam quase 85 milhões de pobres na União europeia, o que equivale a dizer que 17% da população não tem os meios necessários para fazer face às necessidades mais básicas. Em 2010, estima-se que aquele número tenha disparado para cerca de 120 milhões. No que se refere a Portugal, e de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística, a população abaixo do índice de pobreza – com um rendimento inferior a 60% da média do país – está calculada em aproximadamente 2 milhões de pessoas. Deste parcial, um terço são reformados, 22% são trabalhadores remunerados e 21,2% são trabalhadores por conta própria. Há, ainda, uma “nova pobreza” emergente que atinge a população economicamente activa: são pessoas que têm um trabalho mal remunerado, precário ou inseguro e que correm o risco de se tornarem pobres.

Entretanto, um estudo encomendado pela Comissão Europeia à Associação Nacional de Pequenas e Médias empresas no âmbito do Ano Europeu, conclui que a zona norte do país está entre as 30 mais pobres das 254 regiões da Europa, com um milhão e 250 mil pessoas a viverem no limiar da pobreza. É também aqui que se encontram os mais baixos níveis de instrução e o mais elevado abandono escolar, bem como o maior número de desempregados e de empresas falidas – números que colocam Portugal entre os dez países mais pobres da União Europeia (UE).

Foi nesta conjuntura pouco favorável que, em Fevereiro, teve início o AECPES, numa cerimónia oficial que decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Uma das principais prioridades definidas pelo Programa Nacional Português foi procurar contribuir para a compreensão e visibilidade do fenómeno da pobreza e o seu carácter multidimensional, reforçando, ao mesmo tempo, a importância do compromisso político e do envolvimento colectivo e individual na erradicação da pobreza. Mas a efeméride assume particular relevo, também, na medida em que contribuiu para uma avaliação da Estratégia de Lisboa (2000-2010) – vocacionada para o crescimento e o emprego na UE – e a apresentação de uma nova estratégia que se prolongará até 2020.

Os 17 milhões de euros atribuídos à realização do Ano Europeu constituem o mais elevado orçamento, até hoje, alocado a iniciativas congéneres – a título de curiosidade, refira-se que este montante é sensivelmente equivalente a quatro dias de lucros dos cinco maiores bancos portugueses. Daquele total, 9 milhões destinaram-se a actividades realizadas nos diversos estados-membros, nomeadamente à promoção da inclusão activa, através de reuniões e eventos, campanhas informativas, promocionais e educativas, inquéritos e estudos à escala comunitária ou nacional. Os programas nacionais foram concebidos com a participação de organizações civis, parceiros sociais, autoridades locais e regionais.

 

 

Um ano de iniciativas

A mobilização contra a indiferença face à pobreza e à exclusão social constituiu o leitmotiv do programa de acção, que em Portugal foi organizado com base numa temática mensal. As iniciativas estiveram abertas a qualquer instituição, quer de carácter público, quer privado, de solidariedade social e a organizações não governamentais (ONG).

Logo em Fevereiro, foi lançado um manifesto contra a pobreza subscrito pela Comissão nacional de Acompanhamento do AECPES, publicado em vários jornais e divulgado nas redes de transportes públicos das principais cidades. Março, habitualmente associado à celebração do Dia Internacional da Mulher, foi dedicado à pobreza que atinge o género feminino, focando-se, sobretudo, na disparidade salarial face aos homens e nas questões relacionadas com a monoparentalidade.

Em Abril, evocando a revolução dos Cravos, as actividades centraram-se sobre os mais jovens, um grupo particularmente vulnerável ao fenómeno da pobreza. Maio foi dedicado às questões de índole laboral, com o debate a incidir na situação dos trabalhadores que vivem abaixo do limiar de pobreza. Frequentemente esquecidas por não terem a mesma visibilidade social dos adultos, embora a pobreza e a exclusão social tenham um forte impacto neste grupo etário, as crianças foram o público-alvo do mês de Junho.

No mês seguinte, as iniciativas focaram-se nas questões relacionadas com as migrações, tendo Agosto sido dedicado ao voluntariado, uma vertente particularmente importante no que toca à exclusão social. Em Setembro, o grande tema foi o envelhecimento e o modo como a pobreza e a exclusão social afectam os idosos. Outubro foi o mês dedicado à falta de oportunidades das pessoas com deficiência, com a particularidade de ter sido comemorado o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza (17). Novembro acolheu o debate em torno dos sem-abrigo – que com o agudizar da crise económica virá a tornar-se um problema de crescente visibilidade – e Dezembro é o mês de balanço global da iniciativa, marcando também o encerramento das actividades, tanto em Portugal como a nível europeu.

 

Coordenador nacional traça balanço positivo

Em declarações prestadas à comunicação social, o coordenador nacional do AECPES, Edmundo Martinho, afirmou que “não se pretende que no final de 2010 não haja pobreza em Portugal, mas que tenha havido impactos muito fortes e que todos nós compreendamos que não há ninguém dispensado deste esforço de combate à pobreza e à exclusão”. Nesse sentido, o Programa Nacional procurou adequar os quatro grandes objectivos estabelecidos a nível europeu – “reconhecimento dos direitos, responsabilidade partilhada e participação, coesão e acção concreta” – a quatro eixos de intervenção em território nacional: contribuir para a redução da pobreza através de acções concretas com verdadeiro impacto na vida das pessoas; contribuir para a compreensão e visibilidade do fenómeno multidimensional da pobreza; responsabilizar e mobilizar a sociedade para a erradicação das situações de pobreza e exclusão; assumir a pobreza como um problema de todos os países.

Procurando fazer o balanço do AECPES, a PÁGINA pediu a Edmundo Martinho que fizesse uma avaliação sucinta sobre o alcance dos objectivos inicialmente traçados. Para o coordenador nacional, a avaliação “é muito positiva”, já que a Comissão Nacional “contou com a representação muito empenhada e participativa de entidades públicas e privadas com responsabilidades no combate à pobreza e à exclusão social, quer no que respeita aos projectos da sua própria iniciativa, quer relativamente às acções dinamizadas pela coordenação nacional, quer mesmo nas reuniões mensais de discussão das temáticas relacionadas”.

Questionado sobre se uma iniciativa desta natureza não corre o risco de se limitar a cumprir um calendário político, o mesmo responsável afirmou que, “apesar dos factores desfavoráveis apresentados pela conjuntura actual no que diz respeito ao combate à pobreza, assumimos como objectivo deste Ano Europeu contribuir para o despertar das consciências e para o facto de todos, sem excepção, terem um papel activo nesta missão”, reconhecendo que “o principal objectivo dos anos europeus é colocar nas agendas políticas as temáticas abordadas”. O responsável máximo do AECPES adianta, ainda, que “mais importante do que lamentarmo-nos com a conjuntura, será mobilizarmo-nos e empenharmo-nos naquilo que cada um de nós, individual e colectivamente, pode fazer na luta contra a exclusão social e a pobreza”.

 

 

Atitude cultural face à pobreza não mudou

A PÁGINA colocou esta mesma questão ao coordenador do Fórum Não-Governamental para a Inclusão Social (FNGIS), plataforma que reúne um conjunto alargado de organizações de nível nacional. Na opinião de Sérgio Aires, “apesar de tudo, e em semelhante contexto de crise, a iniciativa terá servido para pressionar as instâncias nacionais e comunitárias para a necessidade de se prosseguir num esforço colectivo de ataque a estes fenómenos”. Principalmente a nível europeu, a iniciativa “poderá ter jogado um papel crucial na manutenção de uma atenção específica para este assunto”.

No entanto, “se me perguntar se estou satisfeito, claro que lhe direi que não”. Isto, explica, porque “num momento em que a pobreza se agrava e alastra, atingindo novos públicos, gostaria de ver mais empenhamento, melhores e mais ambiciosas lideranças, tanto a nível nacional como europeu”. Tanto mais, por temer que “esta ausência de compreensão sobre o que se está a passar e das sua prováveis consequências possa pôr em causa a coesão social e a paz na Europa”.

Outra das críticas habitualmente apontadas à política de combate à pobreza e à exclusão social em Portugal é o facto de esta ter um carácter eminentemente assistencialista ao invés de ser encarada numa perspectiva humanista, baseada na defesa dos direitos de cidadania. Perspectiva de que Edmundo Martinho afirma discordar totalmente: “Apenas por desconhecimento da natureza das actuais políticas, que implicam compromissos e responsabilidades por parte dos seus beneficiários, no sentido do exercício da sua cidadania plena e autonomia, se pode fazer este tipo de apreciação”.

Opinião que não é totalmente partilhada por Sérgio Aires, para quem, neste domínio, “estamos precisamente no meio da ponte”. Assim, se durante muito tempo “imperaram os princípios do assistencialismo mais básico, neste Ano Europeu descobrimos que a batalha da mudança cultural não estava de todo vencida”. Isto, adianta Sérgio Aires, porque “as representações sociais dos portugueses sobre a pobreza e sobre as suas causas continuam a ser bastante conservadoras, imputando fortes responsabilidades aos próprios pobres pela situação em que se encontram”, garantindo que “foi possível assistir a isto mesmo durante diferentes iniciativas públicas e campanhas levadas a cabo durante o Ano Europeu”. E a emergência da chamada “nova pobreza” – consequência directa da crise financeira e económica – transporta, em sua opinião, o perigo do regresso a uma visão de que “o que é preciso é dar de comer a quem tem fome”. Por outras palavras, “poderemos estar perante um cenário que facilmente influenciará o regresso às formas mais tradicionais de puro e duro assistencialismo”.

 

Pobreza resolve-se desde a sua base

O coordenador da Rede Europeia Anti-Pobreza Nacional (REAPN), padre Jardim Moreira, garante, neste sentido, que esta estrutura está interessada, sobretudo, em mudar critérios de acção e de cultura. “Em vez de manter um clima de subsidiodependência, da esmola e da sopa dos pobres, procuramos trabalhar para encontrar formas pelas quais as populações participem activamente na mudança, porque se as pessoas não participam desde a base, ficamo-nos só pelos discursos”.

Apesar de respeitar a visão assistencialista – “não negamos que se deva alimentar quem tem fome” –, Jardim Moreira prefere falar de uma linha em prol do desenvolvimento, através do qual a pobreza possa ser resolvida pela participação dos próprios pobres. “Nós temos uma postura bem diferente das outras instituições, o que leva a que haja, por vezes, um certo distanciamento, mas achamos que a nível europeu é preciso encontrar formas de resolver o problema a médio e longo prazos”. Para exemplificar, aponta a organização do II Fórum Nacional de Pessoas em Situação de Pobreza, cuja principal proposta passou pela criação de um Programa Nacional de Combate à Pobreza, que, na sua opinião, deverá ser “resultado de uma empenhada negociação colectiva”. A segunda proposta defende um novo paradigma cultural que passe pela sensibilização e participação informada e activa, com aposta dos esforços colectivos orientados para a prevenção, e que deverá começar desde os bancos da Escola.

Apoiar uma economia social mais forte, empreendedora e qualificada, procurando reforçar os mecanismos de suporte e financiamento, aprofundando ao mesmo tempo um novo modelo social com equilíbrio entre o estado, o mercado e o terceiro sector, é a terceira proposta. O quarto ponto aposta na coordenação, articulação e eficácia das políticas, numa “legislação à prova de pobreza”, de forma a avaliar o impacto de decisões sectoriais junto dos mais carenciados. A última proposta fala da necessidade de uma “década europeia de combate à pobreza”, que seja declarada pela UE, tendo em conta que se encontra em vigor a estratégia 2020. Desta forma, lembra Jardim Moreira, “há ainda um período de 10 anos para procurar reduzir o número de pobres no espaço europeu”.

Ricardo Jorge Costa (texto)

Teresa Couto (fotografia)

 

NÚMEROS DE POBREZA E DESIGUALDADE EM PORTUGAL:

• remunerações dos conselhos de administração das 20 empresas portuguesas cotadas em Bolsa quintuplicaram entre 2000-2009

• 20% dos portugueses mais ricos têm rendimentos oito vezes superiores aos dos 20% mais pobres

• diferença salarial entre homens e mulheres é de 70,1%

• 19,8% dos portugueses vivem com menos de 414 euros por mês

• gestores das empresas portuguesas ganham, em média, cerca de 30 vezes mais do que os trabalhadores das empresas que administram

• 21,4% dos portugueses vivem em privação material, isto é, têm dificuldade em fazer face ao pagamento da renda de casa, manter a casa aquecida ou fazer uma refeição de carne ou peixe pelo menos de dois em dois dias

• 100 maiores fortunas de Portugal valem 32 mil milhões de euros, correspondendo a 20% da riqueza total nacional

• 14,1% dos indivíduos vivem em casas sobrelotadas

• cerca de 460 mil pessoas sofrem sérias dificuldades no acesso a alimentos – ao longo deste ano, cerca de 300 mil recorreram ao Banco Alimentar (mais 40 mil do que em 2009)

• 25% das crianças que entram na escola são oriundas de famílias onde a pobreza é extrema


  
Ficha do Artigo

 
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