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Da memória

À Maria Ângela Oliveira

Creio que todos os leitores impenitentes, quando atingem uma certa idade (ponhamos, por exemplo, a linha divisória dos 60 anos), perdem alguma daquela vontade de ler coisas novas que os caracterizou até aí, para preferirem reler obras dos seus autores prediletos, se bem que nunca se eximam, de vez em quando, a incursões mais aventurosas.
Comigo acontece isso mesmo: há já algum tempo que vou retirando das estantes aqueles livros que me deram grande prazer e de que sinto enorme saudade.
É até frequente que tenha, distribuídos pela secretária e pela mesinha de cabeceira, vários, que vou lendo segundo os humores do momento: já me posso dar a esse luxo, sinto que os seus autores compreendem as razões de uma vida em que se foram acariciando lombadas após lombadas. Poderia falar do prazer físico proporcionado pelos livros, pelas suas encadernações ou pela qualidade do papel e da impressão, mas hoje é mesmo sobre o conteúdo e quem o engendrou que quero debruçar-me.
Confesso que ando agora às voltas com a nova edição das obras completas de Jorge Luis Borges, que a Debolsillo está a publicar, e com os textos (romances, ensaios, poesia) de Carlos de Oliveira, esse escritor único, que parece ter caído no esquecimento das instituições oficiais cuja obrigação seria promovê-lo – e a outros, seus amigos e camaradas de escrita: José Cardoso Pires, Augusto Abelaira, Manuel da Fonseca, para referir apenas alguns.
E é espantoso como a voz do escritor, que tive a honra de conhecer e com quem pude discorrer amiúde, durante o período em que morei perto da casa dele, regressa, pela pertinência das suas palavras, ao meu convívio mnemónico. O mais curioso é descobrir nuances, modulações da voz, que me escaparam quando o tinha diante de mim, à mesa do Toni dos Bifes, no Saldanha. É certo que o escritor era de uma discrição e ponderação, de uma parcimónia e sofisticação com as palavras (como é visível em toda a sua requintadamente elegante produção) que se tornava difícil, não poucas vezes, capturar todas as suas implicações, sentidos. Pois relê-lo é reencontrar a agudeza e argúcia do seu pensamento, a intensidade e clareza dos seus argumentos, a sua implacável honestidade intelectual.
Mas é também (e sobretudo) embrenharmo-nos naquele universo narrativo inigualável, naquela voz poética de absoluta compacidade, para reconhecer alguns seres torturados física e moralmente, para aferirmos a delicadeza dos cristais que subterraneamente crescem e se organizam. Visitar a Gândara e os seus pobres e ricos, infelizes e felizes, honestos e desonestos, habitantes é uma experiência que deixa para sempre marcas em qualquer leitor minimamente sensível e inteligente e que revela (igualmente) a grandeza e a tolerância do homem de letras que elevou a tradição romanesca e poética portuguesa a alturas insuspeitadas.
Quando assistimos, nos dias que correm à lufa-lufa, de autores que procuram a fama a todo o custo, ou quando assistimos à deliberada confusão entre êxito e mérito (não são, certamente, incompatíveis, mas pode haver equívocos indesejáveis), regressar à pureza cristalina da língua portuguesa trabalhada por Carlos de Oliveira na discrição e no silêncio da sua sala, à precisão harmoniosa da arquitetura das suas tramas, é uma forma de contrariar a tristeza e combater o negrume de dias tão encobertos.
Vocábulos de sílica, aspereza, / Chuva nas dunas, tojos, animais / Caçados entre névoas matinais, / A beleza que têm se é beleza. // O trabalho da plaina portuguesa, / As ondas de madeira artesanais / Deixando o seu fulgor nos areais, / A solidão coalhada sobre a mesa. // As sílabas de cedro, de papel, / A espuma vegetal, o selo de água, / Caindo-me nas mãos desde o início. // O abat-jour, o seu luar fiel, / Insinuando sem amor nem mágoa / A noite que cercou o meu ofício.
Eis um dos mais belos poemas de Carlos de Oliveira. A noite que cercou o seu ofício não parece muito diferente da noite que cerca agora, com inusitada crueldade, os ofícios de tantos e tantos compatriotas seus. Falta-nos, infelizmente, a sua voz serena, mas firme, para nos transmitir o alento que tão necessário é para todos nós, porque “que nos importa morrer / se não morremos de rastros?”
Recorramos, portanto, à sua obra: nela encontraremos um fulgor inextinguível, uma esperança imorredoira.

Salvato Teles de Meneses


  
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