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As tensões educativas no discurso da Veja e da Isto É

Veja e Isto É estão entre as revistas semanais de maior circulação no Brasil e são reconhecidas como muito influentes na formação da opinião geral da classe média. Mas quando o assunto é Educação, estas publicações são bastante discretas. Se a medida da importância de uma temática é o tamanho do espaço dedicado a ela, é possível concluir que estas revistas e seu público se importam pouco com a Educação.

Considerando que as revistas semanais publicam uma média de 56 números por ano e que cada um contém em média 40 artigos, a quantidade de artigos sobre Educação é pouco significativa: ao longo dos 16 anos cobertos pela pesquisa, a Veja publicou um total de 539 artigos sobre Educação, e a Isto É 303. No que tange ao Ensino Superior, também consideramos baixo o número de artigos publicados por Veja (155) e Isto É (78), embora este nível de ensino tenha tido maior atenção de ambas as revistas do que os níveis e modalidades de ensino da Educação Básica.
Esta tendência é um tanto curiosa tomando em conta que, na configuração do habitus da classe média, as questões educativas são altamente relevantes.
A importância que a classe média atribui à Educação é confirmada por pesquisas internacionais e por isso nos parece importante compreender este fato. A explicação simples é que a fração da classe média brasileira leitora da Veja e da Isto É, tanto como as próprias revistas, não problematiza ou problematiza muito pouco a educação de seus filhos, já que o tema da Educação não parece prioritário ou urgente. Nesta perspetiva, a classe média tendo resolvido suas necessidades educativas, passa a não perceber a Educação como problema.
Uma outra explicação, que consideramos mais abrangente, é que essas revistas se importam com a Educação, e se importam muito, particularmente com a universidade. Nesta consideração, Veja e Isto É publicam comentários e opiniões sobre temáticas educativas somente quando se questiona a meritocracia educativa, ou mais precisamente a legitimidade dos “méritos” educativos da classe média brasileira.

Acesso educativo e beneficiários
Antes de nos focarmos na discussão específica da ideia de meritocracia destas revistas, abordaremos como se articula o seu discurso educativo.
Todos os artigos sobre educação superior entendiam o que é e como deve ser uma universidade ou faculdade através de “tensões educativas”, entendidas como relações polarizadas entre duas forças que estão presentes no sistema educativo. Claramente, as tensões tinham conexão com a dicotomia Estado/Mercado, sempre presente neste tipo de publicações, mas com especificidade própria.
A primeira grande tensão que articula o discurso educativo destas revistas se dá entre a demanda de “educar” para melhorar o povo brasileiro (seu nível cultural, produtividade, capacidades, etc.), o que necessariamente deveria levar à expansão do acesso universitário. Esta é uma situação muito comum no tratamento dos problemas sociais nas revistas: identificação do problema (falta de Educação) e identificação da solução (expansão da oferta educativa). Só que neste caso a “expansão” aparece tensionada com uma inevitável perda da qualidade da universidade.
A segunda grande tensão polariza sobre quem seria o beneficiário primário da expansão do acesso educativo.
Em outras palavras, se o acesso à universidade oferece benefícios diretos ao estudante, individualmente, ou se os benefícios serão distribuídos de maneira geral a toda a sociedade. A importância desta tensão é que a decisão sobre quem é o principal beneficiário tem consequências diretas na argumentação sobre quem tem de pagar pela expansão dos estudos universitários. Neste ponto, é importante lembrar que a grande maioria dos estudantes dos cursos mais disputados das universidades públicas brasileiras (entre eles Medicina, Engenharia, Direito, Arquitetura, Odontologia) vem das classes médias urbanas, que estudaram nas escolas particulares, e que a grande maioria dos estudantes universitários que vem de famílias de baixa renda tem de fazer grandes esforços para pagar seus estudos em universidades particulares.

Os sentidos do “mérito”
Voltando ao sentido da meritocracia das duas revistas, a maior preocupação foi com o mérito daqueles que podem acessar as universidades públicas. Tal “mérito”, aferido historicamente por políticas de acesso ao Ensino Superior público, como o Vestibular, e mais recentemente pelo Exame Nacional do Ensino Médio, é colocado como garantia para a qualidade do ensino.
Assim, políticas de acesso diferenciado, como as Ações Afirmativas (AA), que, de certa forma, põem em discussão a legitimidade do subsídio público que historicamente o Estado brasileiro endereçou para a classe média, tiveram grande repercussão e destaque de capa em ambas as revistas. Mesmo políticas de ampliação das vagas nas universidades públicas que não disputavam os espaços tradicionais das classes médias urbanas, tais como programas com vagas em universidades privadas com subsídio público, ganharam espaços destacados.
O destaque destas tensões, via de regra, é que a sua racionalidade é aplicada de maneira diferenciada. A racionalidade que explica porque o Estado tem que subsidiar os estudos universitários da classe média é alterada quando se trata de estender o mesmo benefício para populações historicamente excluídas da universidade.
Na mesma linha, as revistas alegam que os benefícios da expansão universitária para populações historicamente excluídas serão primariamente individuais e não sociais.
Acesso e qualidade são colocados em lados opostos ou em disputa, mas quando defendem o status quo baseado nos supostos méritos dos estudantes de classe média que historicamente ingressaram nas universidade públicas, os benefícios dos estudos universitários passam a ser magicamente sociais, desaparecendo a tensão acesso/qualidade, o que justifica a gratuidade para eles.
Nossa pesquisa indica que tanto as revistas como os seus consumidores têm interesses bem claros em relação à Educação, ainda que na articulação do discurso sobre a universidade tenham que dar um “jeitinho” para justificar porque as tensões público/privado e acesso/qualidade produz um equilíbrio magicamente meritocrático quando falam da universidade pública para os setores médios e mudam numa direção claramente indesejável quando falam da universidade para as populações historicamente excluídas.
Nesse caso, poucos artigos não indicam falta de interesse; ao contrário, falam bem alto sobre a defesa de privilégios educativos. O balanço é difícil de sustentar e com nosso trabalho queremos contribuir para que esse discurso supostamente justo e meritocrático seja exposto em todas as suas limitações.

O discurso redentor consumista
Como essas posições são bem conhecidas dos leitores da PÁGINA, passamos a explicar como as revistas conseguem manejar essas tensões através de um modelo discursivo, ou protótipo, que denominamos de Consumismo Educacional Redentor. Neste modelo, que como todo discurso prototípico apresenta ideias híbridas que não necessariamente configuram um discurso sem contradições lógicas, a Educação Superior brasileira tem três objetivos principais:
- ser aberta e acessível a todos aqueles que alcancem os padrões de realização ou mérito;
- formar alunos plenos e equilibrados – a produção do conhecimento deveria levar em conta e estar a serviço dos benefícios econômicos;
- melhorar a sociedade;
Para alcançar estes objetivos, a Educação Superior deveria ter uma ou mais das seguintes características estruturais:
- os critérios de realização ou mérito deveriam se expandir para não apenas incluir a pontuação alcançada em exames padronizados – podem levar em conta qualidades dos alunos como a possibilidade que têm aqueles com pontuação mais baixa em situações difíceis de superar a adversidade (o potencial) e “diversidade”, os talentos (música, matemática e esportes), bem como raça, gênero, classe social, etc. (pode incluir AA e ajuda financeira ampliada);
- a competição deve ser a chave para o progresso entre os alunos que desejam entrar na universidade e também entre as instituições de Educação Superior (porém admite certo apoio para as AA);
- o papel do Governo deveria apenas ocorrer através do financiamento (sem distinguir entre públicas e privadas) e não se opor às associações da universidade com empresas privadas – aliás, essa associação tem de ser grandemente expandida.
No discurso redentor consumista, a Educação vai resolver todos os problemas da nação, mas só através do emprego de mecanismos próprios do mercado de consumo.
Os problemas da universidade brasileira passam a ser, simplesmente, deficiências na oferta e demanda num mercado de consumo de bens educativos, e por isso o enfoque de tipo administrativo se sobrepôs ao político, pedagógico e técnico. Os artigos publicados na Veja e na Isto É demonstram uma maior preocupação com a eficiência do que com a equidade e com os benefícios sociais das políticas de Ensino Superior, embora estes se façam presente – aliás, chama a atenção as pesadas críticas feitas à gestão das universidades públicas, especialmente ao uso dos recursos disponíveis.
Por último, a predominância do protótipo Redenção Consumista em ambas as revistas revela, por um lado, o reconhecimento de problemas de acesso e permanência no Ensino Superior e, por outro lado, que estes serão resolvidos quase magicamente mediante implantação de medidas de “controle de qualidade”, já que, ao longo do período pesquisado, notícias sobre as políticas de avaliação do Ensino Superior promovidas pelo Ministério da Educação e seus resultados são muito frequentes.
Tal qualidade é traduzida, na maioria das vezes, como mérito para as universidades públicas e adoção de mecanismos do estímulo ao consumo para favorecer as instituições privadas.

PROTÓTIPOS. A prevalência de um protótipo combina reflexão e elementos conscientes e também reações automáticas e inconscientes. Esta característica é em geral ignorada nas pesquisas educativas, que parecem entender as políticas da área como fruto de debates entre pessoas totalmente racionais e reflexivas que trocam pontos de vista com base em interesses perfeitamente definidos, a partir da adesão a princípios e ideias abstratas. Na nossa perspetiva, ignorar a dinâmica consciente/inconsciente limita significantemente não apenas a compreensão dos protótipos sociais, como também a possibilidade de trocá-los. Existem outros dois protótipos: Nostalgia Académica e Empreendedorismo Educativo. Para uma análise mais completa dos três protótipos ver Sales & Fischman, 2012.

Gustavo E. Fischman e Sandra R. Sales


  
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