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Há muito mais coisas que nos unem do que as que nos separam

Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e doutorado em Ciências da Educação pela Universidade de Santiago de Compostela, Américo Nunes Peres foi professor durante 39 anos, 28 dos quais na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (tendo também representado o reitor no polo de Chaves). Homem dado às coisas simples, defende a interculturalidade, o reconhecimento do outro e a valorização das diferenças, porque “há muito mais coisas que nos unem do que as que nos separam”. Sentiu isso ao longo da sua carreira, em especial quando esta o levou de Castelo Branco, de onde é natural, até Chaves, onde se fixou e constituiu família. Foi lá que recebeu a PÁGINA, em sua casa. Falou de si e da sua carreira, da relação especial que mantém com a Galiza e dos planos para o futuro, da Escola e de como ela deve criar igualdade de oportunidades para todos. Há anos, assumiu como lema de vida “igualdade para viver, liberdade para conviver” – mantém o lema, mas com a consciência de que é preciso lutar cada vez mais contra as desigualdades e acentuar o reconhecimento e a valorização do outro. Em maio, quando se aposentou, Américo Peres foi alvo de uma homenagem de amigos, colegas e alunos – a quem tratou sempre pelo nome, porque “a racionalidade educativa deve ser temperada com afetos”.

 

O que sentiu no dia em que foi homenageado?

Uma alegria muito grande!... Por ver que os meus amigos e colegas estavam comigo e, sobretudo, por ver que a cidade estava com alguém que aqui trabalhou como professor e que as pessoas entendem que, ao longo dos 35 anos que tenho vivido em Chaves, sempre exerci uma cidadania muito ativa. É bom ser-se reconhecido como alguém que luta pela coesão social, por melhor Educação, por melhor Justiça, por melhores condições de vida das pessoas. As pessoas entenderam que o deviam fazer e eu senti-me muito feliz por isso.

 

Pelos testemunhos percebe-se que é uma pessoa muito querida, quer em termos profissionais, quer humanos.

Costumo dizer que um professor é mais aquilo que é do que aquilo que ensina. Penso que não há conhecimento sem transmissão, sem investigação, sem partilha, e sempre entendi que tinha de dar o exemplo na minha vida profissional. Aprendi muito com Paulo Freire, que me inspirou como professor e investigador: “vamos fazer da Educação um sonho possível”. Ele dizia que a Educação não pode tudo, mas pode alguma coisa. Para mim, a Educação e a Cultura sempre foram bandeiras, suportes básicos daquilo a que as pessoas têm direito. Por outro lado, e aqui também sou freireano, acho que é partilhando que podemos produzir um conhecimento solidário: a comunicação não se faz de A para B, faz-se com – “mediatizados pelo mundo”, dizia Freire. Com certeza, terei transmitido, ensinado e proporcionado investigação aos alunos, mas também aprendi algumas coisas com eles. Por isso é que fiz sempre o possível por tratar os alunos pelo nome, por criar uma relação de empatia com eles – sem esquecer que eu era o professor, mas mantendo sempre essa cordialidade, essa relação, para que em conjunto pudéssemos produzir mais conhecimento. A minha relação com os alunos sempre foi de proximidade, de acolhimento, uma relação não só de racionalidade, mas também de emoção, afetiva. E senti-me bem com isso.

 

Como caracteriza o seu percurso profissional?

Passei a maior parte da minha vida profissional na UTAD, 28 anos, mas antes passei por diferentes níveis de ensino, e isso ajudou-me a desenvolver mais o ofício de professor do que o de investigador. Acho que é no encontro, na relação, na convivência, que se pode ensinar melhor, ensinar a investigar melhor e também a produzir conhecimento. Se calhar, isto vem da relação que criávamos nas antigas escolas do Magistério Primário, do trabalho colaborativo lá desenvolvido e do acompanhamento diário aos alunos. Nesse tempo, talvez porque as escolas não eram muito grandes, havia uma relação pedagógica mais próxima e qualquer processo de mediação era muito mais fácil – porque conflitos há sempre, mas conseguir mediar através do acolhimento, do estabelecimento de pontes entre as pessoas, é mais difícil em grandes instituições.

 

A tendência atual é agregar...

Eu tive o privilégio de trabalhar com turmas que não eram muito grandes, sobretudo no polo da UTAD em Chaves, o que permite uma relação em que a Pedagogia seja o suporte da própria Educação. Isso não é possível com a massificação do ensino, com os mega-agrupamentos ou com uma turma enorme. No ensino universitário tive turmas de 60 alunos, mas os trabalhos práticos eram em grupos, onde era possível essa relação pedagógica, acolher, mediar e estar atento ao outro. Eu sempre tentei colocar-me no lugar do outro. A Escola não pode servir para produzir mais desigualdades, e muitas vezes, quando não sabe conviver com a diferença, em vez de incentivar e motivar, descrimina negativamente, destruindo a diferença. Eu tive o privilégio, porque o número de alunos permitia esse trabalho individualizado, de tentar acolher o outro na sua diferença através de uma pedagogia diferenciada.

 

Por isso defende que a Escola deve ser também “um local de encontro, diálogo e afetos”?

Quando digo que um professor é mais aquilo que é do que aquilo que ensina é porque entendo que a racionalidade educativa deve ser temperada com os afetos. Adotei isto ao longo dos anos em que dei aulas. O facto de tratar as pessoas pelo nome já é uma ponte, um sinal de que tratamos o outro não como um número, mas como uma pessoa. E isso permite uma pedagogia de proximidade, de hospitalidade, que acolha o outro como alguém que pode aprender, mas que também pode ensinar. Acho que há muitos professores que têm a preocupação de tratar os alunos pelo nome, mesmo em escolas muito grandes. Tive a sorte de ver isso no terreno – durante vários anos fiz parte de equipas de avaliação externa das escolas e, em mais do que uma, vi que havia responsáveis, ao nível da direção, para fazer a ponte com os alunos e com as famílias, envolvendo os pais na vida da escola, acreditando que a comunidade educativa tem sentido, que não é uma expressão vazia e que engrandece a comunidade escolar. Ao sentir que pais e alunos podem participar no projeto educativo, esses responsáveis fazem com que a escola não seja, como diria António Nóvoa, uma instituição que transborda e que tem tantas missões que não consegue dar conta do recado. Assim, estamos a partilhar e a delegar algumas competências que não são dos professores.

 

Defende, portanto, uma Escola mais aberta...

Acho que temos de ter uma visão de comunidade educativa; e fazer uma regulação sociocomunitária da Educação, como diz, nomeadamente, Joaquim Azevedo. Há tantas instituições que trabalhando em rede nos podem ajudar a melhorar a vida da escola! Por outro lado, acho que temos de casar a Pedagogia Escolar com a Pedagogia Social, porque muitos dos problemas que se repercutem na Escola vêm de tensões e conflitos da própria sociedade. Por isso, sou dos que sempre assumiram que a escola não é um lugar apenas para professores; tem de ser um lugar aberto a vários profissionais que lutem por uma melhor Educação: assistentes sociais, psicólogos, animadores socioculturais, antropólogos, sociólogos, que façam parte da equipa. De facto, não entendo a Educação a não ser nesta dimensão socioantropológica. Por outro lado, a Escola não se pode confinar ao currículo, tem de formar cidadãos, e isso é aprender regras básicas de convivência. Daí que diga que a Escola é lugar de encontro, de convivência, onde também tem de se fazer justiça curricular, para promover a justiça social; a Escola tem de possibilitar que eu tenha igualdade de oportunidades perante os outros, que, se calhar por condições económicas ou culturais, não partiram do mesmo ponto de que eu pude partir.

 

Em entrevista à PÁGINA no 201, Alan Rogers disse que a Educação é mais abrangente do que as escolas e defendeu que as escolas deviam ter em atenção várias aprendizagens: formal, não formal, autodirigida, informal. Concorda?

Aí até sou um pouco mais radical. Por exemplo, uma assembleia de turma é uma forma de praticar a cidadania, se os alunos souberem que têm direitos, deveres e regras básicas de convivência. E essas regras não se aprendem nos manuais, mas praticando-as no dia a dia. Por isso costumo dizer que Educação há só uma – a boa educação, e essa tanto se faz em contextos formais, não formais ou informais, porque não é só a Escola que educa. De facto, ela é um contexto formal, onde se produzem aprendizagens mais cognitivas, mas onde também se podem fazer aprendizagens emocionais ou de convivência e interiorizar alguns valores que têm de ser assumidos, também, na própria escola: o valor da liberdade e da equidade. A Escola pode reduzir os níveis de desigualdade se produzir um conhecimento solidário para os que têm possibilidade de a frequentar; se não contribuir para que todos tenham acesso a essa educação, a Escola será uma oportunidade perdida. A Escola não pode cair no darwinismo educativo, onde só sobrevive quem tem poder económico, social e cultural – a Escola deve criar igualdade de oportunidades para todos.

 

E a Escola atual promove a igualdade de oportunidades?

Acho que estamos a regredir nessa matéria. A Escola nunca criou igualdade de oportunidades para todos, mas neste momento, sobretudo na escola pública, as condições são piores do que há uns anos. Eu não posso tratar todos os alunos como se fossem um só e é evidente que se tiver uma turma de 20 posso desenvolver uma pedagogia de inclusão completamente diferente do que se tiver uma turma de 30. E será melhor se tiver alguém que me possa apoiar na área da Psicologia ou uma equipa multidisciplinar que trabalhe problemas – não propriamente problemas cognitivos, de desenvolvimento das aprendizagens, mas problemas que estão na família, porque as pessoas não têm um bem-estar mínimo para poderem ter uma vida digna. Isto reflete- se na vida da escola. Daí achar que precisamos de mais profissionais a trabalhar nas escolas, que não só os professores. O professor não pode ser o criado para todo o serviço e nem sempre consegue dar todas as respostas, por mais vontade que tenha. Mas há respostas que um assistente social, um animador sociocultural, um educador social podem dar.

 

Tudo o que fizermos pela promoção dos Direitos Humanos é pouco

 

Em 1999 publicou «Educação Intercultural: Utopia ou Realidade?» [ProfEdições]. Hoje, como ontem, continua a ser importante?

Se calhar, hoje é ainda mais importante. Na Europa, a coesão social não existe. A Europa só se pode encontrar pela identidade cultural e por aquilo que foi em termos de bem-estar e de qualidade de vida para todos. E esta identidade (Estado Social, respeito pela diversidade cultural...) está a perder-se. Não é por acaso que a extrema- direita e os brotos de xenofobia e racismo estão a emergir; é um apelo aos nacionalismos. Falo do contexto europeu, mas à escala global, há cada vez mais conflitos por questões culturais, ideológicas, étnicas e religiosas. Em vez de se estabelecerem pontes, mediações, essas questões complicam: aquilo que pensávamos que ia acontecer de bom em África não está a acontecer, o que iria acontecer de bom no Médio Oriente não está a acontecer… E o que está na base é o ódio, o racismo, a incapacidade de olhar o outro numa relação de respeito, reconhecimento e valorização da diferença.

 

E como se estabelece essa relação?

Acho que é pela Educação e pela Cultura que podemos estabelecer mediações, pontes entre a identidade e a alteridade. Ficar pelo fenómeno multicultural é pouco, temos de assumir a interculturalidade como uma filosofia educativa de fazer pontes entre culturas, tendo consciência de que a cultura das culturas está naquilo que nos une. E o que nos une está no respeito pela dignidade da pessoa. Parece-me fundamental que no século XXI se aprenda a viver e a conviver com o outro que é próximo, mas também com aquele que é diferente, que na sua dignidade é pessoa como eu sou pessoa. Portanto, duas regras básicas da educação intercultural: aprender a ser pessoa e aprender a viver e conviver com o outro, não através de descrições mais ou menos folclóricas da diferença, mas da dimensão ética, pedagógica, da relação com o outro, com o diferente.

 

Quinze anos depois, acrescentava ou mudava alguma coisa nesse livro?

Sim. Em termos de matriz conceptual, acho que os conceitos não são só descritivos nem normativos; na minha modesta opinião, devem traduzir-se em atitudes. Em termos de caminho, já muita coisa se fez, já se conseguiu passar de atitudes multiculturalistas para atitudes de interculturalidade. Agora, que as escolas têm hoje mais dificuldade em lidar com algumas diferenças a que não estavam habituadas, se calhar têm... Mas a diferença não está só no emigrante ou no cigano, está naquele que vai para a escola e não tem condições mínimas de vida, naquele que não tem acesso a determinadas tecnologias de informação e de comunicação que os outros têm, naqueles que não têm serviços públicos de qualidade. Essas diferenças têm a ver com o que eu chamo a dignidade básica de ser pessoa, e isso tem a ver com os direitos humanos. Por isso, tudo o que fizermos pela promoção dos direitos humanos é pouco.

 

E como lhe parece que têm atuado os professores nessa área?

Os professores fazem um trabalho notável, apesar do desgaste profissional e do mal-estar que sentem e de serem menorizados pelo Ministério da Educação. Acho que a grande preocupação deles é viver a Escola e sentir os seus problemas. Não quer dizer que não haja professores que já desinvestiram na profissão, que estejam completamente angustiados com o que lhes aconteceu nos últimos anos, mas acho que fazem um trabalho extremamente digno. Se há algo a que temos de prestar homenagem é à qualidade do trabalho que os professores desenvolvem nas escolas, apesar de todos os curtos-circuitos. Acho que eles têm tido uma cultura de resistência a muitas das normas perversas que chegam às escolas; embora bêbados de burocracia, eles conseguem ter uma qualidade de ensino que devemos valorizar.

 

Como vê o estado da Educação?

Não tenho dúvidas que este é um momento de recessão – e sou uma pessoa otimista, que não pode viver na desesperança, que não vive da lamúria. Mas preocupa-me o estado da Educação em Portugal. Podem dizer que não regredimos, mas eu acho que sim, em termos de apoio às pessoas com necessidades educativas especiais, na relação pedagógica professor-aluno, relativamente aos currículos – por exemplo, acho que a Formação Cívica devia ser uma disciplina central na vida das escolas. Há uma espécie de mito de que a figura do diretor iria resolver todos os problemas. Eu acho que não é assim: a escola é algo mais complexa do que a direção; na escola tem de haver gestão, mas, sobretudo, pedagogia, equidade e condições de igualdade de sucesso e de justiça curricular. E isto, na atual circunstância, não vai bem. A escola precisa de tranquilidade, e os últimos tempos têm sido muito conturbados. Não pode ser! Educar não é fácil, requer paciência, amor, rigor, tranquilidade, ética, estética; requer uma efetiva relação dialógica entre todos os atores que fazem parte da vida da escola. E atualmente esta relação é conturbada. Os professores andam desgastados, são maltratados, têm sido menorizados. Não é bom para eles, mas também não é para a escola, nem para as famílias, nem para os alunos. Este curto-circuito permanente entre governo, professores, pais e a própria sociedade civil não leva a bom porto.

 

É dirigente do Sindicato dos Professores do Norte (SPN) e da Federação Nacional dos Professores (Fenprof). É um homem de lutas?

Nunca fui de grandes manifestações, mas sou atento à realidade e tenho-me empenhado, sobretudo, numa atitude cívica de partilha democrática dos problemas. Aquilo que vejo na Educação exige que não percamos o sentido e que haja uma bússola para nos podermos orientar; pode haver muita incerteza, alguma turbulência, mas turbulência permanente não leva a bom porto. Às vezes, fica a ideia de que o poder pode tudo, mas não pode; tem escutar as ansiedades e expetativas das populações. E isso não tem existido na relação com as escolas.

 

Quem me deu a mão em termos intelectuais foram os galegos


É natural de Castelo Branco e adotou Chaves como morada. O que tem esta cidade de especial?

Se calhar, o que disse há pouco: há muito mais que nos une do que o que nos separa. Em educação intercultural, uma das questões conceptuais que colocamos são os estereótipos e preconceitos; neste caso, em relação aos transmontanos, aos alentejanos, aos beirões... Mas aqui existe um património comum. Quando respeitamos, normalmente, somos respeitados. Os transmontanos gostam muito quando dizemos que são honrados, trabalhadores e outras qualidades. Mas se dissermos que têm uma mentalidade pequena, ninguém gosta. Ora, a nossa identidade é construída a partir da relação que vamos estabelecendo com os outros. Castelo Branco tem os mesmos problemas que Trás-os-Montes, que o interior. Num futuro próximo, um dos problemas da coesão social vai passar também pela geografia do território, e a Educação tem de ter isso em conta: os novos mapas geográficos vão criar dificuldades e a discriminação negativa de quem vive no interior, porque, em termos de acesso a bens que deviam ser de todos, não tem as mesmas oportunidades de quem vive numa zona urbana ou culturalmente desenvolvida. Vivendo os problemas da interioridade, Trás-os-Montes tem dificuldade em fixar os seus na própria terra.


Mas adota outros...

Exatamente. E as pessoas sentem-se como na sua terra de origem, porque a dimensão de filiação tem a ver com as identidades que vamos construindo e se vão estabelecendo nas pontes relacionais com as próprias comunidades. Castelo Branco, tal como Chaves, tem a vantagem de ser uma cidade-comunidade, onde há um sentido comum, onde as pessoas se conhecem, onde as pessoas interagem. Mas depois também têm o problema do despovoamento. Estamos a perder muita população, porque as pessoas têm de lutar contra o desemprego, contra a falta de condições para se poderem fixar, pelo acesso ao que é básico: educação, saúde, segurança social. As pessoas fogem para onde sentem que têm possibilidade de ter as mesmas oportunidades que os outros, e não é a mesma coisa viver numa zona do interior ou em Lisboa, Coimbra ou Porto. Eu sinto que as pessoas me acolheram e lançaram pontes para as minhas identidades, afinal, muito comuns em Castelo Branco e Chaves.

 

E em Chaves criou laços.

Foi aqui que tive trabalho. A minha esposa é de uma aldeia aqui bem pertinho, e foi aqui que nasceu a nossa filha Mariana. Aqui construímos a outra família, dos amigos, dos colegas, das pessoas que partilham o mesmo espaço comunitário. Aqui pertenço a instituições e associações que me permitem, também, viver em comunidade. E o facto de viver a vida da cidade faz-me sentir, efetivamente, filho desta terra.


Tem, também, uma relação muito especial com a Galiza.

Para mim, nunca houve fronteira, nem quando fiz o doutoramento em Santiago de Compostela e a fronteira ainda se fechava. É evidente que havia uma fronteira física, mas também havia alguma cumplicidade: às vezes chegava à meia-noite, a fronteira já encerrada, mas os carabineiros ajudavam-me a passar, para eu poder pernoitar em Chaves. Acho que também foram estes olhares cruzados que me permitiram ter uma visão intercultural da realidade. Também fui educado na ideia de que “de Espanha, nem bom vento, nem bom casamento”, mas, de facto, quem me deu a mão em termos intelectuais foram os galegos – estive durante algum tempo em Genebra, mas foram sobretudo as universidades de Santiago de Compostela, Vigo e Corunha que me deram a mão em termos de equipas de trabalho e de investigação. O “nosotros” deles sempre me incorporou.

 

Aprendeu muito...

E o meu “pai” intelectual é o José Antonio Caride. Sobretudo, deu-me uma dimensão que eu não tinha na visão da Escola – deu-me a visão da Pedagogia Social. Quando disse que a Educação deve ser desenvolvida em contextos formais, não formais e informais, foi exatamente nesta dimensão de casar a pedagogia social com a pedagogia escolar. Porque na Escola se repercutem os problemas da sociedade, da comunidade, e isso tem de ser tratado por equipas multidisciplinares a trabalhar umas com as outras. Acho que esta visão não é tão trazida da educação em contexto formal, ou da educação escolar, mas da pedagogia social e da necessidade que temos de aprender uns com os outros. O que exige que as sociedades sejam também educativas e que lutemos pela cidadania. Não a cidadania formal, em que se vota de quatro em quatro anos, mas uma cidadania ativa, participativa, de transformação da própria comunidade, não perdendo de vista a dimensão da solidariedade.


E como é que se pode chegar lá?

Esta dimensão da solidariedade não se constrói através do assistencialismo, mas de trabalho na própria comunidade, da partilha de valores, de saberes e experiências que nos podem ajudar a viver e a conviver com os outros. Isto ajudou-me a entender que, às vezes, o problema não estará apenas com os alunos, nos seus handicaps, mas pode estar no bairro em que o aluno vive, ou no centro de saúde, por exemplo. Os próprios espaços onde os garotos nasceram podem não ser espaços humanizados, onde se aprende a ter consciência de que se têm direitos, mas também deveres, e a ser cidadão. É essa ponte que tem de ser feita entre a pedagogia social e a pedagogia escolar, e esta dimensão colhi-a muito em Santiago de Compostela.


Esse também é um objetivo dos encontros galego-portugueses de Educadores pela Paz, de que é um dos dinamizadores?

Se calhar, tem a ver com a relação que fui criando com as universidades galegas e com as portas que foram sendo abertas. Tive o privilégio de ter o Miguel Santos Guerra, o Escudero Muñoz, o Miguel Zabalza e o Caride como professores – gente que respeito muito, intelectualmente e também como pessoas. Diria mesmo que o Xesús Jares, o Cid Fernández e o Caride são os meus três irmãos galegos. Infelizmente, o Jares, que foi o fundador dos Educadores pela Paz, já não está connosco. E portanto, para preservar um pouco essa memória, damos continuidade àquilo que ele sonhou: criar uma cultura de paz, a partir da promoção dos direitos humanos. Na época, emergiu um movimento de educadores e professores que trabalhavam propostas no seu dia a dia nas escolas e nos infantários, que podiam ajudar a construir uma Educação para a cidadania. Entendemos que isso só é possível através de uma cultura de não-violência, de uma cultura de paz, e foi nesse sentido que estas pontes se cruzaram. Por outro lado, a nossa cumplicidade intelectual e académica levou a que se criasse um lastro pedagógico e social a partir de alguns movimentos que dinamizamos na Galiza e em Portugal. Isso criou também uma cumplicidade em termos de cidadania e, sobretudo, este pensar transfronteiriço, entre galegos e portugueses, de que não há barreiras, de que há muito mais pontes, muito mais olhares cruzados que nos enriquecem.

 

Sempre estive de bem com a profissão e isso também me ajudou a estar bem comigo


Quando decidiu ser professor?

Muito cedo, mas efetivamente tive consciência disso já na faculdade. Não que tivesse tido maus professores no Secundário ou na Primária, mas porque vi que o meu perfil e a minha forma de ser se encaixavam com algo em que eu acreditava. Não era uma pessoa muito politizada, mas, como vinha de uma aldeia, tinha consciência de que a Educação podia criar mobilidade social, podia transformar a vida das pessoas. Fiz o curso de Filosofia e tive professores que emprestavam às aulas empenho, emoção, razão, e me ajudavam também a pensar a minha própria postura enquanto professor. Não olhava para a docência como algo missionário, mas como uma profissão nobre, que ajuda a melhorar a educação, a cultura, o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas. Foi por isso que decidi ser professor. E em boa hora, porque é uma profissão que dá algum colo, mesmo a longo prazo. Fico extremamente feliz quando encontro antigos alunos que me vêm cumprimentar e me agradecem pelas aulas ou por tão simplesmente tê-los tratado pelo nome. É o reconhecer que esta pedagogia de proximidade, de acolhimento, pode desenvolver o aspeto cognitivo, a cidadania e o aprender a viver e a conviver com os outros.


Em 39 anos de docência, recorda algum episódio marcante?

Há um episódio que relato em «O Edifício Filosófico e Pedagógico de Foucault» [UTAD, 2006]. Foi a 10 de março de 1976, o primeiro dia em que fiz greve. Para mim, foi um dia diferente dos outros, porque era a primeira vez que fazia greve e porque fizeram greve professores, alunos e funcionários. E todos estiveram na escola durante todo o dia. O presidente do Conselho Diretivo andava a abrir todas as salas para ver se algum professor decidia ir dar aula. Quando foi abrir a sala onde eu dava aulas, uma aluna disse: “Black and Decker do carago!” Devo explicar que na época tinha aparecido a máquina de furar, e a aluna utilizou a metáfora de uma forma inteligente. “A menina é uma tolinha, uma estúpida, uma malcriada. Palavras dessas nem aos rapazes ficam bem, quanto mais a uma menina!”, disse o presidente. E a aluna respondeu-lhe: “Tolinho, estúpido e malcriado é o senhor professor. Que eu saiba não ofendi ninguém, limitei-me a constatar um facto.” Fiquei surpreendido. O presidente disse que ia participar da aluna e ela que ia fazer queixa dele. E fizeram. Efetivamente, reuniu-se o Conselho de Turma e, pouco tempo depois, os professores já tinham chegado à conclusão de que a aluna tinha de ser suspensa porque ofendera o presidente do Conselho Diretivo. Eu e outro colega dissemos que nem no tribunal era assim. Então uma pessoa não é ouvida? Não há atenuantes, agravantes, não há nada? Era uma situação nova para todos e não se ia lá com suspensões, mas com diálogo, com um pedido de desculpa. E no final tudo se resolveu.

 

O que é que o homem emprestou ao professor e vice-versa?

A minha atitude de respeito, cordialidade e de reconhecimento do valor das pessoas, das diferenças. O ofício de professor exige negociação, equilíbrio de tensões, respeito, pluralismo, liberdade, equidade. Acabamos por emprestar também a calma e a paciência que temos como pessoa. Portanto, são duas condições que se ajudam muito: sempre estive de bem com a profissão e isso também me ajudou a estar bem comigo. Esta é uma profissão que exige emoção, muitos conhecimentos, mas também um equilíbrio muito grande entre a pessoa e a profissão, que normalmente é adquirido na escola. Embora tenha tido incidentes críticos, que me ajudaram a aprender, tive o privilégio de não viver as turbulências dos últimos anos. Acho que a maior parte dos professores tinha prazer em ir para a escola e ensinar os alunos, mas acho que hoje isso já não se vê.

 

O que mudou?

As pessoas não querem burocracia, querem ensinar, instruir, produzir conhecimento; querem formar cidadãos, e isso não está a acontecer. A escola no tempo em que a vivi era uma escola onde se ensinava e se aprendia, uma escola de acolhimento, de luta pela igualdade de oportunidades; era uma escola onde havia lideranças partilhadas, em que o diretor não era um mito, mas alguém que tentava definir regras pedagógicas, sonhar utopias para o projeto educativo, ser líder a partir de valores, era alguém que tentava que a escola não vivesse o drama perverso dos rankings, mas em função de um projeto educativo ajustado à realidade em que estava inserida. Portanto, acho que fui um privilegiado por conseguir conciliar a minha vida com a profissão, nos diferentes contextos em que trabalhei ao longo de 39 anos.


Foram anos, também, de muita aprendizagem.

Claro, aprendi muito. Mesmo no estágio, a aprendizagem foi interessante. Foi o primeiro ano em que houve profissionalização em exercício, e na época não trabalhávamos só na turma, mas também na comunidade. Nós podemos transmitir muito bem conhecimentos, e isso é importante na sala de aula, mas para além da aula há a pessoa do aluno, e essa tem família, tem relações sociais. Por isso, a Escola tem de lutar pela igualdade de oportunidades, não só em termos de acesso, mas também de sucesso escolar e educativo, porque senão vai produzir desigualdade. Isso foi algo importante que aprendi. No Magistério, o facto de ter dado Pedagogia permitiu-me olhar para a Escola já numa dimensão mais crítica. Depois, na universidade, aprendi que é importante investigar as nossas práticas educativas, refletir sobre elas e ver as asneiras que estamos a fazer, senão, vamos repeti-las durante anos sem nos darmos conta.

 

De que vai sentir mais falta? Do contacto com os alunos?

Sim. E de ver também o entusiasmo, e a falta dele, em termos das unidades curriculares. Vou sentir também a falta dos funcionários e dos colegas. Foram 28 anos a trabalhar na mesma instituição, pelo que se cria uma rede; é a nossa segunda família.

 

E qual considera que terá sido o seu maior contributo?

Penso que deixei, pelo menos, uma linha de investigação que não estava muito desenvolvida no contexto nacional – a Educação Intercultural. Hoje temos mais consciência de que é necessária, porque aprendemos que todas as culturas são incompletas e que o outro é alguém que pode partilhar connosco crenças e valores. Hoje temos consciência de que o fenómeno do multiculturalismo, que sempre existiu, se tornou muito mais complexo e acelerado a partir dessoutro fenómeno que é a globalização. Já não basta que as pessoas de diferentes culturas tenham o mesmo espaço, é necessário que interajam e que tenham atitudes de respeito, de reconhecimento e de valorização daquilo que é diferente. Esta visão ajuda-nos a criar novos mapas e a perceber que só a descentração e a interação permitem criar pontes, porque, afinal, o outro, que é diferente de mim, não é tão outro como isso. Há muito mais coisas que nos unem do que as que nos separam.

 

Numa anterior entrevista à PÁGINA, disse que tinha como lema “igualdade para viver, liberdade para conviver”. Passados 15 anos, mantém este lema?

Mantenho, embora em alguns aspetos já não seja tão romântico. Talvez agora dissesse “lutar contra as desigualdades”, porque se não lutar contra as desigualdades sociais, económicas, culturais, etc., não vou criar condições para essa “igualdade para viver”. E isso é ter acesso aos bens básicos: educação, saúde, casa, segurança social... Hoje estamos a perder direitos que tínhamos conquistado, e por isso a luta tem de ser ainda maior. Mantenho “liberdade para conviver”, e se calhar acentuo mais o reconhecimento e a valorização do outro. Durante muito tempo fizemos cultura a partir da identidade. Hoje, acho que temos de fazer interculturalidade a partir da alteridade, ou seja: é o outro que, muitas vezes, me ajuda a mim a ser; é o outro que me dá sentido para continuar a lutar e para, em última análise, dar à política e à sociedade aquilo que me parece fundamental – a dimensão ética, em que não vale tudo, em que há valores e em que a dignidade da pessoa está em primeiro lugar. Portanto, manteria o lema, mas tendo consciência de que o mundo em que vivemos é cada vez mais um mundo de desigualdades. Infelizmente, nos últimos tempos, elas têm-se agravado. Mas eu sou um homem de esperança.

 

Para terminar, quais são os seus projetos?

Vou continuar a militar em termos de cidadania cívica, porque acho que os tempos o exigem. Acho que cada vez mais temos de ter consciência de que o problema do poder é, também, um problema nosso e se, efetivamente, quisermos mudar as coisas, no sentido do respeito, do reconhecimento, do pluralismo, da equidade, da liberdade, temos de assumir as nossas responsabilidades e de nos comprometer social e coletivamente para mudar a própria realidade. Vou manter a minha linha de investigação sobre o espaço público de intervenção social e cívica, no Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras do Porto, e ultimar as teses de doutoramento e de mestrado que assumi e a que, uma vez que me comprometi, tenho de dar continuidade. Depois vou começar a reduzir um pouco ao trabalho, porque a vida de professor é muito intensa em termos de investigação, de preparação, de dádiva, embora não seja reconhecida. Acho que vou acalmar um pouco e dedicar mais tempo à família e a outros prazeres, como ler. Há tantos livros que deixei para trás…

Maria João Leite (entrevista)

Ana Alvim (fotografia)

 

HOMENAGEM

Testemunhos de homenagem a Américo Peres

(Chaves, maio de 2014)

 

“Académico e pedagogo reconhecido aquém e além-fronteiras, com uma obra científica das mais notáveis no seu ramo do saber, conferencista, organizador de congressos, animador e agente cultural... Américo Peres acaba de depor as armas no combate audaz, enérgico, perseverante, que preencheu toda a sua longa carreira profissional. Certamente, alguns dos sonhos ficaram pelo caminho. [...] Contudo, a sua mente fértil, o vasto saber e a energia científica que carrega continuam ativos e, esperamos bem, continuarão a apontar-nos caminhos de qualidade e de esperança.”

Alexandre Parafita

 

“Dizer UTAD em Portugal e na Galiza é dizer Américo Peres, aquele que nos ensinou a viver e a conviver, a acreditar na educação, na animação e no turismo como formas de construção de uma nova cidadania intercultural. [...] Ele ensinou-nos sempre que os alunos eram pessoas antes que números e que havia que respeitar os colegas mesmo pensando diferente. Américo era e é uma escola de diplomacia, de solidariedade com os mais necessitados, além de um magnífico anfitrião e guia. O seu sonho, que também é o meu, foi converter a UTAD e o Pólo de Chaves num projeto de campus transfronteiriço, num lugar de encontro na ‘raia’ entre a Galiza e Portugal que permitisse pensar o mundo dialogicamente.”

Xerardo Pereiro

 

“Queria um Pólo de Chaves da UTAD à altura dos altos desígnios desta instituição, com um vínculo mais efetivo à terra flaviense, e todo o Alto Tâmega, chamando a uma participação mais fecunda e profícua as instituições galegas de igual índole, num trabalho em comum, em prole das gentes que, vivendo os mesmos problemas, e portadoras da mesma matriz cultural, jamais, ao longo da história, nenhuma fronteira dividiu. A falta de visão de uns e a mesquinhez de muitos outros não deixaram levar por diante esse sonho [...]. Ficou, porém, a semente. Porque é isso que verdadeiramente importa. Mesmo que o terreno seja muito adverso. É este exemplo de perseverança, este legado de sonho e luta, de pessoa civilizada, mas sem tibiezas, que Américo Peres nos deixa.”

António Sousa e Silva

 

“Não haverá quem tenha passado pelo Pólo de Chaves, fazendo a sua formação em Ensino Básico, Educação de Infância, Animação Sócio Cultural ou Turismo, que não reconheça no Professor Américo, a competência e a generosidade, a excelência e o sentido de justiça. [...] Num tempo como o que estamos a viver, faz mais sentido do que nunca continuar a sonhar com utopias, que tem sido a sua grande lição. [...] o seu exemplo é mais importante do que nunca e dar-nos-á alento e ânimo para continuarmos a lutar por um país melhor, mais solidário e menos desigual, pela continuação e afirmação de uma escola pública de qualidade e de uma profissão docente digna.”

Cristina Costa Gomes

 

“Se um dia me pedissem para te pintar, Américo, / [...] No peito, pintar-te-ia uma flor. / Uma flor com pétalas de todas as cores, / [...] que, assim juntinhas, / representariam o teu respeito por todos, / o respeito que sempre demonstras / [...] Desenharia um balão, / que segurarias na tua mão. / Um balão bem cheio de amizade... / Branco da paz, da calma e da pureza... / [...] Ainda não estarias totalmente pintado, Américo... / Uma pessoa como tu não é só o que se pinta.”

Gastão Bianchi


  
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