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O manto diáfano da hipocrisia

Numa das suas recentes intervenções (cf. Jornal Público, 17 de Abril) o Presidente da República veio publicamente alertar-nos para a importância decisiva da Matemática, considerada como “imprescindível para o desenvolvimento do país”. Segundo ele, será fundamental ultrapassar o “clima depressivo” que rodeia a disciplina e combater a iliteracia matemática, removendo este importante “obstáculo ao desenvolvimento”. Em síntese, pode dizer-se que a nossa ignorância colectiva, neste caso em Matemática, é um dos factores que tornam clara a nossa responsabilidade na construção de uma sociedade próspera.

No mesmo sentido, até há bem pouco tempo, era-nos dito que as situações de desemprego radicavam, principalmente, nos baixos níveis de “empregabilidade”, susceptíveis de ser eliminados por um maior investimento na educação. Este tipo de discurso constitui uma variante da habitual cantilena dos dirigentes e poderosos que pretendem “defender o nosso bem” e, ao mesmo tempo, nos culpabilizam por não o alcançarmos.

A permanente manifestação de intenções extremamente generosas relativamente à nossa educação, à nossa saúde e a outros direitos sociais, aparece, em regra, como resultado do mais genuíno altruísmo e, no caso dos responsáveis políticos, da sempre exaltante e exacerbada missão de “servir”. Um mínimo de atenção à informação que, diariamente, nos é disponibilizada pelos órgãos de comunicação permite desmontar este discurso dúplice e oculto por um manto de hipocrisia. O exemplo das preocupações com a prestação de cuidados básicos de saúde, reiteradamente repetidas por todos, ilustra bem essa postura hipócrita.

O jornal Público, na sua edição de 25 de Março, informava, com grande destaque na primeira página, que “doentes com cancro enchem serviços públicos quando esgotam seguros privados”. Como se explica na notícia, cada vez mais doentes, nomeadamente do foro oncológico, são forçados a interromper tratamentos, mudar de médico e de instituição, transferindo-se do sector privado para o sector público, por ter sido atingido o “tecto”, em termos financeiros, dos seus seguros de Saúde. Ou seja, afinal os miríficos benefícios da aposta em seguros de saúde, em entidades privadas, revelam uma verdade bem amarga: por um lado, os seguros de saúde só podem efectivamente proteger os ricos; por outro lado, o negócio dos seguros faz recair os riscos no utente e, em termos de saúde, só interessa às seguradoras privadas estabelecer contratos de saúde com pessoas saudáveis, ou que tenham doenças compatíveis com aquilo que pagam.

Dois dias depois (Público de 27 de Março), o mesmo jornal consagra o seu editorial a esta magna questão, alertando para a iminente ruptura dos sistemas de saúde, públicos e privados o que, no caso dos segundos, não se compreende uma vez que só têm lucros. Como se explica então esta ruptura iminente? Ela resulta de “um conjunto de evoluções [que] torna imparável o aumento dos custos”. Essas evoluções são o resultado de haver “cada vez mais e melhores tratamentos capazes de prolongar, com qualidade, a vida do mais humilde dos cidadãos”. Impõe-se, portanto, “reorganizar e optimizar os serviços”, sem que isso signifique, como se enfatiza neste editorial, qualquer espécie de “economicismo”, como apregoam os mal intencionados.

Acontece que nesta mesma edição do jornal, em cujo editorial se choram “lágrimas de crocodilo” sobre a nossa saúde, distribui-se gratuitamente, como encarte, uma publicação, Executive Health & Wellness, que se atribui como “missão fundamental informar sobre o state of art e as tendências na área da saúde e do bem-estar, os prestadores de serviços de qualidade, divulgando o conhecimento, estratégias e fundamentos para a adopção de um estilo de vida saudável”. A leitura desta maravilhosa revista permite-nos compreender muito melhor, quer os factos noticiados no Jornal Público, quer as opiniões editoriais expressas a propósito, quer a relação entre ambas. Um “consultor científico” da referida revista encarrega-se de nos esclarecer sobre o sentido e o alcance das preocupações sobre a nossa saúde: estudos empíricos demonstram à evidência os benefícios (para as empresas) dos programas de “Health Management” que são, hoje “uma realidade” que comprova que “colaboradores mais saudáveis são colaboradores mais produtivos” o que significa que o investimento em saúde é (para as empresas) um “investimento rentável”. Com a maior candura apresentam-se exemplos de programas desenvolvidos em empresas que elucidam sobre a relação virtuosa entre “programas de redução de peso e de pressão arterial” e a diminuição de factores de risco associados ao absentismo e quebras de produtividade.

No contexto da crise de sociedade em que vivemos será que continuaremos a ser embalados com as ilusões e hipocrisias de sempre? E se nós lhes tratássemos da saúde?

Rui Canário
Universidade de Lisboa.
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação


  
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