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As universidades africanas em fluxo

“As ideias justas ou falsas dos filósofos da economia e da política têm mais importância do que em geral se pensa. Na verdade, são elas que quase exclusivamente governam o mundo. Os homens de acção que se crêem isentos de influências doutrinais são normalmente escravos de algum economista do passado”.

Tal como não é possível falar de cultura africana e de África como um território homogéneo em termos culturais, também a realidade política e social contradiz visões estereotipadas e essencialistas do continente. Alguns filósofos têm, sistematicamente, criticado visões essencialistas (tantas vezes fabricadas e alimentadas pelas elites intelectuais e políticas africanas), contrapondo uma concepção aberta de identidade cultural e frisando a complexidade cultural, social e política do continente. Ali Mazrui, entre outros autores, recorda os estereótipos discursivos que ignoram as seculares experiências interculturais em África e a sua tripla herança (como a designa). E Hountondji tem uma expressão notável ao referir-se a uma suposta imutabilidade cultural que alimenta essencialismos: Culture purity is an oxymoron.
No domínio da educação, a variedade de sistemas educativos remete para as heranças deixadas pelos diferentes países colonizadores. Os modelos persistiram após as independências, assim como (por imobilismo ou dependências várias) as práticas, as estruturas e a “exogenia”, como sustentam vozes que recolhem, ainda, os restos mortais das ideologias nacionais que propunham uma educação africanae uma universidade africana.
As universidades públicas, algumas fundadas no tempo colonial, anteciparam em África os subsistemas de Ensino Superior e a compreensão das actuais transformações exige um olhar sobre a sua história e a conexão entre as mudanças exteriores (nacionais e internacionais) e as transformações internas.
A história das universidades africanas tem de ser lida, pois, na sua dialéctica relação com os processos políticos, sociais e culturais que marcaram o continente, os quais, por sua vez, não podem ser interpretados à margem de articulações com fenómenos que ocorrem fora do espaço nacional. Quer na sua variedade, quer nas coincidências que registam, as mudanças que afectam essas instituições devem ser interpretadas como parte de reconfigurações mais amplas, de reestruturações sociais e políticas, internacionais ou mesmo globais. As circunstâncias da sociedade, da economia, das instituições e dos Estados africanos, tal como nas demais sociedades, são circunstâncias instáveis – em fluxo, como a cultura e as identidades culturais – e as percepções sobre o papel e a relevância da Universidade estão sob contínua pressão. As mudanças no plano organizacional, na oferta curricular e nas formas de articulação com diferentes sectores e dimensões da sociedade, assim como nos mandatos atribuídos, exprimem uma inter-relação sistémica e uma conexão com outras reconfigurações nacionais. As dimensões contextuais em que tais reconfigurações ocorrem revelam complexas articulações em rede, que se sobrepõem a fronteiras geográficas, políticas e disciplinares.
Olukoshi e Zeleza fazem uma excelente síntese das tensões e pressões que as universidades experimentam em África, ao salientarem o confronto com desafios titânicos (alguns novos, outros não tanto), como as rápidas transformações tecnológicas, económicas, políticas e socioculturais que contribuem para a erosão dos velhos sistemas e estruturas do Ensino Superior. São mudanças paradigmáticas, dinâmicas (internas e externas) enraizadas em pressões demográficas, financeiras, pedagógicas e sociopolíticas, que estão a “reconfigurar todos os aspectos da vida universitária” e, obviamente, a sua “tripla missão” (ensino, investigação, serviço).
Os debates, exprimindo distintas avaliações das mudanças, têm lugar dentro e fora da instituição, e os académicos dividem-se, naturalmente, por campos opostos, mesmo que não surja clara uma consciência do seu posicionamento. E dificilmente seria de outro modo. Afinal, “a universidade é uma instituição social e como tal exprime de maneira determinada a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade como um todo. (...) vemos no interior da instituição universitária a presença de opiniões, atitudes e projectos conflituantes que exprimem divisões e contradições da sociedade como um todo”, diz Marilena Chauí.

 

Narrativas de reconfiguração: uma interpretação

Nas transformações registadas na universidade pública moçambicana – Universidade Eduardo Mondlane (UEM) –, há sinais que permitem identificar narrativas de reconfiguração institucional em confronto. O interesse e a oportunidade do caso moçambicano justificam-se pela celeridade da expansão do Ensino Superior a partir de 1993, num contexto de simultânea liberalização, escassez de recursos, pressão da população estudantil e expectativas de resposta às necessidades do mercado de trabalho – Moçambique registava, nesses tempos, taxas de 15% de crescimento económico.
Num registo das percepções de docentes da UEM sobre reconfigurações institucionais, há algumas regularidades das narrativas, expressas através da recorrência de conceitos e de uma particular linguagem. É o caso, por exemplo, de vocabulário específico importado de outras áreas e transferido para as narrativas que enquadram as mudanças na Universidade e no Ensino Superior. Mas há, igualmente, exemplos relevantes de convivências ideológicas, de elementos discursivos em tensão, de concepções sobre as funções da universidade que expressam intensa conflitualidade.
Um dos argumentos mais constantes refere-se à celeridade das transformações contemporâneas e às interdependências entre os níveis local, nacional e global, aspectos capitais para justificar a eleição da noção de contingência nas interpretações dos contextos de mudança das instituições. Este argumento surge associado à noção de flexibilidade, invocada como esteio de legitimação das mudanças de paradigma organizacional. A flexibilidade curricular é citada, também, como instrumento privilegiado para incorporar as contingências e permitir à UEM responder à celeridade das mudanças exteriores.
A frequência de conceitos como “flexibilidade”, “prestação de contas” e “eficiência” sugerem a subscrição de uma narrativa de reconfiguração guiada por conceitos importados da Economia e da Gestão, colocando a universidade numa situação de disponibilidade para transitar – com alegadas vantagens e ganhos de produtividade (outro conceito recenseado) – da condição de instituição social à de organização.
Outro argumento focaliza a necessidade de abertura e melhor percepção (e resposta) das prioridades dos sistemas social e económico como condição para a legitimação da instituição universitária. O envolvimento com diferentes sectores é concebido em modalidades e graus diferenciados, desde a disponibilidade para responder a expectativas concretas da sociedade até ao envolvimento directo com o sector empresarial, através de cooperação técnica ou prestação de serviços de consultoria, passando pela assunção da missão de corresponder às necessidades imediatas do mercado de trabalho – a flexibilidade da oferta curricular teria, precisamente, essa incumbência.
Nestas reconfigurações emergem, aparentemente, concepções enquadráveis nas categorias que Michel Freitag designou por “universidade de resultados” e “universidade operacional”, mas também se observa um conflito com uma representação da Universidade persistente em muitos países africanos – a “universidade desenvolvimentista”, ideia que James Coleman assinalava como extraordinariamente incensada no Terceiro Mundo desde as independências.
Outras noções, como “desempenho”, “competências”, “cost-sharing”, “utilizadores”, “boas práticas”, etc. (nunca questionadas), evidenciam a infiltração nos discursos académicos de recursos narrativos das racionalidades económica e gestionária, ao mesmo tempo que se transfere a legitimação da Universidade e dos seus currículos para o mercado e para o juízo dos “stakeholders”.

 

Uma conclusão

Um contexto de extrema relevância destas reconfigurações é a circulação universal de discursos de políticas educativas e a interdependência criada pelos processos de globalização, que tendem a universalizar referências e modelos de reforma. Outro elemento é a vulnerabilidade das instituições universitárias em África, afectadas no final do século XX por crises induzidas pela escassez de recursos e por situações de instabilidade política – circunstâncias agravadas pelas políticas educativas impostas pelo Banco Mundial no âmbito das medidas de ajustamento estrutural. Nessas duas décadas, o Ensino Superior foi atingido, ainda, pela imposição externa de políticas que concediam prioridade ao Ensino Básico.
Apesar da ideia, assinalada por vários autores, de uma diversidade de adaptações e, portanto, de matizes nas reconfigurações das instituições e da oferta curricular, alguns estudos mostram sentidos coincidentes em certas experiências de reconfiguração – por exemplo, a da reestruturação da Universidade de Makarere (Uganda), como mostra um aprofundado estudo de Carol Sicherman. A amostra moçambicana revela alguns desses sentidos, consubstanciando a ideia de M. Chauí de que “é um equívoco colocar a relação entre universidade e sociedade como relação de exterioridade (...). Ao contrário, a universidade é uma instituição social e como tal exprime de maneira determinada a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade como um todo”.
Os actores académicos estão envolvidos, portanto, e de forma consciente ou não, em confrontos políticos, ideológicos, que ultrapassam a esfera estrita da Universidade. São actores centrais nos processos que parecem anunciar o eclipse da “torre de marfim” – há décadas anunciado por transformações paradigmáticas na esfera da economia política. Ao redefinir a sua missão, para responder às aflições do mercado e da economia, a Universidade reflecte as dinâmicas da sociedade, colonizadas mais e mais pelos imperativos e discursos da racionalidade económica.
Talvez aos académicos que se constituem actores nesses processos de transformação, imbuídos da missão de salvar as instituições (e o seu próprio mundo), e que replicam discursos, não ocorra, como aos políticos, inquirir a origem de tais falas. Quem fala o que fala sabe quem por si fala? Sabe quem por si diz o que se julga dizer? Valerá a pena dar um pouco de atenção a uma afirmação que deve andar pelos 80 anos, útil para nos lembrar a longue durée dos fluxos. É de Keynes, e está na sua «Teoria Geral do Trabalho, Juro e Capital»: “As ideias justas ou falsas dos filósofos da economia e da política têm mais importância do que em geral se pensa. Na verdade, são elas que quase exclusivamente governam o mundo. Os homens de acção que se crêem isentos de influências doutrinais são normalmente escravos de algum economista do passado”.
As universidades africanas estão em fluxo – como as suas congéneres em todo o mundo – e os académicos africanos, como todos os seus pares, são actores centrais nessa viagem de destino incerto.

Humberto Lopes


  
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