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Não sei se me vejo como uma pedagoga. Para mim o termo é demasiado

O facto de ter estudado em casa, com professores particulares, até à ida para a universidade, fê-la ter uma educação pouco comum à generalidade das nossas crianças?

Nessa altura ficava muito ansiosa por ver as outras crianças irem para a escola. Tinha muita sede de comunicação, tanta como agora tenho; e de solidão, mas não daquela solidão egoísta. Como hoje, também.

 

Estudou em casa até que ano?

Ao 7º ano. Depois fui para a Faculdade viver lá a infância.

 

Foi uma opção familiar?

Foi, naquele tempo era tudo muito distante. Eu bem sei que tinha a quinta, tinha as árvores, irmãs, primos, mas a escola é um lugar de convívio muito importante para a criança.

 

Tendo em conta esse tempo em que aprendeu em tutoria (ensino doméstico) e os muitos anos de professora na rede pública (ensino de massas), qual lhe parece o de maior eficácia na aprendizagem?

Com certeza o ensino de massas, quando é feito com amor e com saber. E com condições de trabalho. O ensino em comunidade é muito importante. A escola é um lugar de convívio fundamental para a criança.

 

A Matilde está perto dos 60 anos de carreira literária...

Só disse que escrevia quando, estava então a terminar a Faculdade, ganhei um prémio, no concurso “À procura de uma novelista”, promovido pelo jornal O Século e o Rádio Clube Português. Nem tinha a percepção que podia ter uma vida virada para a escrita. A minha vida activa foi como professora. Gostei muito de ser professora.

 

Foi também professora de literatura infantil. Saiu porque quis...

Foi iniciativa minha (o meu pai estava muito doente e precisava muito de mim), depois de quatro anos de actividade na Escola do Magistério Primário, onde se fizeram os primeiros programas de literatura infantil (no qual colaborei com a Dulce Rebelo). Depois estivei no Jardim-Escola João de Deus, cerca de três anos.

 

Escreveu mais de 40 livros (para além dos muitos prefácios) e foi sempre conciliando a escrita e a docência.

Eu escrevia textos para adultos mas depois comecei a ensinar e estabeleceu-se um diálogo com a infância e a adolescência e quando escrevi o primeiro livro para crianças O Livro da Tila (1957) fiquei admirada com os meus papéis. O livro tinha sido resultado dos meus diálogos com a criança. Tinha sido professora em Portalegre e em Elvas, com aulas de manhã e à noite. Estimei muito os alunos da noite, como estimava os outros, pelo seu esforço, pela sua vontade. Como se deve respeitar todo o aluno que se julga na nossa dependência, e até está. Para mim, o mais difícil era ter de os examinar. Mas comecei a escrever porque tinha feito um diálogo natural com a criança e a escrita é sempre uma resposta a nós próprios.

 

Foi o ensino que a levou à escrita?

Foi, eu vinha a casa todos os fins-de-semana, visitar os meus pais e lia no comboio o que tinha escrito no Alentejo e pensava: mas isto o que é? E fui ter com a Maria Lúcia Namorado, a proprietária da revista «Os Nossos Filhos», uma senhora admirável, que foi uma grande amiga (faleceu há dois anos); fui muito envergonhada ter com ela e disse-lhe «veja o que eu tenho aqui», e ela gostou muito e disse que eu tinha de publicar. A literatura para a infância ainda era qualquer coisa de distante. Apesar de haver gente de tanto mérito e valor real que tinha escrito para a infância. Por exemplo, o Aquilino e O Romance da Raposa, um livro extraordinário que podia dar um excelente filme.

 

Rasgou caminhos na literatura.

Se rasguei foi a caminhar na floresta. Outros sim, o Raul Brandão e a Maria Angelina com o Portugal Pequenino, outro livro que também vejo em filme, e outros autores, Jaime Cortesão, Maria Lamas (o facto de ter estudado em casa deu-me a felicidade de ter como professora, a irmã da Maria Lamas). Eu ainda hoje sou muito inábil para edições tenho sempre de ter quem me dê a mão e a Maria Lúcia pediu ao Calvet Magalhães para me ajudar. E foi assim, o meu primeiro livro foi publicado com a chancela de «Os Nossos Filhos». Naquele tempo havia outros modos de ilustração, e pediram a uma escola preparatória do Porto que desenhassem para o livro.

 

Em 1984 o livro já ia na 18a edição...

Não sei. E o Lopes Graça fez música para o livro e está agora editado em CD.

 

No seu livro Segredos e Brinquedos (2000) considerava-se uma «professora de meninos, meninos do meu amar». Teve sempre essa ligação fraterna com os seus alunos?

Foram eles que me deram o sangue para viver.

 

E o que é que eles ganharam em troca?

Há sempre uma troca. Mas acho que me deram muito mais. Quando os encontro é uma alegria muito grande.

 

José António Gomes, ao analisar em vários textos a sua produção literária, defende que nela há três grandes temáticas: a infância dourada, a infância agredida e a infância como projecto. Pode-me falar de cada uma delas?

A infância dourada é a do sonho e a da inocência, mas uma inocência sábia. A criança sente o mal mas não desconfia e vê as coisas com os olhos de quem vê pela primeira vez, é maravilhoso. Foi um deslumbramento que eu fui apreendendo e vendo ao longo da vida. A infância agredida é terrível. Agora, a comunicação social faz, muitas vezes, tema desta infância. Denuncia. Os direitos das crianças estão reconhecidos mas, infelizmente, ainda há muita criança agredida. Essa é uma mágoa que vou sentindo, o saber que a criança ainda não é respeitada, amada como devia. E estou a falar de Portugal mas por esse mundo fora a guerra põe até armas nas mãos das crianças. Já no fim da “caminhada” saber tudo isto dói mais ainda. Quanto à terceira, qualquer Estado deve olhar a infância como um projecto social comprometido, sério. Estamos a deixar de parte o lado maravilhoso do nascer e do crescer. A criança é sensível ao afecto, percebe bem quando gostam dela. Ela precisa de um amor responsável. Uma criança que cresce sem amor é uma criança quase sempre condenada. E não é necessário infantilizar a infância mas sim encontrar a sua poesia. A criança que tem uma força e uma fragilidade tão grande deve ter voz. A verdadeira raiz de uma sociedade justa, fraterna reside nos Direitos da Criança, no seu real cumprimento.

 

É uma escritora com um «olhar dorido sobre os socialmente desafortunados e simpatia pelos mais fragilizados». Como vê essa sua constante chamada de consciência?

Como um apelo para a justiça. Tenho visto muita infância marginalizada, e não é só marginalidade, mesmo entre os que não têm carências económicas. Há famílias que são pobres do ponto de vista humano da sensibilidade para a vida, já nem digo para a sua poesia... Há o cultivar de um certo egoísmo, eu sei que temos que nos defender, até da vida, mas se por um lado caminhamos para uma consciencialização dos direitos das crianças, para a sua efectivação, por outro lado o homem também se deixa envolver num egoísmo que o empobrece bastante. Mas é verdade que tenho podido contactar com presenças humanas comoventes de um verdadeiro entendimento da Infância e da Juventude.

 

Um crítico literário dizia que a sua escrita ficcional tinha uma «tonalidade didáctico-moralizante».

Didáctica, talvez, se vier a ser aproveitada nessa vertente. Moralizante, eu acho que nunca quis moralizar no sentido de impor fosse o que fosse à vida da criança, mas há na escrita um desejo de amor, de justiça e de tolerância, de poder apreender a poética da vida. Será isso moralizante?

 

Os seus escritos têm, também, sempre o lado positivo e de esperança. Se há «aproximação às poéticas neo-realistas», há alturas em que parece nada ter a ver com esse movimento.

Gosto de ler os neo-realistas e fui amiga de muitos deles, mas se a minha escrita tem essa vertente, de uma humanidade que quer justiça, literariamente se há um encontro tão evidente não sei.

 

Nunca foi uma escritora de escola literária?

Não. Fui sempre um bocado independente, andei sempre à deriva, talvez demais.

 

É uma figura discreta na vida literária portuguesa, mas sempre presente.

Tive a felicidade de conhecer muitos escritores, muitos já não estão nesta vida. Mas tive sempre a felicidade de estar entre aquelas que gostam da arte e que gostam de ler e escrevem. Eu quando era pequena tinha loucura por jornais. Os jornais que havia em minha casa eram devorados por mim. Eu comecei a ler ainda era muito pequena porque não tinha mais que fazer.

 

Esse interesse pelo jornalismo acabou por se traduzir, mais tarde, no tema da sua tese de licenciatura – A reportagem como género.

Foi um trabalho que eu tinha que fazer para terminar o curso e fiz sobre o jornalismo desde o Fernão Lopes… Julgo que foi essa paixão, quando pequena, pelo jornalismo; era o que mais tinha para ler e adorava o cheiro dos jornais... Mas a tese perdeu-se... com o meu desmazelo natural, não a tenho e na Biblioteca Nacional também não existe.

 

A Biblioteca Nacional peca por muitos vazios literários...

Inexplicáveis. Mas eu naquela altura não tinha ousadia para ser jornalista e fui para professora, era o curso que a Faculdade de Letras me proporcionava. E ainda bem que fui, mas com tanto medo. Tive tanto medo de ensinar no início.

 

Se fosse hoje acha que teria seguido o jornalismo?

Talvez não. Mas ainda colaborei com jornais... Pensando na vida de professora talvez não trocasse. Não sei bem... Embora a profissão de jornalista seja também apaixonante.

 

Fica esse valioso contributo, trazer o jornalismo para o mundo académico.

O jornalismo era considerado uma sub-literatura, como a literatura para a infância o era também nessa altura.

 

Na introdução de uma das suas antologias, A Estrada Fascinante (1988), diz que a organizou para «todos aqueles que procurem junto da infância e da adolescência uma responsabilidade pedagógica através da literatura». Considera que a literatura pode ser uma boa fonte na tarefa pedagógica dos professores?

Pode e deve ser.

 

Não é apenas um instrumento de lazer?

Não. É preciso brincar para crescer, ter a felicidade de não estar comprometido com obrigações de um trabalho que não se ajusta à vida da criança. Toda a vida é aprendizagem... Mas vejo que na literatura dos adultos a infância está muito presente, embora por vezes de uma maneira quase inconsciente porque a vida é infância, adolescência e estado de adulto. E há autores de Literatura para a Infância que trataram com grande delicadeza a infância, portanto esta literatura é um entretenimento mas não o é de forma inconsequente, tem uma validade de transmissão de valores humanos, estéticos e de diálogo com a vida e com os outros. Aprender o valor da alegria e da tristeza é muito importante numa pedagogia do ser e a literatura para crianças deve ser muito responsável. Também há aquela puramente lúdica onde a criança aprende a musicalidade da palavra, o encanto da graça, do brincar. É muito importante a aprendizagem da língua portuguesa, não falo nas línguas estrangeiras que também são necessárias, mas hoje talvez se acumule demasiada diversidade de aprendizado para a criança e ela também precisa de paz, de silêncio. Sabemos que, com a globalização, o inglês se torna muito importante, mas a criança deve aprender a beleza do seu falar materno, em plenitude.

 

Numa outra antologia, Todas as Crianças (1979), afirma: «oxalá estas páginas ajudem a encontrar a infância». Acha que conseguiu encontrar a infância, esse «segredo do Homem» de que falava João dos Santos?

Tenho-a encontrado nos olhos das crianças quando vou às escolas. Nas ruas. Mesmo no estado adulto a infância tem muita força. Talvez se possa esquecer a infância, mas há vidas que depois nos dão o deslumbramento de estar vivo e de ver as coisas sem mágoa, apesar de tudo.

 

A Matilde efectivou-se no ensino técnico, fez livros de textos para esse nível de ensino, e, talvez por isso, fosse de esperar que nos desvendasse mais a adolescência; mas os seus livros acabam por ser mais trabalhados no 1º e 2º ciclos do ensino básico.

Sim falo mais do mundo da criança. Talvez com a adolescência tivesse aprendido (ou julguei que aprendi) a infância. Gostei muitos dos meus adolescentes. E conversávamos muito. Eles ensinaram-me muita coisa da vida.

 

No Segredos e Brinquedos há um poema que fala no «filho que nunca tive». Poderá estar aqui uma explicação para essa enorme empatia com as crianças?

Isso nunca foi um problema que me ferisse. Quando chegava ao fim do ano e me separava dos alunos (quer os adolescentes, quer os adultos dos cursos da noite) era assim uma quebra que me doía…

 

Em vários textos, recupera a memória dos brinquedos e brincadeiras do seu tempo...

Foi o Bando dos Gambozinos, do Porto, que me pediram que falasse dos meus brinquedos. Eles são um grupo muito engraçado e a Susana Ralha tem feito um trabalho muito bonito. Creio que foi o primeiro livro verdadeiramente de encomenda; mas nem chegou a sê-lo, foi antes um amor recíproco, que foi feito com muito carinho, eles pediram-me para escrever sobre os brinquedos…

 

A Matilde «sabe extrair das pequenas coisas e fabulações que enredam o leitor». Seres insignificantes que quase não os vemos (a aranha, a formiga, a serpente, o rato, a andorinha) mas passam nas histórias...

E há já tanto tempo que não vejo aqui andorinhas em Lisboa… com a poluição... É a minha ligação à Natureza (a quinta da minha infância e a província por onde andei a trabalhar).

 

E faz tudo isso com uma «síntese de contar», através da poesia.

Sim, a poesia é mais económica.

 

Na sua poesia é nítida a ligação que mantém com a Natureza.

Eu gostei sempre muito de olhar as árvores, os animais, o mar, os céus, o mundo. É a vida, das várias recordações que tenho da infância. Recordo que na quinta onde nasci e vivi, em Benfica, havia flores, árvores, animais. Tal como na aldeia distante da minha avó paterna.

 

Num poema chega a falar na «cor do silêncio... e verde é o silêncio».

Às vezes perguntam-me porque é que eu gosto tanto do verde e eu respondo que gosto de todas as cores. Talvez pela natureza ser muito verde, o mar também é verde... e azul, o verde fugia do arco- íris ao escrever.

 

O ritmo e a musicalidade são uma das marcas nos seus trabalhos que incorporam, amiúde, lengalengas, rimas, canções infantis. Na linha de valorização da tradição lírica nacional e popular?

Talvez. É quase uma incorporação inconsciente não o faço com essa intenção.

 

E sobre a eterna questão das relações entre realidade e ficção; a sua escrita reflecte a sua experiência de vida?

A ficção emerge da realidade. O sol e o menino dos pés frios (1971) tem muito de alunos que fui encontrando. Mesmo O Palhaço Verde (1962) nasceu quando eu estava em Portalegre e fui ao circo e os circos da província eram muito pobres. Eu acho que o circo tem tanto de mágico como de trágico. E o “menino dos pés frios” é, por exemplo, um rapazinho que eu conheci no Cabedelo (perto de Viana do Castelo), que vendia moinhos de vento na praia, chamava-se Joaquim e foi meu companheiro de praia durante dois anos. Ele dizia-me que os pais andavam pelas feiras e que ele dormia numa taberna, na estrada, e todos os dias de manhã lá aparecia ele com os seus moinhos. Aí está uma realidade. Uma, entre tantas mais.

 

Esse Joaquim foi uma figura do mundo real.

Foi.

 

Passemos aos nossos dias. Como vê a Educação?

Eu queria que estivesse melhor, mas é fácil querer isto... Encontro, no entanto, professores maravilhosos que continuam a querer fazer progredir os alunos com inteligência e amor. Hoje encontro ainda uma realidade que eu não tinha, a existência de bibliotecas actuantes. Agora as bibliotecas têm vida, dantes havia livros em armários...

 

Não é das que comunga da ideia de que os jovens lêem menos hoje em dia?

Podem parecer ler menos, porque a massa dos jovens escolarizados é grande. Mas lêem. Antigamente esse espaço de potenciais leitores era muito mais reduzido, hoje há uma maior diversidade de circunstâncias para se ser leitor. O tempo de que o aluno dispõe também é diferente. A televisão podia ter um papel não digo didáctico, no sentido estrito do termo, mas fecundo na abertura para a cultura, não uma cultura elitista mas a cultura autêntica da vida com verdadeiro entendimento da Infância e da Juventude. E também temos os computadores e a Internet, ainda assim não podemos deixar que a “leitura” fique só por aí. De forma alguma.

 

Uma das mudanças tem a ver com o facto de muitas escolas proporcionarem um contacto directo com os escritores…

Os alunos, muitas vezes, julgavam que os escritores tinham todos morrido e quando começámos a aparecer por lá... mostrámos afinal que não éramos o “clube dos poetas mortos”... E, hoje, o encontro é tão feliz. Desses encontros trago sempre um quinhão de felicidade que os alunos generosamente me entregam na fraternidade do ler, do seu ler. Uma felicidade que me ensina tanto. Assim eu possa continuar a aprender.

 

É um diálogo proveitoso para ambas as partes.

Muito e tantas vezes comovente. Ainda agora numa escola, veio uma aluna ter comigo, muito tímida, traz-me uma plantinha (o chamado chucha mel) e diz-me, baixinho, «é para si»…

 

Continua, portanto, a ir às escolas?

Sim, há semanas ainda estive na da Tapada das Mercês (Rio de Mouro), na da Junqueira (em Lisboa), em Vila Real…

 

Dessas visitas, num contacto estreito com professores e alunos, como sente o ambiente que aí se vive?

Acho que os professores promovem a leitura, não só dos meus livros como de outros escritores, e as crianças estão motivadas. E elas são portadoras de tanto carinho. Fazem-me perguntas tão bonitas, tão cheias de sentido e descobrem coisas nos meu livros que eu não tinha visto…

 

A Matilde vê-se como uma pedagoga?

Não sei se me vejo como uma pedagoga. Para mim o termo é demasiado.

 

Tem recebido em vida homenagens e o respeito dos campos literário e educativo.

Eu nem sei como agradecer tanto bem que me têm dado... dos mais pequenos aos maiores.

 

E quanto à escrita, ainda há material para publicar?

Ainda tenho duas coisinhas mas não sei. Vamos a ver.

Luís Souta (entrevista realizada em 16.05.2002 e incluída na dissertação
«A Voz da Escrita: a escola na palavra dos escritores», ESE/Setúbal, Dezembro.2002)


  
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