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Docência e avaliação

Coloca-se o debate em torno da avaliação dos professores de um modo geral a partir de uma premissa errada, que é a de pressupor que a avaliação deve distinguir, diferenciar, colocar em patamares diferentes aqueles que a ela se submetem. Estabelecida segundo o princípio do contingente – que nada diz sobre a qualidade pedagógica ou científica do trabalho, mas que se estabelece apenas a partir de um princípio gestionário que força o exercício da diferenciação –, o que parece fazer doutrina, à semelhança aliás do que se passa na avaliação dos alunos, é o princípio do “acertar”, da maior ou menor capacidade de responder àquilo que se espera do desempenho do professor. Quer isto dizer, o sistema ou modelo de avaliação é construído de acordo com a ideia de que se valoriza e pontua aquilo que é considerado acertado, deixando-se em suspenso aquilo que fica aquém deste resultado.
Em última análise, pode-se estimar a impossibilidade de um sistema assente no princípio da diferenciação se vir a preocupar centralmente com a qualidade pedagógica ou científica do trabalho do professor, já que, investir nisso poderia redundar, a prazo, na inexequibilidade do próprio sistema. Por outro lado, porque a sua métrica é a diferenciação, dificilmente se pode imaginar que tal sistema sustente ou estimule o trabalho colaborativo entre professores ou sequer o compromisso entre a avaliação do professor e a avaliação institucional. Por muito que uma das dimensões do sistema de avaliação possa conter o próprio sucesso na aprendizagem dos estudantes, ela traduzirá um modelo de trabalho apenas escrutinável pela relação entre o professor (o sujeito ensinante) e o programa que é suposto ele (ad)ministrar (o objecto a ensinar, centralmente determinado), ou seja, sem conter aqui dinâmicas que se prendem com a dimensão social do trabalho do ensino-aprendizagem.
Se a identidade docente, antes de o ser, é a identidade da área disciplinar, melhor se compreende esta ênfase nos conteúdos e muito menos nos contextos de aprendizagem, nas formas de aprendizagem, enfim, no compromisso institucional que comete ao trabalho de ensino-aprendizagem. Ira Shor («Empowering Education. Critical Teaching for Social Change»,1992) problematiza a neutralidade política de um currículo que evita questionar a escola e a sociedade, pois, ao fazê-lo, cerceia o desenvolvimento do estudante enquanto pensador crítico sobre o mundo que o rodeia. Conforme afirma, “se a tarefa do estudante é a memorização de regras e do conhecimento existente, sem questionar o objecto de estudo e o processo de aprendizagem, o seu potencial para o pensamento e a acção crítica será restringido”.
Necessariamente, o professor que orienta um modelo de trabalho segundo estas premissas, mobilizará ele próprio muito pouco de um pensamento crítico sobre a sua acção; estimulará no aluno aquilo que é objectivável enquanto aprendizado – até porque esse vector é determinante na sua própria avaliação – e declinará aquilo que, ao suscitar interrogações por parte dos alunos sobre o próprio processo de aprendizagem, corre o risco de resvalar para, supostamente, um campo de maior subjectividade.
Importaria que a avaliação, mas também a prática profissional que é seu objecto, restaurassem a noção de autoridade em detrimento da noção de poder, uma espécie de exercício delegado que tende a desvalorizar o trabalho docente e a relevância da dimensão relacional do mesmo. Como sugerem José Alberto Correia e Manuel Matos («Solidões e Solidariedades da Profissão Docente», 2001), “enquanto o poder é delegado por procuração, por decreto, ou através do exercício de mandato ou de uma ordem, a autoridade, associada às noções de autor, compositor, criador, inventor ou arquitecto, remete-nos mais para a ideia de alguém que se legitima pela sua obra do que para uma lógica referenciada a processos de legitimação apoiados na cedência de um poder cuja legitimidade transcende aquele que o exerce por delegação”. O professor não é um estrito intérprete; em última análise, é um construtor da própria interpretação – entre um currículo de saber, um processo de aprendizagem e os destinatários desse saber. E essa construção não é um trabalho isolado, é um trabalho com os seus alunos e, na menor das abrangências, com os colegas que nas restantes disciplinas são professores desses mesmos alunos. De outro modo, vence o princípio da diferenciação.

Henrique Vaz


  
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