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As crianças gostam de aprender, podem é não gostar de TPC às sete da tarde

Professora adjunta e supervisora de estágios profissionais na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti (ESEPF), no Porto, Gabriela de Pina Trevisan concluiu doutoramento (2014) em Estudos da Criança, especialização Sociologia da Infância, no âmbito da cidadania e participação infantil; anteriormente, tinha obtido licenciatura em Sociologia das Organizações (1998) e mestrado em Sociologia da Infância (2006) – tudo na Universidade do Minho – e trabalhou como animadora sociocultural na Fundação para o Desenvolvimento do Vale de Campanhã, no Porto (1998-2001). Participa em diferentes redes profissionais da área da Sociologia da Infância e é membro do Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC), do Instituto de Educação da Universidade do Minho, e do Centro de Investigação Paula Frassinetti (CIPAF/ESEPF). As suas áreas de investigação incluem a sociologia da infância, os direitos das crianças, a intervenção comunitária e o trabalho socioeducativo com crianças e jovens e famílias.

 

Para começar, tentar perceber qual o estado da investigação académica na sua área de trabalho. O que é que está a dar na Sociologia da Infância?

A Sociologia da Infância tem sido uma área com muita visibilidade nos últimos anos, quer pelos números de produção, quer pelas pessoas que vão fazendo investigação. E é uma área muito abrangente, ainda que nos últimos anos haja um núcleo da Universidade do Minho que vem dando particular atenção à questão dos direitos da criança. E essa é uma área fundamental para o nosso trabalho. A questão das políticas públicas para a infância também tem sido forte e, nos últimos anos, com um enfoque particular em alguns estudos, nomeadamente, sobre o impacto de situações como a crise na vida das crianças. As áreas de estudo relativas a situações de institucionalização e aos sistemas de proteção de crianças também têm vindo a ser intensamente estudadas e, pessoalmente, são as áreas por que me tenho interessado mais e que têm tido alguma produção e também repercussão. Os media já revelam mais alguma preocupação por estas temáticas e isso também ajuda a área a desenvolver-se.

 

Quando se fala de infância, fala-se exatamente de quê? Qual é o intervalo etário?

Normalmente, orientamo-nos pelas definições dos documentos legais ou de instituições como a Unicef [Fundo das Nações para a Infância], tendo em conta que em outros países há alguma variação, mas, para nós, é dos zero aos 18 anos. Mas embora trabalhemos a infância como uma categoria, também somos capazes de observar as diferentes, não vou dizer etapas, mas as diversidades: de ser uma criança pequena, ou uma criança em idade de escolarização, ou observar os jovens como uma faixa etária específica dentro da infância... Mas a nossa ideia é sempre olhar a infância como um coletivo que é estruturante, que existe em todo o lado, mas que tem formas diferentes de viver nos contextos onde estão. E as crianças enquanto atores sociais plenos, que é uma das grandes bandeiras da disciplina.

 

A Convenção dos Direitos da Criança, que Portugal ratificou em 1990, introduziu alguma abrangência na visão e no tratamento das questões da infância. O que mudou a partir daí? Ainda é uma referência?

Continua a ser um documento de referência, por um lado, porque alarga o que eram os direitos fundamentais das crianças, nomeadamente os direitos de proteção, reconhecendo a necessidade de termos perante a infância um olhar protetor que preserve os seus direitos, e por ter introduzido uma componente que para nós é muito importante, que é a participação das crianças, o direito a serem ouvidas e a codecidirem com os adultos nos contextos em que se inserem. Por outro lado, tem a grande novidade de ser vinculativa, ou seja, os Estados que a assinam, nomeadamente nós, comprometem-se a criar no seu território mecanismos, práticas e instituições que respeitem esses direitos. Obriga-nos a reportar anualmente a situação dos direitos das crianças e a organizar um sistema de proteção de um modo diferente do que conhecemos hoje, um sistema muito mais ágil e próximo das comunidades, das famílias, das crianças. Tem implicações muito grandes. E, claro, também tem muita dificuldade em transcrever-se para as práticas. No entanto, comparativamente com outros países, Portugal tem uma situação francamente melhor em alguns domínios relativos à infância, mas também temos, ainda, questões que nos preocupam de um modo intenso.

 

É recorrente ouvir falar da ‘falta de educação’ de crianças e jovens nas escolas, culpabilizando as famílias – a educação dá-se em casa, diz-se. E a Convenção prevê que a primeira responsabilidade é da família. Há aqui duas educações, mas o que compete de facto, a cada parte?

Não sei se é possível definirmos grandes fronteiras. O que percebemos é que as escolas foram acompanhando um conjunto de modificações que foram acontecendo e que são cada vez mais chamadas a ter uma presença mais abrangente nas comunidades. Mas também percebemos que, frequentemente, têm alguma dificuldade em abrir-se ao que é exterior; outras vezes, em alargar a ideia de instrução para uma ideia mais lata de aprendizagem e trabalho com as crianças e famílias. Muitas vezes, há choques muito grandes entre o que é a realidade hiperformalizada que a escola oferece e o que é a realidade de muitas famílias de onde as crianças são oriundas. Temos ‘N’ escolas que se situam em comunidades com traços particularmente difíceis, com realidades de vida das crianças muito distantes daquela que a escola tem e em que esse choque é previsível. A literatura sobre isto vai apontando estratégias, e eu acredito que, por exemplo, quanto mais os professores conhecem as comunidades e saem da escola, melhor o seu trabalho se reflete na sala de aula. E quanto menos formalizados são alguns processos, nomeadamente o trabalho com as próprias crianças, envolvendo-as em tomadas de decisões, normalmente essas crianças têm não só melhores resultados do ponto de vista académico, mas também da relação com a escola e com os adultos. E aí, a escola tem oportunidade de se abrir em relação às comunidades. Algumas são mais fáceis do que outras e há realidades que, muitas vezes, colocam em causa a forma como estas famílias conseguem ou não relacionar-se com a escola. Temos muitos alunos cujas histórias de família são de insucesso tremendo na escola, para quem a escola não foi uma experiência positiva, não trouxe nada de particularmente bom, ou pelo menos não foi transformadora... Há famílias em que gerações inteiras de pessoas não tiveram uma boa relação com a escola, e aí temos de questionar se isto não passa, também, por uma mudança da escola.

 

A desvalorização da escola, por muitas famílias, é ou era frequentemente apontada como fator de indisciplina e insucesso. Esse quadro mantém-se, ou as famílias são hoje mais interessadas e até interventivas? Pela educação ou por necessidades de guarda para as suas crianças?

Eu acho que, hoje, os pais se envolvem mais naquilo que é o próprio processo e exigem um pouco mais da escola, e isso não é necessariamente mau. Ter pais mais exigentes com os professores e com a maneira como trabalham com as crianças, não é necessariamente mau. Do ponto de vista coletivo, há um bocadinho a perceção de que este papel está relativamente desvalorizado, ou já teve um estatuto diferente, até social. E isso afeta o trabalho das escolas e dos próprios professores, tanto mais que, frequentemente, essas perceções são construídas, não necessariamente, sobre um conhecimento concreto do trabalho das escolas, mas com base em ideias mais ou menos generalizadas sobre os professores e as escolas. E nós temos várias escolas em contextos dificílimos, com ‘N’ variáveis que não levariam ao sucesso, que conseguem contrariar isso. O problema é que esses exemplos não são os que nos chegam mais através da comunicação social; nós ficamos com as imagens piores e as que são boas vão ficando para trás.

 

Quando se fala em família, é comum notar que o modelo tradicional se alterou. Por outro lado, têm aumentado as famílias ditas disfuncionais, multiproblemáticas, etc. O problema é só da instituição familiar? E as comunidades? Ou seja, o rio e das margens, do Brecht…

Sim, porque as famílias não vivem isoladas, vivem em comunidades em que elas próprias podem ter um conjunto de circunstâncias mais ou menos constrangedoras. Se pensarmos no Porto, há um conjunto de comunidades em que, olhando a mobilidade, o acesso a bens culturais e a participação na vida cívica, por exemplo, as possibilidades são francamente menores, e isso condiciona o que as famílias podem proporcionar às crianças. Há tempos, estivemos num agrupamento de escolas, não muito distante do Porto, em que percebemos como o facto da mobilidade dos professores ser recorrente trazia dois problemas à escola: por um lado, os professores tinham muita dificuldade em vincular-se à própria escola, porque ao fim de um ou dois anos saíam para outra; por outro lado, porque havia um grande número de professores que eram de outras comunidades e se deslocavam diariamente muitos quilómetros por dia, conheciam mal aquela comunidade e não tinham tempo para perceber quem eram os miúdos, de onde vinham, para onde iam... E conhecer a comunidade e perceber a realidade das crianças é fundamental para quem está numa escola. E às vezes os professores não têm essa possibilidade.

 

Há políticas específicas para estas situações, ou as respostas são ocasionais? As instituições no terreno articulam-se, ou cada uma olha o seu ‘negócio’?

Com as instituições no terreno nós também vamos tendo outros problemas. Hoje, as escolas trabalham em rede com muitas instituições, mas, na prática, aquilo que teoricamente chamamos trabalho em rede nem sempre acontece. Assistimos, de facto, a alguma partilha de informação, a uma ou outra partilha de coisas pontuais, mas não a um trabalho de rede do início ao fim, e isto é uma limitação. Outra limitação que percebemos, dos diretores, é a dificuldade de terem um grupo de professores com quem trabalhar continuadamente. Isto acontece com os professores mais novos, e não sei se haverá alguma solução política que passe por garantir às escolas uma maior estabilidade do corpo docente. Mas era fundamental. A acrescentar a isto, de ‘X’ em ‘X’ anos, ainda se debatem com alterações aos modelos de avaliação, ao que as escolas têm que cumprir, ao que passa a ser exigido que as crianças saibam... E, portanto, estas alterações permanentes não ajudam a que as mudanças sejam positivas. O que nós vamos ouvindo, por exemplo da Finlândia, aquela experiência que relataram há meses, da avaliação das disciplinas, partiu de um estudo que demorou dez anos a fazer. Passou por governos diferentes, mas o estudo e as propostas permaneceram. Foi uma coisa que teve hipótese de ser pensada, refletida e que envolveu diferentes atores. Nós ainda não conseguimos fazer isso. É tudo descontinuado.

 

 

Referiu a necessidade de políticas públicas específicas para a infância. Essas políticas podem ser dissociadas de outras? Família, trabalho… Educação, saúde, habitação…

Não! O Manuel Sarmento tem algum trabalho publicado nesta área e há que apela muito a esta ideia de que precisamos de políticas integradas e integradoras para a infância. Elas não podem ser desligadas de nenhuma política para os adultos, ainda que possa haver uma ou outra exceção, como na última lei de proteção de crianças e jovens, com uma alteração muito específica para considerar o percurso dos jovens entre os 18 e os 25 anos quando saem de instituições. Mas essa é uma situação muito particular. Em todas as outras questões, nenhuma política da infância pode desligar-se das políticas de família. De resto, a conciliação da vida familiar e da vida laboral foi uma grande bandeira nas últimas eleições; vários partidos foram salientando que era necessário promover políticas e medidas que permitissem uma maior conciliação entre a vida laboral e a…

 

Mas não há grandes concretizações relativamente a essas…

Não. Por exemplo, esta questão da conciliação…

 

… acabam por ser medidas que ficam no papel…

Muitas. E muitas que são pouco articuladas. Por exemplo, falar do equilíbrio entre a vida familiar e o trabalho implica ter entidades empregadoras que compreendem isto e que não penalizam famílias que têm necessidades específicas relativamente ao cuidado das suas crianças. Ou famílias para quem ter dois ou três empregos é o normal, para poderem subsistir e dar uma vida adequada às crianças, mas para isso precisam de recorrer a instituições de cuidado à infância, cuja oferta é muito limitada, apesar de ter sido expandida. E muitas pessoas têm dificuldades em conciliar tudo isso. Outra das grandes bandeiras – e já há uns meses que estão a ser anunciados programas que permitam, pelo menos, atenuar a situação – são as políticas dirigidas, em particular, à pobreza infantil. E aí, é evidente que se estamos a discutir pobreza infantil, estamos também a discutir a pobreza dos adultos, porque a maioria das crianças está inserida em contextos familiares. Portanto, ou esses contextos conseguem sobreviver e dar às crianças condições de vida adequadas, ou o risco que elas correm é sempre maior do que aquele que os adultos correm.

 

É um ciclo reprodutor…

É um ciclo reprodutor, e não só... Nós conhecemos bem as causas, não temos diagnósticos mal feitos. Em termos daquilo que é preciso, de políticas públicas, temos ótimos autores que fizeram esses diagnósticos. Sabemos o que faz a diferença, mas depois temos dificuldade em articular isso, por exemplo, entre diferentes ministérios e secretarias de Estado. Em relação à pobreza, há estudos há dezenas de anos e nós sabemos o que temos de melhorar, percebemos as grandes vulnerabilidades que existem para muitas famílias e que, naturalmente, tornam as crianças mais vulneráveis. Mas depois é difícil passar do papel para a ação.

 

O argumento da falta de vontade política é válido, ou, de facto, são construções difíceis?

Eu acho que pode ser um bocadinho das duas coisas. Há alterações do ponto de vista estrutural que, mesmo face à pobreza, são difíceis. E não é só para nós. No contexto do mundo em que estamos a viver, há sempre situações difíceis. Mas há outras em que os fatores, se combinados, permitem minorar esses riscos. Por exemplo, a questão das habilitações literárias, não pela habilitação para o número, mas para permitir às pessoas, que eventualmente tiveram insucesso antes, aceder ao mercado de trabalho em condições dignas, a desempenharem profissões também dignas e satisfatórias e que permitam níveis de vida adequados – ainda recentemente, foi lançado um estudo da Rede Europeia Anti-Pobreza sobre os níveis adequados de vencimento para se viver com dignidade em Portugal e nós percebemos que, para várias famílias, o que entra em muitos destes agregados é um ordenado mínimo. É impossível viver-se com dignidade!

 

Relativamente às instituições e organizações que estão no terreno, a possibilidade deste tipo de trabalho se transformar numa espécie de negócio tem alguma influência?

Eu tenho alguma dificuldade em generalizar, porque as realidades que vamos conhecendo são diversas. É evidente que estas instituições precisam de fundos para funcionar, e a nossa opção de há muitos anos para muitas destas instituições é um modelo mais ou menos misto: são reguladas e supervisionadas pelo Estado – ou seja, no fundo, não funcionam de forma livre – e também são subsidiadas, precisamente porque se uma criança não pode ficar no seu meio natural de vida, é ao Estado que compete encontrar e garantir uma alternativa. E nós temos de tudo, de instituições que funcionam lindamente e fazem um trabalho extraordinário a outras que precisarão de algumas mudanças. Mas preocupa-me mais que nos últimos anos tenha havido uma projeção mediática de casos que correram terrivelmente mal e que esses casos fossem generalizados a todas as instituições. Isso não é verdade! Essa generalização não expressa a realidade da maioria das instituições, eu acredito.

 

Numa apreciação global, o trabalho que é feito é bom?

Eu diria que, no geral, é francamente melhor do que há uns anos. O sistema de proteção está mais vigilante, os tribunais estão mais vigilantes, e acredito que até os tribunais de família estão mais sensíveis a estas problemáticas. Mas é claro que ainda há margem para manobra. Conhecemos várias instituições que têm vindo a fazer apostas tão simples como a formação continua e permanente dos técnicos e colaboradores, e isto é sempre uma mais valia, porque significa que estas instituições poderão estar melhor preparadas e ter uma visão mais crítica do trabalho que realizam. Mas há espaço para melhorar em todo o lado, e também nas instituições.

 

No caso da escola, parece mais ou menos consensual que não serve a todas as crianças, que não as acolhe igualmente bem – talvez, até, acentue desigualdades entre elas. Fala-se, por isso, cada vez mais de ‘escola inclusiva’, mas relativamente a este conceito, parece não ser tanto o consenso…

Eu acho que aqui vamos ter sempre algum nível de controvérsia, no sentido de que há várias dimensões e haverá sempre quem defenda que o melhor é um caminho e quem defenda que é outro. Eu acredito profundamente em escolas inclusivas e, portanto, acho que é isso que devemos ter. Agora, também reconhecemos, todos, que as escolas não têm todas o mesmo tipo de recursos, nem de corpo docente capaz de responder a algumas especificidades que se colocam. Isto é quase senso comum, mas é uma realidade. E não estamos a falar de especificidades e diversidade só porque há crianças com maiores ou menores capacidades, maiores ou menores ‘handicaps’. Estamos a falar, por exemplo, do ponto de vista cultural, ou socioeconómico, em que, muitas vezes, não conseguimos trabalhar com todas as crianças da mesma maneira. E não acho que seja uma atitude consciente das escolas trabalhar melhor com estes do que com aqueles. É alguma coisa que vai acontecendo no quotidiano, que muitas vezes é silenciosa e para a qual eu acredito que as escolas que assumem práticas mais diferenciadoras, que apostam na formação dos professores, por exemplo, estarão melhor preparadas para responder a esse desafio. Será sempre um desafio, e acho que não há nenhum exemplo perfeito, mas há exemplos que resultam melhor do que outros, e eu acredito profundamente que esse é o caminho.

 

Mas há sempre ‘margens que comprimem’…

Há... Às vezes, falamos até de coisas muito básicas, como a arquitetura de algumas escolas, que impedem que os professores possam fazer um determinado tipo de trabalho ou que determinado tipo de crianças possa ter um acesso igualitário a diferentes partes da escola, por exemplo. E isto é uma coisa que os professores não controlam, não são eles que escolhem a arquitetura da escola. Por exemplo, também temos muitos professores que se formaram num tempo profundamente diferente, para quem a adaptação é bastante mais exigente do que para pessoas que ainda estão a sair da formação e que já estão, talvez, mais alertadas – não digo que a formação dos professores seja perfeita, que não é, mas já têm uma preparação que lhes permite serem mais abrangentes do que se era há 20 ou 30 anos. E também temos de perceber que, para estes professores, é preciso dar-lhes tempo para se atualizarem, para terem acesso a formações, a experiências diferentes – eu acredito muito nos processos de troca de experiências, mais do que na formação, ou pelo menos em complemento com a formação. E isso também não acontece do dia para a noite, há de haver aqui algum espaço em que a escola tenha tempo para respirar e se adaptar. Mas vai ter de se adaptar, porque o caminho será esse – já é mais ou menos adquirido e, felizmente, acho que não iremos voltar atrás.

 

 

Uma vertente importante no plano da inclusão tem a ver com o currículo, com os saberes escolarizados, que, de facto, parecem estar cada vez mais distantes das apetências e das competências das crianças que chegam à escola, muitas delas oriundas de meios…

Sim, estão... Mesmo do ponto de vista geracional... Esta geração de crianças não é a mesma de há duas gerações atrás. Temos impactos muito evidentes, nomeadamente, as questões da tecnologia – o Manuel Sarmento fala da questão do e-ofício da criança, da criança do ofício tecnológico... E nós, às vezes, perdemos a possibilidade de incorporar um conjunto de competências das crianças no trabalho escolar, porque assumimos automaticamente que aquelas coisas não fazem parte do trabalho escolar. Ou não assumimos que uma pergunta, uma curiosidade da criança, possa dar origem a uma aula, ou tentar despoletar uma discussão com as crianças que permita trabalhar conteúdos mais formalizados... Eu não sei se o problema é tanto as metas ou se é mais percebermos como conseguimos chegar lá. E a verdade é nós temos escolas a trabalhar exatamente com as mesmas diretivas, do mesmo ministério, mas que conseguem implementar diferentes modos de trabalhar e perceber que não temos crianças iguais à frente. Claro que isto exige aos professores um nível de adaptação muito grande, mas traz-lhes uma riqueza de… Na minha investigação, observei algumas assembleias de turma no 1º Ciclo em que os alunos levavam preocupações que passavam por coisas tão básicas como discutir o que era uma crise económica e como é que se percebia que um país estava em crise; em que as aprendizagens que se fazem, entre eles e o professor, que vai mediando esse conhecimento, são extraordinariamente importantes, são significativas e não são tidas naquela lógica de que é uma aula, é um conteúdo, mas porque partem de preocupações, experiências ou curiosidades que eles próprios têm. Portanto, às vezes, tem mais a ver com essa capacidade que nós possamos ter, ou não, de diferenciar. Eu digo sempre nós porque, embora não seja professora do 1o Ciclo ou do Secundário, revejo-me nessas preocupações, porque participo na formação de professores e acho que tenho aqui alguma responsabilidade. E como adultos, muitas vezes chutamos para canto perguntas das crianças que, se debatermos com elas, são interessantíssimas do ponto de vista da formação do raciocínio delas, de perceção do mundo. Às vezes, não temos tempo; às vezes, não temos paciência... E de vez em quando, essas oportunidades também acontecem na sala de aula, se eles tiverem espaço para as fazer.

 

Mas com tantos alunos com diferentes vulnerabilidades, e após tanta investigação e várias experiências, é estranho que a Escola não consiga dar uma resposta melhor a quem tanto precisa das melhores respostas... Onde é que é preciso mexer?

Se calhar, é preciso mexer um bocadinho em tudo, mas (e novamente, eu acredito muito nisto) tendo em conta os contextos – há experiências que replicadas noutros contextos, provavelmente, não resultariam. E o que sabemos é que, normalmente, as escolas com experiências mais interessantes são as que têm um conhecimento profundo das respetivas comunidades e conseguem valorizar e aproveitar o que elas têm a favor das aprendizagens dos alunos. Durante muitos anos, a referência sempre foi a Escola da Ponte [Vila das Aves, Santo Tirso]…

 

E parece que continua a ser... Ou voltou a ser?

Pois, não sei... O que é interessante é que a Escola da Ponte existe há 40 anos, que agora, curiosamente, está a ter alguma recuperação, até do ponto de vista mediático, mas foi sempre quase uma experiência-piloto, que nunca se reproduziu... Lá está, eu não acredito que estas experiências possam ser replicadas a papel químico, mas há um conjunto de aprendizagens muito interessantes a retirar dali, ultimamente tem-se falado do Agrupamento de Escolas de Carcavelos e, há umas semanas, foi notícia um agrupamento da Madeira, numa comunidade com níveis elevadíssimos de vulnerabilidade em várias dimensões, que alcançou resultados escolares que contrariaram completamente as expectativas sobre esses territórios – e a nossa expectativa, normalmente, é que haja falhanço e não sucesso, não é? Todas elas são vistas como ótimas experiências, mas quase-piloto, e tudo o resto continua a funcionar com alguma (entre aspas) normalidade, quando o que deveríamos era estar a discutir em concreto porque é que estas experiências conseguiram fazer as coisas de maneira diferente. Mas, entretanto, mais exemplos vão surgindo aqui e ali, e eu tenho alguma esperança de que deixem de ser apenas experiências pontuais e passem a ser a norma, ou quase.

 

A experiência da flexibilização curricular, que vai arrancar no próximo ano, pode ser uma oportunidade transformadora?

Eu acho que pode ajudar, assim como o perfil do aluno [Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, entretanto aprovado], que é uma proposta bastante ambiciosa, que, pela primeira vez, não se foca apenas numa lógica da escola enquanto aprendizagem, conteúdo e objetivo, mas na escola como uma vivência muito mais abrangente, com uma visão da criança que não se reduz ao aluno, mas também enquanto cidadã. Está lá descrito, de modo muito claro, que as crianças e os jovens devem participar em experiências democráticas e oportunidades de codecidir. Acredito que isso juntamente com a flexibilização possa ser uma experiência muito interessante – se não nos centrarmos tanto em cumprir um objetivo e mais no que queremos dar às crianças e construir com elas a partir da flexibilização.

 

Pensar no superior interesse da criança…

Sim, e uma das coisas óbvias que é do superior interesse da criança é um sistema educativo que seja respeitador e prazeroso. E onde ela aprenda, obviamente. A escola é um sítio onde as crianças aprendem, e aprendem coisas importantes, não têm é de aprender todas da mesma maneira, nem, necessariamente, a mesma coisa. Mas a escola é um lugar de aprendizagem, tem essa função, e as crianças gostam de aprender. Podem é não gostar de ter trabalhos de casa às sete horas da tarde, que é outra discussão, ou podem ter mais interesse em desenvolver um assunto de outra forma.

 

A aprendizagem deve ser sempre gratificante?

Claro. Quando se começou a falar do abandonar das disciplinas, na Finlândia, eu vi uma reportagem muito interessante... Uma das coisas que os professores perceberam rapidamente é que deixava de haver a ideia de que ‘esta disciplina é minha’, e na reportagem eram três ou quatro professores numa sala, com crianças de várias idades, onde havia um conjunto de competências a desenvolver na área da matemática, da geometria, da biologia... Os professores, em discussão com as crianças, decidiram fazer uma visita de estudo à floresta, para estudarem os cogumelos; e a partir do cogumelo, que foi o ponto de interesse, os professores trabalharam em conjunto noções de Matemática, de Biologia... Quer dizer, a lógica da flexibilização implica maior interdisciplinaridade, implica que os professores trabalhem em conjunto na definição das aprendizagens que vão ser realizadas pelas crianças.

 

O que pode ser uma dificuldade, por falta de condições…

E até pela novidade. Todos nós fomos formados numa lógica ainda muito estanque das disciplinas, e não numa lógica do conhecimento, que é diferente. E isso vai obrigar a um tempo de adaptação, porque não é automaticamente que as escolas vão conseguir que todos os professores mudem agora. Mas, se calhar, não têm de começar todos, pode começar metade... Mas pode ser uma experiência muito interessante, se as escolas a conseguirem implementar.

 

Identifica algum constrangimento em particular?

Eu acho que o tempo pode ser um constrangimento, de facto, porque efetivamente, é muito mais fácil eu organizar o meu trabalho sem depender de terceiros…

 

Mas quando o ministério diz ‘têm aqui uma coisa nova para fazer, não podem é gastar mais um cêntimo’…

Pois... Não sei muito bem se a flexibilização e a interdisciplinaridade obrigam, necessariamente, a que haja multiplicação de recursos. E aqui, para mim, claramente, as redes e as comunidades podem ter um papel fundamental. Por exemplo, às vezes, há escolas que querem fazer uma visita, mas não têm orçamento para transporte, e há juntas de freguesia que disponibilizam o serviço, há uma IPSS que tem uma carrinha com quem a escola pode fazer uma troca... É aqui que as comunidades e essas parcerias podem ajudar a ultrapassar, não digo todos, mas alguns problemas.

 

 

A possibilidade da cidadania infantil é uma narrativa aberta no âmbito da Sociologia da Infância... Qual é o contexto? Portugal parece que tem, até, um particular sentido de proteção relativamente às crianças e aos jovens…

Esse é um dos aspetos em que nas últimas décadas fizemos um percurso muito interessante – tornámo-nos mais conscientes da necessidade de proteger. Mas quando discutimos as questões da cidadania infantil, falamos para lá dos aspetos formais de nascer num país e ter uma identidade; falamos, sim, de um conjunto de direitos mais expandidos, nomeadamente o direito de participação das crianças, o direito de serem ouvidas, de que a sua opinião seja tida em conta... E isto não é dizer que são as crianças que mandam. Não é isso que está em causa quando se fala de participação das crianças, porque esta participação é sempre mediada pelos adultos e pelos contextos em que elas estão. Portanto, não é dizer que ‘o reino é das crianças’, mas que elas têm um lugar que, muitas vezes, é inviabilizado pela maneira como as nossas estruturas estão pensadas… Por exemplo, para um orçamento participativo, se houver um grupo de crianças que queira fazer uma proposta para a sua comunidade (porque não há um parque infantil, por exemplo), só o podem fazer através de adultos, se estiverem dispostos a isso, e não por direito próprio.

 

Estava a lembrar-me de iniciativas como o parlamento dos jovens, autarca por um dia…

Pois é, por um dia... E, normalmente, até são iniciativas muito interessantes, do ponto de vista deles – as crianças vão apontando sempre aspetos positivos. Mas, ao mesmo tempo, são ‘experiências decorativas’, em que eles estão e nós ouvimos e, às vezes, até ficamos surpreendidos, porque dizem coisas muito interessantes e pertinentes, de que não estávamos à espera. O problema é que, quando queremos passar da fase em que ouvimos para a concretização de alguma coisa com a contribuição delas, normalmente, há um hiato muito grande. Ficamos muito por ouvir e muito pouco por transformar…

 

Sempre podem entrar numa juventude partidária…

A participação política é perfeitamente possível, por exemplo, quando as câmaras municipais têm estes processos instalados – como Pontevedra, onde criaram órgãos, momentos e estruturas em que as crianças são envolvidas em processos consultivos sobre a cidade. Também em Guimarães, há pouco tempo, a autarquia criou a Carta da Cidadania Infantojuvenil, em que houve discussão pública e formulação de propostas, e algumas delas tiveram consequência e seguimento por parte da autarquia. No fundo, é criar um processo que seja significativo e que tenha um efeito. Havia um autor inglês que dizia que as crianças são reconhecidas como cidadãs exatamente no momento em que saem da infância, o que é um paradoxo. No momento em que fazemos 18 anos, automaticamente tudo se expande, mas até lá nunca tivemos verdadeiramente hipótese de trabalhar em processos democráticos e de decisão coletiva, e era muito interessante que as oportunidades surgissem.

 

O que é que a sociedade teria a ganhar com a participação de crianças e jovens nesses processos? E no caso das decisões escolares, o que ganharia a escola, e as próprias crianças? E custos?

Aquilo que se sabe e conhece é que ao nível das crianças, individualmente, há uma lógica de reconhecimento que elas sentem e expressam quando são envolvidas e tidas em conta nestes processos. Elas perspetivam muito esta participação como o facto de alguém ter valorizado aquilo que é a perspetiva delas, em contextos onde normalmente não são chamadas. Isto é uma ideia fundamental. Outra, mais pragmática, é que há ganhos em termos de competências: eles salientam muito a questão da aprendizagem, salientam o aprender a construir uma boa ideia, ou seja, que dar uma ideia implica ter de a conhecer, discutir e partilhar. E isto para eles é muito importante. As comunidades também ganhariam, porque comunidades onde as crianças se sintam incluídas são comunidades em que a própria qualidade de vida se acentua. Nomeadamente, porque são comunidades em que as respostas para eles se tornam mais interessantes para eles, mas também para as outras gerações – quando as questionamos em termos de vida nas cidades, por exemplo, é muito interessante ver que elas raramente apontam problemas ou soluções que lhes digam respeito só a elas; envolvem as outras gerações, envolvem pessoas com limitações, pessoas portadoras e deficiência, preocupam-se com os idosos… Têm este tipo de sensibilidade. Nas organizações e nas escolas, há estudos que apontam para uma coisa que interessa muito às escolas, que é o aumento da performance dos alunos – ao envolverem-se mais com a escola também se envolverão mais nas tarefas da escola, nomeadamente, estudar e aprender.

 

E a nível comportamental?

Sim, também. E na redução de algumas desigualdades. Alguns autores referem que a participação das crianças de meios menos favorecidos as ajuda a sentirem-se mais parte e mais incluídas, e ao sentirem-se melhor incluídas também se sentem melhor com elas e com os grupos com quem se relacionam. E também com a escola, enquanto organização.

 

Gostava de regressar às assembleias de turma... Como é que o professor as ‘encaixava’ no horário?

Aquele professor tinha sempre duas horas reservadas, à sexta-feira, e essas duas horas eram deles. De facto, ele conseguia organizar o trabalho de tal forma que, pelo menos na maioria das situações, fosse possível acontecer a assembleia, naquele dia e àquela hora. E as crianças sabiam que chegava ao final da semana e podiam discutir assuntos que as preocupavam, podiam propor assuntos para a escola, etc.

 

Algum assunto lhe despertou particularmente a atenção?

Uma das discussões mais interessantes a que assisti tinha a ver com a situação de uma criança, cujos pais se iam divorciar, e eles queriam perceber quem eram os adultos que decidiam, se as crianças eram chamadas a dizer o que pensavam, o que é um juiz, um tribunal... Bom, foi muito interessante, porque aquilo não só respondeu a um anseio deles e a questões diretamente relacionadas com a cidadania, com os direitos, e mesmo com a perceção deles do que seria justo ou não. E a preocupação deles, a determinada altura, era perceber como é que alguém que era adulto e que não os conhecia ia tomar a decisão. Uma preocupação altamente pertinente, para crianças que iriam lidar de perto com um processo dessa natureza.

 

A maioria das auscultações da vontade das crianças devem ser, exatamente, em processos de divórcio e guarda... Os tribunais costumam respeitar essas vontades?

Por lei, os tribunais são obrigados a ouvi-las a partir dos 12 anos. Antes disso, é o tribunal que diz se acha ou não pertinente e, às vezes, em processos particularmente duros, é preciso avaliar se faz sentido, em termos de beneficio, ouvir a criança ou não. Muitas vezes, os juízes têm de pesar se ouvir é mais ou menos prejudicial. Pelo que vamos sabendo, temos tido cada vez mais juízes do Tribunal de Família a chamarem crianças mais novas, mas não necessariamente para irem a tribunal – muitas vezes, combinam ouvir as crianças com a ajuda de técnicos da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), ou de psicólogos, e o juiz fica com aquele depoimento, sem levar a criança a tribunal nem a constranger de qualquer forma. Nós temos boas práticas que começam agora a ser discutidas, e eu tenho esperança que esse caminho vá ficando cada vez mais aberto.

 

Neste contexto, qual é a importância dos profissionais da educação social e da intervenção comunitária?

Eu acredito profundamente nestes técnicos e no trabalho com as escolas. É uma convicção minha. Quando temos equipas de educadores sociais a trabalhar nas escolas, complementarmente aos professores e às direções de agrupamentos, e em rede com as comunidades, isso tem um contributo valiosíssimo para a escola, contribuindo para a abertura da escola ao meio, porque o educador social domina um conjunto de técnicas do âmbito da educação não formal e comunitária que o ajudam a fazer isso. Por outro lado, para dialogar com os professores e fazer com que estas realidades não lhes sejam tão distantes. Portanto, vejo muito o educador social nas escolas como um elo de ligação entre a escola, as famílias e a comunidade. No fundo, pondo em diálogo as componentes que fazem parte da comunidade educativa, que muitas vezes não estão inter-relacionadas, em favor das crianças, das escolas e das comunidades.

António Baldaia (entrevista)

Adriano Rangel e Ana Alvim (fotografia)


  
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