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Entre a lei e a vida há caminhos a melhorar

Responsabilizar apenas as mulheres por uma gravidez constitui, hoje, um acto de medievalismo, sobretudo vindo de pessoas com formação científica, a quem já não se admite que considerem que a concepção é da exclusiva acção do útero feminino. Já lá vai o tempo, em séculos passados, em que se pensava que a mulher engravidava sozinha. Sabemos que o país em geral tem baixos níveis de literacia e que os comportamentos e atitudes que constituem o quotidiano de um português e de uma portuguesa nem sempre se pautam pela interiorização de dados relativos às informações veiculadas em matéria de saúde, quer seja reprodutiva, quer não, ou de bem-estar, quer noutras dimensões da vida social.
Importa também dizer que a vida das pessoas nunca é completamente racionalizável e existem sempre dimensões em que a nossa razão não é a única a mandar. No que se refere à contracepção e ao aborto, diversos estudos têm evidenciado que as práticas sociais e as representações são um conjunto complexo e heterogéneo que mistura crenças religiosas com informações científicas e o nosso olhar sobre o comportamento de determinada pessoa deve ter em conta o contexto cultural e social em que ela vive, mais do que produzir afirmações descontextualizadas, pelo risco de enviesar o entendimento dos factos.
Sabemos que existem ainda algumas pessoas que tentam recorrer ao aborto clandestino. Sabemos que alguns casais não usam qualquer método contraceptivo eficaz. Mas sabemos também que há alguns sectores sociais que continuam a divulgar uma mensagem de que os métodos contraceptivos não devem ser utilizados – estranhamente, muitos desses sectores são os primeiros a culpar as mulheres quando aparecem grávidas. Sabemos, igualmente, que toda a sociedade, com a publicidade na vanguarda, socializa para o princípio do prazer, sexualizando diversas práticas da vida social, incentivando à sensualidade e ao hedonismo.
E sabemos que, face a esta corrente na sociedade, outras existem que querem fechar os olhos e negar o direito a uma educação sexual real, assente nas vidas concretas dos nossos rapazes e das nossas raparigas, tapando o sol com a peneira, fazendo de conta que estamos num mundo ideal ou culpabilizando as e os jovens se elas e eles não conseguirem construir esse mundo de relações ideais – coisas que as e os adultos/as das gerações anteriores não conseguiram. Sabemos ainda que há muitas mulheres que vivem num contexto familiar de violência, em que estão proibidas de usar contraceptivos (usando-os muitas vezes às escondidas). Sabíamos, também, quando lutámos pela despenalização do aborto, que o processo social de mudança das práticas não se ia fazer com nenhum passe de mágica – como, aliás, nada na vida se faz com passes de mágica. E temos trabalhado. Consciencializando, informando, formando.
A Associação de Planeamento Familiar (APF), assim como a UMAR, têm sido incansáveis na formação para práticas responsáveis, no apoio a jovens e menos jovens para a racionalização das suas atitudes e comportamentos e decisões informadas e seguras, quer no que se refere à sexualidade, quer às relações de intimidade. Por isso, a UMAR está solidária com a APF na luta pelos direitos humanos das mulheres e dos homens e contra todas as formas de discriminação e obscurantismo.
Mais ainda, constitui uma mentira maldosa e perigosa afirmar-se que se gasta mais dinheiro dos contribuintes com o aborto depois da sua legalização. A memória não pode ser tão curta. Ou já esqueceram os custos do aborto clandestino? Ou será que lhes interessa esquecer? Trazer um caso para pôr em causa a legalização do aborto, quando o aborto clandestino rondava as dezenas de milhares de casos, constitui uma manobra demagógica para encobrir o salto civilizacional que Portugal deu com a Lei 16/2007, de 17 de Abril.
Que há muito para fazer, temos a certeza. Mas também temos a tranquilidade e serenidade de tudo estarmos a fazer, dentro de todas as nossas forças e recursos, para melhorar ainda mais as condições das mulheres no acesso à informação e formação no que se refere a uma vida com direitos, em todas as suas dimensões, do trabalho à maternidade, da sexualidade à contracepção, da cultura ao namoro, da família à política.
É fácil atirar pedras. Criticar quem faz, é a arma preguiçosa de quem não quer que o país avance em igualdade.

Maria José Magalhães


  
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