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O mundo está muito confuso

À mesa familiar, a política fazia parte do menu. E a influência do avô materno, preso pelo Estado Novo na luta contra a ditadura salazarista, está presente desde muito cedo na sua vida. É a este pedaço de História, a par da Primeira República, que Fernando Rosas se dedica particularmente. Professor, historiador e político (também é conhecido por ser um dos fundadores do Bloco de Esquerda, em 1999), jubilou-se no final de abril. Mas a “Última Lição” não passa de uma designação académica, já que vai continuar a lecionar a cadeira de História dos Fascismos, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e a dirigir projetos de investigação no Instituto de História Contemporânea. Em entrevista à PÁGINA, Fernando Rosas falou de Portugal, da Europa e do mundo. Deste mundo que anda “muito confuso”. Falou também das suas duas vidas: a anterior ao 25 de Abril e a que veio depois da Revolução, o dia em que “mudou tudo”. Com o professor, historiador e homem político percorremos a História dos livros e alguns capítulos da sua vida.

 

Aderiu muito cedo à militância política. O que o atraiu?

Fui levado para a militância política pelo ambiente familiar em que vivia. Desde muito cedo, a política lá em casa estava à mesa. O pai da minha mãe, o meu avô Filipe Mendes, era um republicano ativo contra a ditadura salazarista. O meu pai não, mas a família da parte do meu pai, pelo contrário, era uma família salazarista, que apoiava a situação. E portanto, as questões da política e da intervenção política estavam muito vivas. O meu avô foi preso pelo Estado Novo e eu lembro-me de, com seis anos, ir visitá-lo à Cadeia do Aljube, no Natal. O meu avô foi muito influente na minha juventude, com o seu otimismo, a sua determinação de lutar contra a ditadura. E depois é preciso ver o que eram os anos 60 em Portugal, em que os jovens eram colocados muito cedo perante decisões muito importantes da sua vida. Aos 18 anos dava-se o nome para ir para a tropa – os estudantes universitários ainda tinham um período de adiamento até acabar o curso – e eram quatro anos de tropa, dois cá e dois lá. Era uma interrupção na vida. De repente, a vida era partida ao meio e muito cedo havia que decidir se se havia de tomar posições políticas, se se queria ir, se não se queria ir. Havia os que entendiam que se devia desertar, que não se devia ir; havia os que entendiam que se devia ir, mas fazer lá dentro trabalho político; havia os indiferentes, mas que iam contrariados. As circunstâncias, não só da ditadura em si como da guerra, precipitavam escolhas políticas precoces. No caso da minha família, mais precoces ainda, por causa do ambiente, com presos políticos desde muito cedo.

 

Fez parte dos movimentos estudantis.

E havia também o movimento estudantil... Em 1962, começam as crises académicas, a grande crise. Começa até um bocadinho mais cedo, com a luta contra o decreto 40.900; há aí uma movimentação importante, mas em ‘62 é a grande explosão contra a opressão, contra a repressão política, contra o caráter vetusto e arcaico daquela universidade. Depois houve as lutas de 1965 e as de 1969, e a partir daí uma universidade praticamente ingovernável. Estou longe de ser um caso particular. Na minha geração, a política era convocada para a vida das pessoas muito cedo. E eu também fui. Fui militante do Partido Comunista em 1961, tinha 15 anos.

 

Tirou o curso de Direito também por influência do avô. Na altura, a História não era uma opção?

A História sempre me apaixonou, seguramente desde o meu sexto ano do liceu. Tive uma grande professora de História, a doutora Fernanda Espinosa, mulher do professor Oliveira Marques. Essa senhora teve uma grande influência na minha paixão pela História. Mas a História que nessa altura se fazia nas universidades era completamente desinteressante. A História de Portugal terminava por volta de 1640. A partir daí eram os políticos, os comunistas, os agitadores que queriam meter-se na História Contemporânea – o Estado Novo nunca se interessou por um discurso académico da História Contemporânea. O passado de glória, da reconquista e da expansão, era esse passado que interessava ao Estado Novo. A História Contemporânea não era um investimento, pelo contrário, era uma coisa que se devia esquecer. E quem queria investigar a História Contemporânea eram uns suspeitos agitadores, que andavam por ali a querer fazer política. Eu tinha um grande interesse pela História, mas um grande desinteresse por frequentar a História tal como ela existia na Faculdade de Letras. Por outro lado, o curso de Direito era o curso de quem queria intervir politicamente, tanto à Direita como à Esquerda. A Faculdade de Direito era a faculdade onde se preparava a política. Além das cadeiras propriamente jurídicas, tinha uma componente de Ciências Económicas e Ciências Políticas, e essa formação, jurídica, política, de política económica e financeira, era interessante, era um atrativo. Portanto, fui para o curso de Direito por influência do meu avô, que era advogado, e pelo meu investimento na política e na intervenção política na luta contra a ditadura. Mas sem nunca perder o interesse pela História.

 

A História chegou mais tarde. Como pode descrever o seu percurso até lá?

Na luta contra o regime, acabei por ter de ir para a clandestinidade. Fui preso duas vezes e para não ser preso a terceira tive de me esconder. Depois veio o 25 de Abril e aqueles anos de brasa, e quando parei já não regressei ao Direito. Ainda estagiei num escritório de advogados, mas o Direito desinteressou-me completamente. Com o respeito possível pela profissão, nada daquilo me atraía. E em 1980, quando finalmente abandonei a política como atividade profissional, à qual me dediquei ainda uns dez anos, regressei já completamente determinado a fazer História. Matriculei-me aqui no primeiro mestrado de História Contemporânea que abriu no país e fui o primeiro mestre de História Contemporânea. E ainda antes de acabar o mestrado fui convidado para assistente e aqui fiquei.

 

A História também pode ser uma ferramenta política.

Sim, a História ajuda os políticos a pensar. Um político que não usa a História para interpretar o passado e entender o presente é um político medíocre, mas há muitos assim. Agora, fiz História, fiz a carreira na História, fiz o mestrado, o doutoramento, depois passei a professor associado, fiz a agregação e fui catedrático em História. O que não me impediu de retomar alguma atividade política a partir da fundação do Bloco de Esquerda. Fui um dos fundadores, em 1999, ainda fui deputado durante oito anos, mas abandonei quando achei que tinha cumprido a minha parte. Abandonei a Assembleia da República em 2010 e regressei à universidade, a tempo inteiro, onde estou atualmente. Jubilei-me há dias, mas a ‘Última Lição’ é unicamente um título que a praxe académica dá a estas coisas.

 

A luta contra o regime era muito controlada e qualquer tentativa de manifestação era brutalmente reprimida

 

Dedica-se muito ao salazarismo e ao Estado Novo. Porquê este pedaço da História?

Eu dedico-me a fazer a História do século XX e, no caso da História de Portugal, tenho-me dedicado à História da Primeira República e à História do Estado Novo. Até porque nisto não há compartimentos estanques. O Estado Novo vem da ditadura militar, que vem da queda da Primeira República, que vem da queda da Monarquia... E, portanto, é preciso perceber esse percurso, acompanhá-lo e tentar explicá-lo. O interesse pelo Estado Novo tem muito a ver com a minha militância política antifascista; quer dizer, uma perplexidade que se colocou à minha geração, à geração que combateu o regime, foi tentar perceber como é que um regime destes tinha durado meio século do século XX português.

 

E como é que aconteceu?

Até acabei por escrever um livro sobre isso, «Salazar e o Poder. A arte de saber durar», onde proponho uma tentativa de explicação para essa capacidade de durar que o Estado Novo demonstrou e que tem a ver com fatores de ordem vária, complexos. As explicações que no meu tempo se davam eram muito insatisfatórias. Tinha a repressão, mas nenhuma repressão explica uma duração de meio século. O povo apoiava, mas também não apoiava, houve os dois tipos de situações. Em certas conjunturas, as classes intermédias tenderam a apoiar o regime, as classes contrárias foram sempre vítimas do regime, mas não chegava para explicar tantos anos. Os regimes de caráter totalitário, que não entraram na II Guerra, duraram muito tempo e por razões idênticas, nomeadamente, o Portugal salazarista e a Espanha franquista. Quer a Itália quer a Alemanha, naturalmente, foram fatores da guerra e caíram com a guerra, com a derrota. Mas Portugal e Espanha não, mantiveram-se fora da guerra e duraram. Porque fizeram uso determinado, diferente em Portugal e Espanha, da violência, porque souberam controlar as Forças Armadas nos momentos históricos essenciais, porque estabeleceram relações duráveis com a Igreja Católica, como força legitimadora desses regimes, porque a organização corporativa foi eficaz para conciliar interesses e porque foram regimes de caráter totalitário, ou totalizante, ou seja, preocuparam-se com os interstícios do quotidiano, a família, a escola, o lazer, e criaram organizações especializadas de controlo de todos os níveis da sociabilidade. Estabeleceram uma linha invisível no quotidiano entre aquilo que se pode fazer e aquilo que não se pode. Em cima dos que transgridem cai a violência repressiva, os outros estão sujeitos àquela que se chama violência preventiva, que é a violência das organizações de controlo, na escola, nos lazeres, no trabalho; organizações de vigilância e controlo relativamente ao comportamento das pessoas e que as intimidam. O medo está no interstício do dia a dia e essas organizações são muito eficazes para fazer durar. O conjunto destes fatores, a meu ver, funcionou. Até que há um dia em que deixam de funcionar.

 

E um dia o regime caiu à mão de um poder que deixou de controlar.

Há um dia em que as contradições são mais fortes do que os fatores de controlo. No caso de Portugal, a guerra colonial foi determinante. E essa é uma diferença entre Portugal e Espanha. Em Espanha, a transição parte do próprio regime, que pilota a transição. Cá, o regime é completamente incapaz de gerar uma solução endógena para o seu próprio futuro e, portanto, há uma rotura, um golpe de Estado, uma revolução a seguir. O regime perdeu todas as oportunidades históricas de transição. Não as quis aproveitar, teve medo. Era um regime que vivia demasiado à sombra da Igreja, do Exército, da Polícia, um regime muito conservador e que tinha medo da própria sombra. E nunca arriscou em nada, na Economia como na Política. Perante a guerra, não quis arriscar uma política de descolonização e a partir de certa altura o dilema era este: ou o regime encontrava uma solução política para a guerra, correndo os riscos disso, ou a guerra acabava com o regime. E na incapacidade de se realizar a primeira, verificou-se a segunda.

 

Foi preso duas vezes e entrou na clandestinidade. Como descreve essa experiência?

Este era um país que se caracterizava por as liberdades fundamentais não estarem consagradas. Havia a censura à imprensa, ao cinema, à rádio, à televisão; todos os meios de comunicação social eram sujeitos à censura prévia. Era um regime que proibia a liberdade de associação e de manifestação, e que praticava uma associação política e ideologicamente controlada pelo Estado e pela Igreja. Um regime que tutelava os tempos livres dos trabalhadores, através de uma organização especial que se chamava FNAT (Federação Nacional para a Alegria no Trabalho), que proibia a greve, que proibia os sindicatos livres. Era um regime de caráter totalitário, totalizante, que não deixava as pessoas respirarem e que tinha generalizado a ideia de que o melhor era ninguém se meter na política – a minha política é o trabalho; a política é lá para alguém que sabe, que está lá longe a cuidar de nós. A política estava reservada para uma elite, um olimpo de dirigentes dos negócios, do regime, uma típica oligarquia. Portanto, a luta contra o regime era muito complicada, porque havia poucos espaços de legalidade. Algumas pessoas infiltravam-se nos sindicatos, algumas associações culturais podiam ter atividade, alguns cineclubes, as associações de estudantes, enquanto não foram proibidas. A luta contra o regime era muito controlada e qualquer tentativa de manifestação, ou qualquer coisa semelhante, era brutalmente reprimida pela PSP e pela Guarda Republicana, não era só pela PIDE. A PIDE era o centro do sistema de justiça política, que teve vários nomes, mas articulada com a Guarda Republicana, a Polícia de Segurança Pública e as Forças Armadas. Portanto, qualquer alternativa no campo político estava fora de questão, e no campo cultural ou social, não tinha possibilidade nenhuma de se expressar. E se tentasse manifestar-se ou associar-se, era também alvo de proibição e de repressão. Todo o regime na sua ideologia e na sua prática convidava as pessoas a estarem quietas.

 

E tendo em conta os relatos de prisão e de tortura...

Quem não estava quieto, sujeitava-se à violência repressiva, que consistia em ser preso, torturado. E é preciso perceber que a polícia política tinha poderes latíssimos, até porque os agentes e funcionários eram equiparados a magistrados. Os polícias podiam prender qualquer pessoa por um período de seis meses, renovável por mais seis meses, por mais seis meses... Durante esses seis meses, o preso não tinha direito a visitas, a não ser que a polícia autorizasse, e não tinha direito à assistência do advogado. A PIDE tinha as pessoas lá durante seis meses para fazer o que queria delas, e fazia: tortura de sono, espancamentos, choques elétricos, enfim, violências que eles foram utilizando ao longo desses anos contra milhares de presos. O centro da repressão do regime nunca deixou de ser a polícia política, e por isso, ao fim da tarde do dia 25 de Abril, o povo marchou sobre a polícia.

 

Nesse dia, a que soube a liberdade?

Foi o começo de outra vida. Para as pessoas da minha geração há duas vidas: uma até ao 25 de Abril e outra depois; acho que falo pelos portugueses em geral. É, sem dúvida, o dia mais importante da minha vida. Em todos os aspetos. Foi o dia em que tudo mudou, na nossa vida, no quotidiano, no trabalho, nas relações entre as pessoas, tudo mudou. Foi o fim de meio século de fascismo, de ditadura, de opressão, e o começo de uma vida em democracia, em liberdade. Por muitos acidentes que a vida democrática tenha; não há nada que se compare. Está fora de questão.

 

Continuo a ser um homem político e a ter intervenção política, mas mais secundarizada

 

Durante quase 20 anos não teve atividade partidária, embora tivesse intervenção política. O que o levou, em 1999, a alinhar no projeto do Bloco de Esquerda?

O Luís Fazenda, que nessa altura era o coordenador da UDP, convidou-me para ajudar a juntar vários setores da esquerda radical, que eu como independente teria possibilidade de o fazer. E assim foi. Falámos uns com os outros, com o Francisco Louçã, que era do PSR, com o Miguel Portas, que era de um grupo dissidente do PCP, e lá fomos conversando... A ideia era concorrer juntos às eleições desse ano. O Bloco correspondia a um setor de opinião à esquerda do PS, mas que não se reconhecia no PC e que não estava representado na vida política.

 

Havia necessidade de criar mais uma força à esquerda?

Havia espaço social e político para criar uma força que agrupasse as pessoas que estavam à esquerda do Partido Socialista e que não se reconheciam na orientação ideológica do Partido Comunista. Foi esse espaço que o Bloco de Esquerda partiu a conquistar, e devo dizer que foi a existência desse espaço político que veio permitir, passados uns anos, romper o monopólio do bloco político ao Centro, da alternância permanente entre o PS e o PSD. A prazo, foi isso que se demonstrou, a possibilidade de haver uma força política que oferece uma alternativa ao bloco central.

 

E que balanço faz dos seus anos como ativista partidário e deputado?

Foram anos muito enriquecedores e onde aprendi. Agora, eu sou um historiador e um professor de profissão. Continuo a ser um homem político e a ter intervenção política, mas mais secundarizada. Sou do Bloco de Esquerda, não saí do partido, mas a minha vida partidária está muito diminuída; ainda que me interesse pela vida política do Bloco de Esquerda, que dê a minha opinião quando me pedem e que participe na medida das minhas possibilidades. Sou professor, sou historiador, a minha profissão é esta, e a certa altura achei que era contraproducente continuar nisso. Até porque se formou uma nova geração a quem o Bloco de Esquerda foi muito bem entregue.

 

E o que é que se pode esperar das novas gerações políticas?

Do Bloco de Esquerda pode-se esperar muito. Acho que o Bloco ficou muito bem entregue a uma geração de gente nova, inteligente, interventiva, com imaginação e que acho que vai ter um brilhante futuro. Agora, as dificuldades do país são muito grandes, as dificuldades da Europa são muito grandes, as dificuldades do país nesta Europa são maiores ainda e, portanto, o futuro não está fácil. O futuro para os meus netos não vai ser fácil.

 

Pela primeira vez, os partidos da esquerda estão na base de um Governo…

Isso é um fenómeno novo. Na Europa não há nenhum caso paralelo, e a Europa precisa absolutamente de alternativas às políticas neoliberais de austeridade que estão a ser seguidas e que estão a destruir a Europa como conceito, como projeto económico e político. O que se passa com os refugiados é uma vergonha, e a subida do racismo e da extrema-direita é altamente preocupante.

 

O que se passa em Portugal pode ser um ponto de partida?

Pode. É por isso, a meu ver, que a Comissão Europeia está tão empenhada em liquidar esta experiência. É por isso que a Comissão está a fazer uma ativa e escandalosa ingerência na política interna em Portugal, tentando boicotar, do ponto de vista financeiro, a viabilidade desta experiência. Por isso é que é preciso resistir.

 

A Grécia também teve uma viragem à esquerda…

O único ensinamento que é possível tirar da Grécia, neste momento, é que é preciso estar preparado para sair. É preciso estar preparado para sair, se for caso disso, se não nos derem outra alternativa. A Grécia nunca se preparou para sair do Euro e, portanto, quando os encostaram à parede, capitularam.

 

E Portugal está preparado?

Nós temos de nos preparar, para o caso de ser necessário, se nos empurrarem para isso. Ninguém sai do Euro porque quer, mas temos de estar preparados para isso, porque eles podem encostar-nos à parede sem dó nem piedade.

 

 

Há uma espécie de capitulação dos poderes centrais europeus, de rendição ao neoliberalismo

 

Com tantos problemas pelo mundo fora, vivemos num barril de pólvora?

Vivemos uma situação muito inquietante desde que se rompeu o equilíbrio bipolar. Ou seja, desde a implosão da União Soviética, a tentativa de hegemonização unilateral dos Estados Unidos, sobretudo com Bush, as guerras do Afeganistão e do Iraque... Neste momento, a situação internacional é caracterizada por haver vários polos com pretensões imperiais, disputando hegemonias mundiais ou regionais. E o enfraquecimento da capacidade dos organismos internacionais de mediação deixa antever a possibilidade de multiplicação de conflitos regionais: a China tem conflitos com o Vietname, as Filipinas e o Japão, acerca da delimitação das zonas de influência; a Rússia quer recuperar territórios da antiga União Soviética, e daí a pressão de Putin sobre a Ucrânia e os países do Cáucaso; o Médio Oriente é um barril de pólvora. A Síria, neste momento, é uma grande complicação, porque o fundamentalismo islâmico é indiretamente apoiado pela Arábia Saudita, pelos Emirados e pela própria Turquia, que tem uma política dúplice nesse aspeto: compram petróleo e fornecem armas. Os curdos estão a criar um território independente, que é mais ou menos hostilizado por todos os países de onde vêm. E as grandes potências ocidentais não querem meter tropas lá, e a meu ver, bem. A Síria é um problema com uma solução tão complicada como o Iraque, a Palestina e o Estado de Israel.

 

É uma fase complicada da História.

Tudo isto são períodos de convulsões múltiplas, que não só não têm uma resolução à vista como não existe um polo de forças progressistas que polarize soluções alternativas emancipatórias. Quer dizer, não há um polo de esperança, o que deu origem a que muitas resistências ao imperialismo, à injustiça, à miséria, estejam a ser capitalizadas por ideologias radicais fascizantes. O fundamentalismo islâmico é parecido em muitas coisas com o fascismo, só que faz-se em nome de uma religião. Mas a opressão das mulheres, a opressão do outro, a barbaridade contra o que é diferente, o culto de um chefe supremo, a expansão territorial... Tudo isso são características muito similares aos fascismos dos anos 30. A distância entre o norte e o sul, a distância entre a riqueza e a pobreza, a tremenda ameaça ambiental que pesa sobre a humanidade, tudo isso não encontrou, ainda, um grande polo de resistência em alternativa, o que faz com que muito do descontentamento existente seja polarizado por forças sinistras. O mundo está muito confuso.

 

E a Europa?

A Europa podia ser um referencial de democracia, de integração, de justiça social... Porque isso é que faz a diferença da Europa: o desenvolvimento económico e social, a justiça política e a democracia. Essa é que é a diferença. Não é o poder militar da Europa que a individualiza, mas o seu paradigma civilizacional, as ideias, os valores, as práticas, a igualdade, a liberdade, a fraternidade, a justiça social, etc. Com o neoliberalismo, a Europa está a perder isso.

 

A História repete-se, em circunstâncias e contextos diferentes?

Marx dizia que a História só se repetia como tragédia ou como comédia. A História não se repete, mas as circunstâncias históricas podem ser semelhantes. Vou explicar. A segunda grande depressão do capitalismo, em 2008/2009, tal como nos anos 30, foi pretexto para a explosão de ideologias que querem reverter as conquistas sociais de parte da humanidade. Ou seja, a ideologia neoliberal pretende fazer uma espécie de vingança histórica relativamente às aquisições do pós-guerra, em termos de Estado social, de democracia política e social. E esta reversão só não recorre à violência com que recorreram os fascismos porque, nos anos 30, havia uma grande ameaça que vinha da revolução russa e da onda revolucionária do pós-guerra. E foi preciso recorrer a meios extremos de violência para fazer face a essa ameaça. Na Europa há uma espécie de capitulação dos poderes centrais europeus, uma espécie de rendição ao neoliberalismo. E essa rendição dispensou o uso de violência. O que se está a passar é uma espécie de aniquilação da democracia por esvaziamento. Os parlamentos no Ocidente nasceram para aprovar os orçamentos, agora os orçamentos aprovam-se em Bruxelas, por equipas de burocratas que ninguém elegeu. A criação de um poder supranacional europeu não foi acompanhada pela democratização desse poder supranacional. Se diminuirmos a soberania dos Estados e a transferimos para um poder que não é eleito, que não é legitimado pelo voto, de repente quem manda no país são os poderes que dominam esse poder central. E essa não é a ideia que pelo menos eu tenho da Europa. Eu quero uma Europa de países soberanos, que cooperem entre si no que é essencial, no Estado Social, nas políticas fiscais, na política financeira, etc. Mas o que se está a verificar é uma espécie de esvaziamento. Mantemos as formas da democracia política, mas a certa altura elas estão em poderes que ninguém elegeu.

 

É a ingerência nas soberanias dos Estados.

Por isso a experiência portuguesa é tão importante como tentativa de resistência a esta política. Por isso era tão importante uma coisa semelhante em Espanha. E dar força à Grécia para alterar o círculo de destruição sanguinária que está a acontecer. O mundo está difícil. As esquerdas socialistas emancipatórias tiveram uma grande derrota com a implosão da União Soviética. A ofensiva neoliberal, que nasce no período da Thatcher, do Reagan, etc., fundamentou-se, do ponto de vista da ideologia, na derrota que o marxismo teve com a implosão do chamado socialismo real. Essa derrota ideológica foi muito profunda e abriu caminho a que, de repente, fosse o mercado, o lucro, a concorrência individual, todos os valores mais sinistros do capitalismo selvagem, a imperarem como valores dominantes. Isso foi uma grande derrota para as esquerdas, a nível internacional. E nós estamos a recuperar disso. Esses valores não morreram, e estas pequenas vitórias, como tivemos em Portugal, são importantes. Vamos ver se aguentamos... Sobretudo se o Partido Socialista aguenta as pressões da Europa, que vão ser terríveis.

 

Também vivemos uma crise de refugiados, que tem levado a uma crise de valores. Não aprendemos com o passado?

A História não é um processo excecional de desenvolvimento, como pensavam os positivistas do século XIX. A História tem altos e baixos, avanços e recuos. Quem é que pensava que no país que era o centro mundial da Ciência, da Tecnologia, do espírito que era a Alemanha dos anos 20 ou 30, podia aparecer a tremenda aberração do nazismo? As circunstâncias históricas moldam as ideias e os acontecimentos. E ainda que eu ache que há qualquer coisa que fica, pode haver recuos muito grandes na hegemonia. A hegemonia que é o domínio das ideias varia de acordo com as conjunturas históricas. E saber se a memória fica ou não fica faz parte daquilo que nós conseguimos fazer do uso da memória. Portanto, a luta pela hegemonia manifesta-se também, e muito, no uso que queremos fazer da memória. Aquilo que nós queremos ter como memória é determinante para sabermos o que queremos ter como presente e como futuro.

 

Mas há muitos exemplos na História que nos poderiam tornar melhores…

Não há uma lição única da História. Não há uma verdade absoluta. Há é uma luta acerca dos ensinamentos que queremos tirar da História. Isso há, uma luta pela hegemonia.

 

Tudo depende das interpretações que fazemos da História?

Em larga medida, sim, apesar de haver um sedimento que fica. Ou seja, as pessoas aprenderam o que era o nazismo, e apesar de tudo não é fácil renovar esse tipo de experiência. Mesmo as experiências de extrema-direita que hoje avançam na Europa têm o cuidado de se tentar demarcar formalmente do nazismo e do fascismo... Algumas, outras nem isso. Mas não há uma leitura da História, a História não tem uma moral. A memória não é uma coisa que esteja metida numa gaveta à espera que soprem o pó e que a peguem. A memória é uma construção social, que deriva da luta pela hegemonia em torno dela. Que memória é que se quer ter? E essa abordagem pode fazer-se quer pela História, propriamente dita, quer pelo uso político da memória. Mas de uma forma ou de outra, o que está em causa é saber que tipo de explicação e interpretação do passado queremos usar no presente. E isso varia de acordo com a conflitualidade ideológica de cada época. E é por isso que, no presente, as lutas pela memória são tão intensas.

 

A profissão docente sofreu uma grande degradação de estatuto e de condições de exercício

 

Como vê o estado da Educação e da Investigação em Portugal?

Vejo com simpatia os esforços que este Governo está a fazer para reverter a reversão anti-Escola Pública que o ministro Crato realizou no governo anterior. A direita fala muito do que este Governo está a reverter, esquecendo-se que a principal reversão, por exemplo em matéria de Educação, foi a política que Nuno Crato protagonizou: em matéria curricular, de estruturação dos cursos, de política científica, de cortes orçamentais, despedimentos de professores, revisão curricular no sentido conservador, apoio à escola privada com os contratos de associação, ataque à Escola Pública, redução do campo da Escola Pública... O Governo anterior tentou fazer uma espécie de contrarrevolução nessa matéria, e acho que o presente Governo está a tentar progressivamente repor as coisas nos termos que a Constituição manda, que é colocar a Escola Pública como eixo e como centro principal do esforço educativo, pelo menos para o ensino obrigatório a que o Estado está obrigado. E nesse sentido, de uma forma geral, quer do ponto de vista dos contratos de associação, que é a polémica do momento, quer da organização curricular, vejo com simpatia o que o Governo está a fazer.

 

Assinalam-se este ano os 50 anos da Recomendação da OIT/UNESCO sobre a condição dos professores. Considera que a profissão docente tem vindo a ser desvalorizada?

Muito desvalorizada. Os professores são hoje uma componente importante do proletariado moderno. Os professores como massa assalariada, sujeita à maior precariedade imaginável, a salários baixos, a condições de trabalho por vezes inenarráveis, que estão na profissão há dezenas de anos e que continuam sem um lugar garantido no quadro, são naturalmente uma profissão que sofreu uma grande degradação de estatuto e de condições de exercício da profissão. Assim, acho que tudo o que sejam reformas no sentido de melhorar o ensino, através do mais criterioso e racional emprego dos professores, é bem-vindo. Ou seja, turmas mais pequenas, reforço da Educação Especial, melhor acompanhamento dos alunos, tudo isto permitiria integrar um número muito razoável de professores no sistema formal de ensino. Depois há as ‘Novas Oportunidades’, que agora não se chamam assim, mas há o regresso a esse tipo de coisas que o Governo anterior tinha acabado. Portanto, acho que ainda há lugar no sistema formal de ensino para o emprego de professores, com vantagem para a oferta do ensino; há espaço em tarefas de que eles foram expulsos em nome de princípios economicistas, aumentando turmas e reduzindo a qualidade da prestação dos serviços de ensino. Esta é uma data a ser lembrada e acho que uma das coisas com que este Governo tem de ser preocupar é com a devolução aos professores do estatuto que devem ter. Por outro lado, acho que os professores não têm de ter receio de serem avaliados, porque eu acho que há aí um certo preconceito contra a avaliação – os professores têm de ser avaliados como todas as profissões são avaliadas, com critério, com justiça. E não devem dar a imagem de que têm receio de ser avaliados por pessoas que não sejam exclusivamente seus pares. Acho que é preciso voltar a esse assunto…

 

Sobre a sua “Última Lição”, foi um dia especial?

Foi um dia bonito, de amizade e de solidariedade. Estou muito grato, naturalmente. Sensibilizou-me muito.

 

E que planos tem para o futuro?

Vou continuar a lecionar uma cadeira, que criei há três anos, de História dos Fascismos. Vou continuar como investigador do Instituto de História Contemporânea, onde estou a dirigir alguns projetos de investigação. Neste momento, estou a escrever o argumento para uma nova série de televisão, sobre Portugal e África, que vai estrear no ano que vem. Continuo com muita atividade, continuo a fazer o que sempre fiz.

Maria João Leite (entrevista)

Sufya Cacao (fotografia)


  
Ficha do Artigo

 
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