Semanalmente nos reunimos para tratarmos de assuntos diversos relacionados à escola e foi em uma dessas reuniões que a professora desabafou:
— Aquela menina é muito chata!
— Chata? Como assim? Perguntei.
— Ela quer sempre ser melhor que as outras, sempre sabe mais…
A professora tentava justificar para o grupo o que considerava inoportuno na menina. Intrigada pelo que ela poderia estar justificando como chata, indaguei um pouco mais sobre a “chatice” da aluna e ela respondeu:
— Ela vive competindo com uma outra menina da sala e quer sempre ser melhor…
Tenho procurado desafiar o meu próprio olhar observando com estranhamento os lugares que historicamente têm sido ocupados pel@s professor@s e pel@s alun@s, foi com esse olhar e inserida nesse contexto que desconfiei e tentei compreender o que era ameaçador na relação entre a aluna e a professora.
No dia seguinte, estávamos acabando de planejar a nossa primeira atividade e nos organizando, quando alguém bateu a nossa porta. Ao abrir, deparei-me com a professora que me disse:
— Ela pode ficar?
Por alguns segundos oscilei como se não soubesse do que se tratava, mas logo recordei do convite que fizera a professora no dia anterior.
— Essa é a Larissa! Disse a professora.
Logo, entendi do que se tratava e falei:
— Claro, pode entrar vai ser um prazer tê-la em nossa sala, Larissa.
Com o rosto escondido, atrás do seu boné rosa, Larissa sentou-se e quase não conseguia contemplar as demais crianças. Era nítido o desconforto da menina e tentei quebrar o clima de expectativa que começou a gerar em torno da situação.
— Venha Larissa!Pode sentar-se aqui... Falei.
Antes mesmo de tentar explicar sobre o que estava acontecendo, uma das crianças perguntou:
— O que ela está fazendo aqui?
— Veio nos visitar, vai passar a manhã conosco... Respondi.
— Mas por quê?
— Por que só ela?
As perguntas começaram a surgir, não havíamos nos preparado para a chegada da menina. Tentei começar a atividade a fim de desvirtuar o foco de atenção para a situação que estava posta, quando uma das crianças me interrompe:
— Quem você vai trocar?
A pergunta era certeira, capciosa. Foi aí que percebi o quanto insensata havia sido a decisão. Confesso que foi naquele momento que me dei conta realmente do peso daquela atitude.
— Eu não preciso trocar ninguém; preciso?
— Há! Fala sério, professora! Quem você vai trocar?
Foi a partir da pergunta que percebi o quanto prolixa era aquela situação. Percebiam claramente como se constitui a lógica da escola e como se constitui a lógica do poder. Deveriam estar se sentindo ameaçados e chegando a conclusão de que qualquer um pode ser retirado daqui e levado para outra sala, sem maiores argumentações. Essa experiência se deu na Escola Municipal Diógenes Ribeiro de Mendonça, em Niterói, Rj, onde trabalho com um grupo de trinta e um alunos do segundo ciclo. No nosso município, as escolas da rede municipal trabalham em regime de ciclos. Dentro dessa proposta, é comum os reagrupamentos de crianças acontecerem por centro de interesses ou grau de dificuldades.
Desconfiaram do fato de só a Larissa chegar a nossa sala e não um grupo de crianças, como é comum. Foi raciocinando sob essa ótica que provavelmente suspeitaram de que não seria um reagrupamento e sim uma troca de alunos. Poucos minutos depois, uma outra criança falou:
— É Delcy que você vai trocar professora?
Delcy, menino magrelo, olhar articulador. É um pouco mais velho que a turma, tem 11 anos, já ficou retido em uma etapa anterior. Faz as atividades propostas quando quer e seu comportamento oscila. Muito faltoso, o que dificulta ainda mais o seu desenvolvimento. Porém, é criativo quando o assunto é atrapalhar a aula, canta muito bem pagode e funk. Apesar da descrição não ser das mais felizes, somos amigos. Algumas vezes, me permite trabalhar com tranqüilidade, mas na maioria das vezes canta durante a aula, joga bolinha de papel nos outros, esconde material dos colegas provocando muitas insatisfações e confusões.
Continuei a olhar sem nada dizer, deixei no ar, por alguns instantes, aquela pergunta. Não foi preciso responder, Delcy irritado e com ar de quem estava reprovando aquela situação, disse:
— Eu não vou pra lugar nenhum, sai fora! Cala boca aí, hem… Se continuar vai ver só…
Pergunto a turma:
— Vocês acham que eu posso sair por aí trocando todo mundo?
A indagação das crianças me fez refletir em como nos colocamos no espaço da escola e como nos fazemos professoras. Não se trata somente do sentimento de menos valia externado por aquela menina, mas como nos apropriamos do lugar de professor@, ali demarcado como lugar de poder, e fazemos valer o sentimento de colonizador que em nós habita. Comecei a pensar o quanto imprudente havia sido a minha atitude, em convidar a menina para ir a minha sala, e da professora em propiciar a ida, sem ao menos pensarmos alternativas para ingressar-lhe ao novo grupo.
Não demorou e Larissa já estava de posse das revistinhas e livros que guardamos em nosso armário. Assim, como os demais Larissa confeccionou um envelope para arquivar as produções, emprestou materiais e pediu emprestado. No final do dia, ela se aproximou de mim e disse:
— Tia, eu posso ficar aqui?
Brinquei devolvendo-lhe a pergunta:
— É namoro ou amizade?
— É namoro. Respondeu sorrindo.
Karla Berbat Netto Universidade Federal Fluminense - UFF
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CEARTEAU, Michael. A Invenção do Cotidiano I. Petrópolis. Vozes.1994.
MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/ Projetos Globais: colonidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte. Ed. UFMG. 2003.
PAIS, José M. Vida Cotidiana: enigmas e revelações. São Paulo. Cortez. 2003
FREITAS, Luis C. Ciclos, Seriação e Avaliação. Confronto de lógicas. Ed. Moderna. 2003.
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