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Retórica e rotundas

Entra-se no bairro, de carro, depois de contornar três rotundas que interligam ruas transformadas em vias rápidas nos descampados entre manchas suburbanas de habitação. Desde que o serviço de transportes deixou de atender o público para atender quem privatiza, o autocarro só tem horário da manhã ou horário da tarde, como as escolas sobrelotadas.
Ela vive no bairro há muito e deslocava-se bem. Agora, com o desenvolvimento moderno, sair do bairro para trabalhar ainda dá. Voltar é que já não é possível. Só é transportada até ao grande espaço comercial do outro lado das vias rápidas e das rotundas. Depois vai a pé, todos os dias, até casa, acompanhada por algumas amigas de longa data.
No bairro não há nada para fazer, a não ser conversar com quem também não tenha nada para fazer. A conversa levou-a inscrever-se na alfabetização. Primeiro tentou a escola, no curso noturno. Não ficou. Ainda nem se sabia dizer se ia haver curso noturno, mas também não foi a receção que ela esperava. Sentia-se tratada como uma criança, e afinal de contas já é avó de dois netos.
Haja respeito! Depois percebeu, sem ninguém explicar, que nessa escola estavam mais preocupados em levar pessoas a exame do que em levar pessoas à leitura e escrita.
Tem cinquenta e muitos anos, há 30 que está em Portugal, sempre a trabalhar, mas aquilo de aprender a ler e escrever nunca lhe saiu da cabeça. O que ela queria era assinar o nome e ler umas coisas simples. Também queria ver com os seus próprios olhos por que é que a fatura da água aumentou, e a da luz também. Coisas que nem todas as escolas ensinam. Por isso, inscreveu-se numa associação, com as amigas.
Agora, a volta é outra. Duas vezes por semana, entre o trabalho e fazer o jantar, ocupam uma “salinha” minúscula numa espécie de cave, com uma lâmpada de baixo consumo, umas paredes brancas e um quadro branco do tamanho de um ecrã de televisão médio. Quando todo o grupo está, não fica uma cadeira vazia. Ficam tão apertadas como no autocarro, quando havia.
A primeira experiência não correu muito bem. Letras e mais letras... Uma amiga, que, com 72 anos, pegou pela primeira vez num lápis para desenhar aquelas curvas todas, expostas no minúsculo quadro, desesperava. Ela até achava bem desenhar aquilo, mas tantos ii e aa... e palavras para crianças, numa língua que não a dela, era demais.
Não queria desistir e ficar novamente em casa...
De repente, as coisas mudaram: chegou uma nova alfabetizadora. Falaram. Com as amigas falara das compras, e os nomes dos produtos que compram apareceram no quadro. Uma colega falou de uma receita, e a receita lá estava no quadro. Até copiou com gosto.
Continuam a falar. Quando o entusiasmo é grande, falam na língua delas, que a voluntária também fala. Traduz-se o que não se percebia e procura-se ler o que não se entendia.
Escreveram. As letras passaram a ter menos curvas e são mais fáceis de copiar. Deixaram de escrever sons e letras, passaram a fixar o que contam quando falam. Em português.
Conta com orgulho que no trabalho já não tem de pedir o que sai a seguir. Na cozinha do restaurante, até há bem pouco tempo, não conseguia ler a ementa. Agora já consegue organizar-se com os papéis que lhe vão chegando. O medo de ser despedida outra vez, por não saber ler, desapareceu.
Hoje relata que foi tratar de papéis. Quando pediu explicações, disseram-lhe que estava tudo escrito e explicado, era só ler. Como ainda era muito, pôs-se a copiar para ler depois, com calma. Orgulhosa, conta que esteve a copiar durante mais de uma hora para depois pedir ajuda para aquelas palavras que não percebe.
Entretanto a escola fechou as portas, mas elas continuam a encontrar-se na salinha, duas vezes por semana.
Estive uma hora sentado ao lado dela, ouvindo o que tinha para me contar, lembrando-me das palavras da língua dela, que tinha aprendido alguns anos antes com as avós das crianças com que trabalhava na escola.
E não consegui deixar de pensar naquela escola que continua incapaz de ver a diferença entre uma pessoa de 50 anos e uma de seis anos, só porque ambas são analfabetas. A instituição, inserida num projeto político de sociedade, insiste em recorrer a rituais de escrita e leitura, para crianças e adultos, dos primórdios da Escola, velha de 300 anos e concebida para controlar os pobres. Esta escola, que se afasta das potencialidades que tem e que não liberta para a interpretação do mundo, é dirigida por quem, como Freire dizia, “são tão políticos como eu, só que, obviamente, em opção diferente da minha”.
Dentro e fora desta escola há quem continue a proporcionar uma relação com o saber de sujeitos detentores do processo de aprendizagem e de desenvolvimento do bairro, o que me parece ser, no tempo de retórica e rotundas, de toda a importância.

Pascal Paulus


  
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