Nunca um cantor tão legitimamente se apropriou dos versos de um poeta para tão singularmente definir o caminho percorrido ao longo da sua vida: esta foi sempre a atitude de Adriano Correia de Oliveira em tempos de resistência, antes e depois do Abril tão desejado e do qual foi o mais corajoso capitão das canções. Das nossas canções. Das canções da liberdade desejada.
Adriano Maria Correia Gomes de Oliveira nasceu no Porto (no nº 370 da Rua Formosa) em 9 de abril de 1942, filho de Laura Correia e Joaquim Oliveira. Recém-nascido, passou a residir na Quinta de Porcas, em Avintes, freguesia do concelho de Vila Nova de Gaia, cuja escola primária frequentou. Acabaria por regressar à outra margem do Douro, rio que sempre exerceu sobre ele grande fascínio, para estudar no Colégio Almeida Garrett e, posteriormente, no Liceu Alexandre Herculano. Em Avintes, Adriano despertou para as coisas da cultura, tendo sido sócio fundador da União Académica de Avintes. Mas logo mais demandou terras de Coimbra, cidade para onde se mudou em 1959, matriculando-se na Faculdade de Direito. Em termos musicais, Adriano nasceu para o canto nos ambientes do chamado fado de Coimbra, evoluiu no movimento da balada, assumiu o canto de protesto, impulsionou decisivamente a nova canção portuguesa, saiu para as ruas onde sempre andou ébrio de liberdade com o canto livre e a canção de intervenção e, depois de percorridas todas estas fases, afirmou-se como um dos mais dignos e expressivos criadores da música popular portuguesa dos nossos dias. “O que eu pretendo fazer” – afirmou Adriano nos inícios da sua carreira musical – “é, honestamente, renovar a música portuguesa, tentando um caminho que não seja único e dando às pessoas algo mais do que as chachadas alienatórias que por aí se cantam”. O desenhar de todo este caminho iniciou-se em Coimbra, palco de intensas e decisivas vivências da génese de uma importante consciência coletiva antifascista. Desta fase ficaram-nos quatro EPs, o primeiro dos quais intitulado «Noite de Coimbra», editado em 1964, e a recordação de fados como “Fado da Mentira”, “Balada dos Sinos”, “Canta Coração”, “Contemplação” e “Balada do Estudante”, entre outros, que constituem documentos de inegável valor testemunhal de uma época plena de interrogações projetadas para o futuro. Em meados dos anos 60, assimilando o esforço de renovação levado a cabo por Fernando Machado Soares, na esteira de Edmundo de Bettencourt e Artur Paredes, por um lado, e o trabalho de José Afonso no lançamento de formas musicais mais adequadas aos tempos em mudança, por outro lado, Adriano deu um fôlego novo a um movimento tão decisivo como controverso da evolução musical: o movimento da balada ou trova, através do qual se fortaleceram os mais representativos e duradouros alicerces da canção em tempos de denúncia e resistência. Na fase da balada, inscrevem-se dois álbuns singularmente designados pelo seu nome artístico (Adriano Correia de Oliveira), nos quais e através dos quais acontece o encontro com a poesia da resistência, da autoria de Reinaldo Ferreira, Manuel Alegre, Urbano Tavares Rodrigues, Borges Coelho, Fiama Hasse Pais Brandão, entre outros, e a música de José Afonso, Luís Cília, António Portugal e Rui Pato, simultaneamente com as suas próprias composições e temas de origem popular. Como não recordar hoje canções como “Trova do Vento que Passa”, “Pensamento”, “Rosa Negra Capa Negra”, “Menina dos Olhos Tristes”, “Canção com Lágrimas”, “Trova do Amor Lusíada”, “Exílio”, “Pedro Soldado”, “Canto da Nossa Tristeza”? Como não recordar o canto do nosso descontentamento lançado para um novo “vento que passa” com toda a sede – possível e impossível – de liberdade? Após cumprimento do serviço militar (sucessivamente passando por Mafra, Santarém e Lanceiros 2), Adriano fixou-se em Lisboa, em 1968, e com o curso de Direito incompleto (e que nunca viria a concluir, faltando-lhe apenas uma cadeira), trabalhou no gabinete de imprensa da Feira Internacional de Lisboa e como produtor da editora onde foram gravados todos os seus discos (Arnaldo Trindade). Em 1969, com o álbum «O Canto e as Armas», com poemas de Manuel Alegre, Adriano anunciou, uma vez mais, os ventos da mudança permanentemente procurada: a transição de um breve canto de protesto, herdeiro direto das mais vincadas qualidades crítico-interventivas da balada, para a chamada nova canção, transição de sobremaneira evidenciada pelo álbum «Cantaremos» (1970), basicamente construído com poesia de Rosalia de Castro, Manuel Alegre, António Gedeão e Assis Pacheco, e, do ponto de vista musical, contando com a inspiração criadora de Rui Pato, José Niza e Carlos Alberto Moniz, entre outros. Em finais dos anos 60, era visível o ambiente de mudança sugerido pelas obras de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Manuel Freire, entre outros. Mudança que irrompeu com toda a força no outono de 1971, justamente o início da fase da nova canção ou canção de intervenção, através de obras fundamentais: «Cantigas do Maio», de José Afonso; «Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades», de José Mário Branco; «Os Sobreviventes», de Sérgio Godinho; e «Gente de Aqui e de Agora», de Adriano. “Foi esse Outono um outono musical histórico”, diria José Niza, “o outono de uma viragem decisiva de mais uma página na evolução da música popular portuguesa. Todos nós tínhamos descoberto que a fase da viola heróica ou da viola às costas havia de dar lugar a um outro tratamento da forma musical, mantendo logicamente intocável o conteúdo político e sociopolítico dos textos”. «Gente de Aqui e de Agora» constitui, realmente, uma daquelas obras imprescindíveis para a compreensão da evolução da Música Popular Portuguesa, através da qual se constata uma continuidade de objetivos, que em Adriano nunca conheceram desvios ou hesitações relevantes: “A intenção é a mesma: poemas que tratem de temas que tenham a ver com a nova realidade social. Que a denunciem”. Após este trabalho, Adriano, que sempre se recusara a submeter as suas cantigas a qualquer tipo de censura salazarista, recusa-se a apresentar os seus novos trabalhos ao exame prévio marcelista, facto que o impediu de gravar até ao 25 de Abril de 1974 – refira-se que a sua inquebrantável coragem e determinação lhe foi acarretando os mais diversos ‘mimos’ da polícia política do regime fascista. Após o 25 de Abril, o Adriano generoso e sempre disponível para os atos de verdade e de luta pela dignidade entrega-se por completo ao canto e ao reforço da liberdade durante tanto tempo adiada. Vive-se então a fase do canto livre, durante o qual se continuam a assumir as grandes lutas do passado, inseridas obviamente numa realidade nova em dinâmica popular intensa. Adriano Correia de Oliveira, tal como outros cantores dos mais representativos de toda esta tradição de canto, realizou um sem número de atuações, estando presente nos mais recônditos lugares, atuando para as mais distintas causas e com as mais diversas audiências. A sua entrega foi total, mantendo, todavia, a recusa coerente do fácil e do circunstancial que sempre lhe conhecemos como atitude caracterizadora. O álbum «Que Nunca Mais», surgido em 1975 e tendo por base poemas de Manuel da Fonseca, é mais um dos seus vigorosos trabalhos de intervenção, no qual permanece igual a si próprio, assumindo a herança cultural que ele próprio tantas vezes definiu. De salientar que esta obra lhe valeu o prémio de Artista do Ano, atribuído pela revista inglesa Music Week. Em 1978, quando as «Notícias de Abril» foram publicadas sob a forma da voz de um pastor e de um recado dirigido à mais alta instância do poder constitucional, Adriano Correia de Oliveira fê-lo com a postura de todos quantos, como ele, sempre ousaram permanecer de pé, de cabeça erguida, apesar das manobras do poder para calar as suas vozes. E, numa altura em que o desafio do poder assumiu foros do mais despudorado boicote à divulgação do trabalho dos mais representativos cantores nos grandes meios ditos de Comunicação Social, justamente em 1980, Adriano reapareceu discograficamente com um trabalho soberbo, «Cantigas Portuguesas», numa demonstração clara de que por trás do movimento da música popular portuguesa dos nossos dias, mais do que os Zecas, os Adrianos, os Faustos, os Cílias ou os Godinhos boicotados, para só falar de alguns, está todo um passado de luta fortemente enraizada num canto que vem da terra, que é fruto de um diálogo muito intenso do Homem com a Natureza que insiste em ser-lhe adversa. Esta é, a nosso ver, uma das grandes lições que importa reter da obra de Adriano Correia de Oliveira, através do longo caminho percorrido pela música popular, que teve nele um dos mais generosos, criativos e corajosos criadores. Quanto mais não haveria para recordar da sua vida... Tanta terra percorrida, tanto canto de esperança e de liberdade... Tanto e tão forte acreditar que as coisas acabam sempre por mudar, porque “há sempre alguém que resiste”... Entre 9 de abril de 1942 e 16 de outubro de 1982 está mais do que uma vida: ficou uma obra que constitui a mais bela biografia de Adriano, para sempre...
Mário Correia
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