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Ousar, ousar!

... o combate da mulher é um combate da humanidade...
Samora Machel

Muito se avançou neste século no que respeita às conquistas emancipatórias da Mulher, mas sabemos todos que, quer a Oriente quer a Ocidente, quer a Norte quer a Sul, a opressão da Mulher na vida profissional e na vida privada é uma realidade porque é uma consequência da sua exploração na sociedade, tal como o é a exploração dos homens.

Comemorar datas centenárias que mudaram o curso da história dos homens constitui acto de toda a importância por variadíssima ordem de razões. Em primeiro lugar, pelas razões ideológicas que impulsionam a acção e que pragmatizam o sonho que vem crescendo no seio de um grupo sempre minoritário e que, a dado momento, se torna imperioso para um largo número de pessoas. Em seguida, para não deixar esquecer aqueles que ousam pôr em prática o que consideram fazer avançar a História, a heroicidade dos feitos de tantos anónimos, nomes que os arquivos não retêm, actores da verdadeira mudança. Por último, pela relevância dos próprios factos que fazem com que o mundo pule e avance, como diz Gedeão.
Vem este intróito a propósito de 2010 ser ano de duas grandes datas centenárias: da implantação da República Portuguesa e da resolução de se organizar um Dia Internacional da Mulher Trabalhadora. Dada a importância dos dois factos, não questionamos, nem por um segundo, a necessidade de se comemorar e lembrar, com toda a seriedade, solenidade, rigor e alegria, as ideias neles contidas, os seus heróis e as consequências deles advindas.
A primeira data, nacional, como é do conhecimento comum, está já a ser comemorada com um vasto e diversificado programa, público e privado, que permite a instauração da polémica, o confronto de opiniões e, por inerência, melhorar o conhecimento histórico, assim o queiramos todos. A segunda data, essa, tem vindo a ser ridicularizada por uns, descontextualizada das suas razões objectivas por outros e passou a ser mais um belo dia para o consumo. Façamos um pouco de história e logo veremos que não podemos deixar o assunto por tão pouco.
Em 29 de Agosto de 1910, na 2.ª Conferência das Mulheres Socialistas, realizada em Copenhaga, foi aprovada a resolução de se organizar em todos os países um dia dedicado às mulheres, tendo como primeiro objectivo (entre outros) lutar pelo direito ao voto. Proposta por um grupo de mulheres americanas socialistas, a resolução foi aceite por todos os presentes, de várias nacionalidades, não fixando o dia ou mês para tal comemoração – as primeiras manifestações para assinalar este dia aconteceram sempre por finais de Fevereiro ou Março, só se fixando o 8 de Março em 1919.
Homenageavam-se as operárias tecelãs e costureiras nova-iorquinas que, em Março de 1857, morreram queimadas em plena greve por melhores condições de trabalho e pela redução das 12 horas laborais diárias. Honravam-se as 600 trabalhadoras russas que morreram às mãos da polícia czarista durante a greve dos 86 dias (22.11.1909 a 15.02.1910). Lembravam-se as feministas americanas e europeias que lutavam pelo direito ao voto. Celebrava-se a consciência da desigualdade. Celebrava-se a coragem de tantas mulheres que exigiam paz, pão, condições seguras no local de trabalho, horários compatíveis com a vida familiar e a capacidade humana, direito a intervir pelo voto nos destinos dos seus países, direito à educação, direito à igualdade de oportunidades, direito, direito, direito...
Desta época destacam-se os nomes de Clara Zetkin, socialista alemã, directora do jornal «A Igualdade» e membro da Internacional Socialista, e Alexandra Kollontai, revolucionária bolchevista, contemporânea de Lenine, a quem se deve a fixação da data no dia 8 de Março – mais tarde, em 1975, a Organização das Nações Unidas adoptaria essa data para lembrar quer as conquistas sociais, políticas e económicas das mulheres, quer as discriminações e violências a que muitas estão sujeitas em todo o mundo. O rigor de alguns factos que se apresentam carece ainda de investigação isenta, se tal pode acontecer. As interpretações que existem, sobretudo a partir da década de 60 do século passado, valorizam certos acontecimentos e privilegiam intervenientes em detrimento de outros, construindo a história a partir do seu ponto de vista ideológico. Mas uma coisa é certa, e é isso que nos faz afirmar que este centenário não pode passar em branco: a resolução de dedicar um dia do ano às causas da Mulher é fundamental para a emancipação dos povos.
Muito se avançou neste século no que respeita às conquistas emancipatórias da Mulher, mas sabemos todos que, quer a Oriente quer a Ocidente, quer a Norte quer a Sul, a opressão da Mulher na vida profissional e na vida privada é uma realidade porque é uma consequência da sua exploração na sociedade, tal como o é a exploração dos homens. Falar desta forma nos dias que correm provoca em alguns um sorriso amarelo, sobretudo nos que pensam que o questionamento pós-modernista e as suas teorizações resolveram os problemas modernistas e fizeram caducar as revindicações elementares. Grassa por aí uma fraseologia “pacifista” e de “luta pela paz”, quando, afinal, todos os dias nos é declarada guerra no local de trabalho, na escola, no escritório, na fábrica, na empresa, no campo, na clínica, no banco – guerra, essa, que temos vindo a perder, por falta de consciência do valor que tem a nossa capacidade de trabalho.
O que todos sabemos, e não podemos esconder atrás de discursos aparentemente progressistas, é que a Mulher continua a sofrer na carne a opressão física: baixos salários, horários laborais longos, idade tardia para a reforma, falta de apoio eficaz ou inexistente para os filhos, desemprego por ser mulher, desemprego por maternidade, duplicação do horário de trabalho por, na maior parte dos casos, ser a responsável por todas as tarefas domésticas e de educação dos filhos, discriminação salarial e em relação a cargos de chefia... A lista de situações objectivamente opressivas é longa, mas não está completa.
Mas não é só fisicamente que a Mulher sofre opressão, sofre-a também no plano moral e psicológico. É sobretudo entre as mulheres que os poderes da superstição, do obscurantismo, da ignorância, mais se alimentam, mantendo-as num estado de medo permanente, destruindo-lhes o espírito de iniciativa criadora, liquidando-lhes o sentido de justiça e crítica, reduzindo-as à passividade, à aceitação do estado de exploradas e oprimidas como próprio do facto de nascerem mulheres. E deste modo as mães educam as filhas, perpetuando, sem querer, uma condição imprópria de subalternidade.
É esta aparente inevitabilidade da condição da Mulher – que ainda hoje continua a ser fomentada em todo o mundo – que conduz à sua alienação relativamente aos assuntos sociais, económicos e políticos, por mais leis e quotas que se decretem. Alienação que não é só dela, é também do Homem, pois sofre dos mesmos medos de humilhação, de ser oprimido, de ser despedido, de ganhar pouco por muito trabalho. Os mecanismos usados para o alienarem, e assim contarem com a sua passividade, são os mesmos, e, muitas vezes, eles próprios os usam contra as mulheres suas companheiras, não compreendendo que ambos fazem parte da imensa massa de explorados.
Aqui chegados, muitos dirão que este assunto está esgotado, que, olhando à nossa volta, já nada se passa assim. Que o mundo avançou, as leis laborais evoluíram, a maternidade é respeitada, o voto é um dado adquirido, há muitas mulheres emparceirando com homens em cargos de chefia; só é oprimido quem se deixa oprimir, o assunto passou a ser do foro privado e cada um é que sabe da sua vida e daquilo de que gosta...
E é então que convidamos os leitores a olharem para o mundo, para a situação das mulheres africanas, das árabes, das chinesas, das sul e norte-americanas, tailandesas, coreanas, tantas europeias, licenciadas, mestradas, doutoradas, e observemos os seus estatutos laborais e sociais – não excluimos da lista a Mulher portuguesa, que, cem anos passados sobre a 1ª República e mais de três décadas sobre o 25 de Abril, continua a ver os seus direitos conquistados serem-lhe subtraídos num abrir e fechar de olhos, em nome de uma crise de que não tem culpa e com a qual não colaborou. Chega então o 8 de Março e abraçamo-nos e beijamo-nos, alienados das razões que motivaram as mulheres que morreram na fábrica de Nova Iorque, as que morreram nas ruas de Moscovo, as que morrem todos os dias por razões étnicas, religiosas, de insalubridade no trabalho, por excesso de esforço, por maternidade, infecções sexuais ou outras, por violência doméstica. Os motivos que, em 1910, levaram à resolução de ser marcado um dia específico para lembrar os problemas das mulheres em todos os países continuam pertinazes, quer os específicos quer os comuns aos homens. Basta olhar à nossa volta. Vamos continuar assim?

Hermínia Bacelar


  
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