Num cenário de crise, e para que seja possível realizar um ensino de qualidade, é nos professores que Carlinda Leite confia. Professora catedrática, agrada-lhe o entusiasmo e a resistência de alguns docentes que, apesar de tudo, ainda conseguem ver uma luz ao fundo do túnel e lutar por um ensino regido pelos princípios da inclusão, da vivência democrática, da igualdade de oportunidades, da justiça social, da partilha. Tendo como primeiro curso de Ensino Superior a licenciatura em Farmácia pela Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, Carlinda Leite começou a lecionar como professora de Ciências da Natureza e Matemática no segundo ciclo do Ensino Básico, em 1973, tendo sido depois orientadora de estágio, formadora de professores e coordenadora de equipa de apoio pedagógico do Norte. Fez mestrado em Desenvolvimento Curricular e Aprendizagem e começou a lecionar em 1985 na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto onde foi responsável por várias disciplinas, entre as quais Teoria e Desenvolvimento do Currículo e Avaliação de Projetos. Entretanto, concluiu doutoramento com uma tese sobre o Currículo e Multiculturalismo no Sistema Educativo Português. É ainda membro do Centro de Investigação e Intervenção Educativas da FPCEUP, avaliadora da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) e vice-presidente do Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua de Professores. Tem ainda colaborado com a Inspeção Geral da Educação (atual IGEC) na avaliação externa das escolas. Em conversa com a PÁGINA, Carlinda Leite falou da atualidade do setor educativo e de questões como a importância no currículo da área de formação das expressões, da autonomia das instituições escolares e do papel das atividades de enriquecimento curricular.
Em 1996, a propósito de diversidade cultural e de uma escola multicultural, dizia à PÁGINA que “se calhar, a própria Escola deve desconstruir-se para se construir, reconstruindo-se”. Passaram 16 anos. A Escola reconstruiu-se neste sentido?
A Escola passou por vários momentos e em alguns deles, de facto, desconstrui-se e iniciou-se um processo de reconstrução no sentido – e era nisso de que na altura falava – de ter em conta a diversidade da população que a frequenta, para se tornar mais equitativa e contribuir para a justiça social. Na minha perspetiva, a Escola é uma instituição extremamente importante no domínio da criação de condições que promovam este tipo de justiça. No final do século XX considero que foram dados grandes passos no sentido de se concretizar uma justiça curricular – devo dizer que me envolvi de alma e coração nesse movimento, com o saudoso diretor-geral do Ensino Básico da altura, professor Paulo Abrantes. Mas quando se começava a instituir uma cultura que, pelo menos, se orientava pelo princípio da igualdade de oportunidades - não apenas de acesso, mas também de sucesso -, o movimento parece começar a inverter-se. Receio que esteja a haver um retrocesso. Portanto, enquanto em 1996 eu considerava que a Escola tinha de se desconstruir para se reconstruir, agora acho que não se devia desconstruir no caminho que se tinha iniciado.
O que pensa das transformações que entretanto ocorreram no sistema de ensino em Portugal?
No final do século XX, caminhou-se num sentido muito positivo, na minha perspetiva, ao reconhecer as escolas como locais de decisão e os professores, e não só, como agentes extremamente importantes na tomada de decisões curriculares que permitissem promover a justiça social. Este foi o movimento que caracterizou o final do século XX e o princípio do século XXI, nomeadamente ao “obrigar” – entre aspas, mas de facto era obrigar, apesar de em alguns casos a obrigação não poder ser sempre entendida como algo negativo – as escolas a conceberem um projeto curricular que, tendo por referência o currículo prescrito a nível nacional, não ignorasse as realidades locais, tivesse em conta os recursos que tinham, as características dos alunos, o potencial da sua cultura, etc., para promover uma educação de melhor qualidade. E isto foi extremamente positivo, não só pelo princípio que está subjacente, mas também por criar a necessidade de um trabalho de equipa, de partilha entre professores, capaz de promover uma educação de qualidade e ajustada às circunstâncias de cada local. Este movimento de territorialização da Educação foi extremamente positivo. Reconheço que foi trabalhoso para as escolas e para os professores; reconheço até que, numa fase inicial, foi difícil e que, se calhar, algumas vezes não foi tão bem construído como as próprias escolas e os professores queriam. Mas, nesta altura, já estava a fazer parte das rotinas, e portanto começava a ser mais fácil. Mas, em direção contrária ao movimento que concebia as escolas como locais de decisão, é tomada a medida política que diz que as escolas deixam de precisar de fazer projetos curriculares de escola e de turma. Receio que isto, embora retire trabalho aos professores, também reduza as oportunidades para os professores trabalharem em equipa, para construírem coletivamente um projeto comum, para adequarem aquilo que é prescrito a nível nacional às realidades locais, para mobilizarem convenientemente os recursos da comunidade, para potenciarem nos alunos o espírito de tomada de decisões sobre a Escola, etc. Receio que neste momento haja um retrocesso à valorização dos conteúdos pelos conteúdos, ignorando tudo o resto que também é extremamente importante. E eu sou das que consideram que os conteúdos são importantes; na minha perspetiva, são extremamente importantes enquanto pré-requisitos para outras aprendizagens. Aliás, não estou a dizer nada distinto do que Paulo Freire já tinha dito nos anos ‘70. Os conteúdos são importantes, mas não são o objetivo único e final. Devem ser importantes porque ou são básicos para promover outras aprendizagens, ou necessários para a tomada de decisões e para termos um espírito mais crítico, ou para sermos mais intervenientes, ou porque são essenciais para se compreender o mundo em que se vive. Os conteúdos são importantes, mas também é importante o desenvolvimento de um conjunto de competências pessoais e sociais, de vivência e de exercício ativo da cidadania, que a Escola tinha vindo a conquistar enquanto procedimento e que eu receio que se perca.
Português e Matemática são vistas como pilares da educação. Deve ser assim?
O Português e a Matemática são importantes, de facto, mas não são a única área do saber e do conhecimento importante. Aliás, receio que só sejam importantes por causa dos relatórios internacionais, onde Portugal não quer ficar mal na fotografia. O investimento, às vezes exagerado, porque ignora outros, porque rouba tempos às artes, à vivência de projetos sociais, de questões ecológicas, etc., poderá ter como consequência ficarmos melhor colocados num ranking do PISA, mas se formos a outros aspetos também importantes do ponto de vista educacional, acabamos por ficar defraudados. As famílias que têm oportunidade para que os seus filhos vivenciem situações no domínio das artes e das competências que referi não serão as mais penalizadas, porque continuarão a ter condições para que desenvolvam fora da escola essas competências. O mal – e com a crise económica isto é agravado – é daqueles cujo único espaço onde têm possibilidade de viver essas situações ainda é a Escola. Sintetizando, considero que o Português e a Matemática são muito importantes, mas também considero muito importantes outras áreas que permitem às crianças e aos jovens desenvolverem competências e vivenciar experiências que potenciem ao máximo as suas características pessoais e sociais e o seu tipo específico de inteligência. Há algumas crianças e jovens a quem a Escola diz pouco, porque não apreciam os assuntos que são tratados nas disciplinas básicas, do Português, da Matemática, da Física, das Ciências da Natureza, etc., mas que às vezes são bons na área da Educação Física ou da Expressão Plástica. Lembro-me de que, muitas vezes, era através dessas áreas, do que agora conhecemos desses estilos de inteligência, que captávamos alguns alunos para outros assuntos, para outras disciplinas a que à partida não aderiam. Ao focalizar-se apenas em dois campos de saber muito específicos, a educação escolar pode impedir, de facto, que outros estilos de inteligência ... sejam valorizados e que, através deles, crianças e jovens potenciem outros aspetos.
Nessa perspetiva, qual o papel das AEC nas escolas? Devem ser espaços de extensão ou de enriquecimento curricular?
Na minha perspetiva são espaços de enriquecimento curricular, porque considero que o próprio currículo já as deve ter. Se eu pensar no 1º Ciclo, que é de um professor generalista, tenho de reconhecer e aceitar que um professor tenha as suas competências e, se calhar, goste mais de trabalhar as questões de Estudo do Meio, da Matemática, de Português ou das Expressões. E portanto, reconhecendo que nestas idades é extremamente importante o desenvolvimento da expressão motora, artística, musical, da sensibilidade estética, etc., é importante existirem atividades de enriquecimento curricular que permitam às crianças vivenciar outras situações. É um esforço da escola pública para oferecer condições a todas as crianças de desenvolverem essas capacidades e competências.
HÁ LIMITES PARA A RESISTÊNCIA
Algumas das medidas aprovadas pelo Governo, como a criação de mega-agrupamentos e o aumento do número de alunos por turma, estão já em vigor. O que pensa sobre essas medidas?
Há estudos que mostram que não há relação direta entre um número reduzido de alunos por turma e os resultados escolares. Reconheço que uma situação de ensino/aprendizagem em que crianças e jovens tenham poucas oportunidades para conviver, para partilhar opiniões, para debater, não é estimulante; e além disso cria menos oportunidades para o desenvolvimento dessas possibilidades de debate, de espírito crítico, etc. Mas, por outro lado, também sabemos que uma turma com muitos alunos forçosamente empurrará para um ensino expositivo. E, portanto, não criará oportunidades de debate, oportunidades de partilha e de troca, porque numa turma com 28 ou 30 alunos, o tempo que um professor terá é para expor e para controlar as intervenções de uma tal forma que as desestimula. Não estou também a dizer que a exposição não tem de existir, mas tem de o fazer a par de outras metodologias, o que, com uma turma muito grande, ficam dificultadas ou mesmo impedidas de se concretizarem. Relativamente aos mega-agrupamentos, todos sabemos o que representa alguém numa massa enorme – o anonimato. E também existe conhecimento produzido sobre o tamanho máximo que deve ter uma instituição, que fica muito aquém de alguns destes mega-agrupamentos, que poderão correr o risco de se transformar naquilo que são as chamadas “instituições totais”, em que as pessoas perdem o seu nome e passam a ser um mero número. Eu vivi essa situação na minha adolescência, porque frequentava um colégio onde tinha um nome e passei para um liceu onde passei a ser um número. Mas sobrevivi porque tinha uma retaguarda de apoio que me ajudou. Mas uma criança ou jovem que não tenha essa retaguarda de apoio… Fiz a minha dissertação de mestrado sobre o papel da escola na prisão. Durante um ano assisti às aulas da prisão de Custoias, onde os reclusos não tinham um nome, mas um número. Este é um dos procedimentos que as instituições totais utilizam para despersonalizar: deixar de usar roupa própria e passar a ter uma farda, deixar de ter um nome e passar a ser um número, despersonaliza e inibe – cada vez somos menos interventivos e acomodamo-nos na posição que pensamos que nos está atribuída, que é apenas de receber e cumprir ordens. Ora, nós sabemos que a sociedade cada vez é mais exigente. Portanto, se a escola pública não oferecer as condições para que todas as crianças e todos os jovens, e não apenas alguns, desenvolvam esta forma de estar na sociedade, o desnível entre os que podem e os que não podem, entre os que têm uma família de retaguarda de suporte e os que não a têm, será cada vez maior. Receio algumas destas medidas, justificadas agora por uma questão financeira, mas que depois, provavelmente, se poderão manter. É isso que me assusta.
E sobre o alargamento da escolaridade obrigatória para 12 anos?
Não sejamos inocentes, essa medida também foi tomada para atrasar a entrada no mercado de trabalho, embora, enquanto medida para criar oportunidades de os jovens, antes de entrarem no mercado de trabalho, terem uma formação escolar mais ampla, na minha perspetiva é incontestável. Ou seja, apesar de não ser inocente, de facto poderia ser uma medida positiva. No entanto, para isso, tinha de ser repensado o cumprimento dos 12 anos de escolaridade. Se calhar, todos conhecemos escolas com outras ofertas educativas, onde alguns alunos muito marcados pelo insucesso escolar foram adquirindo conhecimentos, desenvolvendo competências, vivendo num ambiente social muito formativo, e estou em crer que alguns desses alunos, quando tiverem uma idade mais adulta, provavelmente poderão ter em conta outras formas de ampliar o conhecimento. Se esse alargamento for para se manter uma perspetiva muito tradicional, isso não terá frutos. Estou para ver o que vai acontecer relativamente ao modelo alemão... Estou desejosa que não se concretize aquilo que alguns de nós tememos: que obrigue as crianças a optarem por algumas vias do sistema educativo numa idade tão jovem, e ainda por cima num período tão marcado por uma crise económica, porque seria o regresso a uma perspetiva tradicional do passado que foi rejeitada. Por outro lado, devo dizer que me anima muito o entusiasmo e a resistência de alguns professores. Trabalho muito com algumas escolas, acompanho um território educativo de intervenção prioritária (TEIP), na FPCEUP temos um observatório da vida das escolas (OBVIE) ... Portanto, conheço professores que conseguem resistir, mesmo em quotidianos difíceis; que, quando tudo parece desmoronar-se, conseguem ver uma luz ao fundo do túnel e dar a volta à situação, de forma a terem um trabalho profissional e uma qualidade de ensino/aprendizagem que ainda se rege por princípios de inclusão, de vivência democrática, de igualdade de oportunidades, de justiça social, de partilha... É nos professores que eu ainda confio bastante, apesar de reconhecer que também há limites para a resistência. Espero que não caiam no desentusiasmo.
Referiu-se ao modelo alemão... O que pensa do anunciado Ensino Básico Vocacional? As opiniões dividem-se…
Tenho acompanhado o agrupamento de escolas de Paredes que tem cursos para pós-Educação Básica e também para Educação Básica. Dou este exemplo. Aquela escola EB2/3 é frequentada por jovens de uma comunidade de etnia cigana que ainda tem a ideia de que as raparigas têm apenas de cumprir a função de esposas e que, portanto, não veem a escola e a educação escolar como um meio para o exercício de uma atividade profissional (fazendo um parêntesis: a verdade é que mesmo que vissem, não sei se a sociedade estaria preparada para isso). A escola tem um curso de florista e arranjos, e algumas raparigas dessa comunidade frequentam-no: trabalhar num horto, ou montar um pequeno comércio de florista e arranjos, é uma coisa que estaria de acordo com as expectativas daquela comunidade. Mas claro que não é frequentado só por jovens de etnia cigana! A oferta foi pensada para jovens que já não conseguiam cumprir a escolaridade básica dentro da idade prevista, para quem o currículo também pouco dizia, mas que, apesar de tudo, têm capacidade e agrada-lhes envolverem-se num projeto que lhes permite o acesso a conhecimentos, a ampliarem a sua formação de base, e que, simultaneamente, lhes dá também um saber profissional. Portanto, neste aspeto, parece-me muito positivo. Agora, se for apenas para jovens que, por alguma razão, não são bem-sucedidos em um ou dois anos e são logo desviados para cursos que os marcam, que lhes vão ditar o futuro e impedir de acederem a outros conhecimentos, a outras vivências, aí não estou de acordo. Acho bem existir, mas tem de ser pensado com muito cuidado, numa forte negociação com as famílias, com os jovens, e simultaneamente nunca deixando de lhes criar expectativas para que procurem outras oportunidades. Não fechar portas – nós sabemos que tem havido críticas ao modelo, por obrigar a uma escolha muito precoce, e espero que aqui exista algum cuidado. Reconheço, também, que isto é um jogo de expectativas. Perguntei a alguns jovens da minha família se gostavam muito da escola e eles não gostavam muito, mas, apesar disso tinham boas notas, porque foram socializados com a expectativa de que a Escola e as boas classificações eram importantes para o seu projeto de vida. Infelizmente, ainda existem alguns contextos familiares que não criam expectativas, que não criam sequer a expectativa de um projeto de vida. E essa é também uma função da Escola. Considero que algumas áreas curriculares não disciplinares contribuíam muito para que aquelas crianças e jovens fossem delineando um projeto de vida, ou um projeto de intervenção. Pensar num projeto acaba por criar bases para se ir pensando num futuro mais longínquo do que o hoje e o amanhã.
No Debate Nacional sobre a Educação, realizado em 2006, face à questão de saber “como melhorar a Educação nos próximos anos”, referia-se a prevenção do abandono escolar precoce através da criação de percursos alternativos, da revisão de planos de estudo e de programas e do recurso a professores-tutores e a equipas interdisciplinares. Houve evolução neste sentido?
Lembro-me de casos em que o programa TEIP II foi uma medida bem sucedida, permitindo a entrada de outros profissionais no ambiente escolar, funcionando como assessores, como tutores, como mediadores, nomeadamente entre a escola e as famílias; professores que constituem um apoio acrescido a crianças com dificuldades de aprendizagem e outros como animadores, para que a escola pública ofereça outras oportunidades de vivência. Mas em alguns outros, os recursos não foram bem aproveitados, e aí temos a questão da prestação de contas – se, para ter esses recursos, algum TEIP se comprometeu a atingir determinada meta e não o conseguiu, ou tem uma justificação plausível ou deve prestar contas por isso. Considero que, em alguns contextos, os quotidianos de uma escola básica e secundária são difíceis, precisamente porque a escola não existe apenas para instruir, mas para que os alunos aprendam, para que tenham um espaço de vivência social equilibrada, para lhes criar outras oportunidades, ou até para intervir na questão da alimentação. Portanto, é evidente que a Escola deve ser cada vez menos um espaço apenas de professores; exige outros profissionais. Quando estávamos a conseguir ter, nas escolas, técnicos educacionais, psicólogos, animadores, …, embora não tanto como eu desejava, para resolver problemas de algumas crianças ou apoiar os professores para que eles próprios compreendam e saibam lidar melhor com as situações, a situação parece inverter-se. Conseguíamos ter diplomados em Ciências da Educação que funcionavam como animadores, como gestores de projetos, para apoiar também os professores nos seus projetos educativos ou as próprias direções, por exemplo, na realização de procedimentos, de recolha de dados para se conhecerem melhor a si próprios e intervir. Enfim, estavam a ser dados alguns passos, através de alguns projetos específicos, que receiam que se percam. Espero que isto não retroceda e que as restrições económicas não impeçam os projetos que foram bem sucedidos, que conseguiram recuperar jovens que tinham abandonado a escola, diminuir o número de conflitos que existiam no quotidiano escolar, promover mais sucesso e implicar algumas famílias numa corresponsabilização coletiva. Continuo a achar que é por aí o caminho para combater o abandono, o insucesso, a falta de um projeto de vida pois estas questões forçosamente passam sempre pela Escola.
TER AUTONOMIA EXIGE TER RECURSOS PARA A SABER USAR
Há uma “receita” para o sucesso escolar?
Acreditar nas pessoas, nos profissionais da Educação; implicar as escolas na criação de projetos específicos que tenham referenciais definidos a nível nacional, negociar os recursos de acordo com esses projetos e depois pedir contas. No meu conceito de autonomia, é assegurar condições que permitam a concretização de compromissos e depois pedir responsabilidades por esses compromissos.
E como se concretiza essa autonomia?
Do ponto de vista teórico, eu veiculo muitas vezes a ideia da importância da autonomia das escolas, institucional e curricular. Mas reconheço que ter autonomia exige ter recursos para a saber usar. Da autonomia curricular devo dizer que, por exemplo, o sistema educativo português optou pela prescrição de um currículo a nível nacional face ao qual as escolas eram convidadas – e depois obrigadas, segundo a legislação de 2001 – a conceber um projeto que adequasse esse currículo aos seus contextos, aos seus recursos, às suas limitações. Era uma autonomia em que os projetos curriculares de escola e de turma faziam a regulação. Portanto, não era desresponsabilização, mas responsabilização. O programa TEIP tem esta orientação: as escolas concebem um projeto que tenha em conta os seus problemas e os seus recursos e, face a isso, definem metas e têm de prestar contas por essas metas. Eu adiro a esta ideia. Claro que se tivéssemos um maior saber, uma outra cultura, provavelmente conseguiríamos uma maior autonomia, mas neste momento acho que é a possível e, se calhar, a desejável. Do ponto de vista institucional, é a mesma coisa. Também acho que as escolas devem, face aos seus problemas, comprometer-se com aquilo que poderão fazer da melhor maneira possível, com a forma como poderão melhorar e prestar contas por esse investimento. Esta é a lógica dos TEIP – aliás, alguns foram convidados a estabelecer com o ministério um contrato de autonomia baseado neste princípio; se, entretanto, ficarem aquém das suas metas, é evidente que deixarão de ter aquele apoio acrescido. É nesta perspetiva que me situo, entre autonomia e regulação.
As sucessivas medidas tomadas por cada novo ministro não afetam a estabilidade e a qualidade do sistema de ensino?
Eu acho que afetam. Basta lembrarmo-nos da avaliação do desempenho docente, que afetou muito negativamente mesmo as relações institucionais. No entanto, também há exemplos positivos, como a gestão flexível do currículo: as escolas comprometeram-se a utilizar a autonomia curricular para conceberem projetos de melhor qualidade e, mesmo reconhecendo que numa primeira fase não eram muito focados no que seria essencial, isso correspondeu a um caminho. Por outro lado, acho que a avaliação externa está a influenciar as escolas na criação de uma cultura de autoavaliação que, forçosamente, promove um maior conhecimento delas próprias e, portanto, constitui um passo para a construção da autonomia. Mas, em geral, não há dúvida que afetam e uma vez para o bem e outras para o menos bem. E não podemos ignorar que existe um desentusiasmo dos professores, que só não vê quem não quiser. E não porque os professores não gostem da sua profissão – estou em crer que é precisamente porque gostam e lhes desagrada a mudança contínua e o rumo que por vezes é tomado. Um exemplo concreto: a legislação sobre a organização curricular determinava que as escolas e os professores tinham de conceber projetos em função das competências. Vem uma medida e já não são só as competências; são as metas, e algumas escolas começaram a reorganizar os planos curriculares em função das metas. Vem outra medida e as metas estão acabadas; aquele trabalho fica anulado. E agora já são outras metas e nem sequer se pode falar em competências... Como se fosse possível educar sem pensar em competências! Como é que se pode educar alguém pensando apenas em conteúdos? Não pode! Estas medidas são exemplos do que provoca desgaste e desentusiasmo. Mas, apesar de tudo, sinto que ainda há alguma resistência e energia dos professores, que vão conseguindo trabalhar no dia a dia com estas mudanças incompreensíveis.
Com tantos cortes na Educação é possível garantir um ensino de qualidade?
Eu acho que só será possível pela qualidade e pelo envolvimento dos professores. Conheço professores extremamente implicados. Temos feito [FPCEUP] algumas sessões em que chamamos os professores para darem conta do seu projeto, o que fazem e o que é que estão a conseguir. Fazemos isso para partilhar, mas também para os reconhecer, porque ignorando-nos também nos torna uma massa anónima e nos obriga a acantonar no nosso espacinho, à espera de ordens. Quando convidamos alguém para, no espaço de uma instituição de Ensino Superior, dizer o que está a fazer, que dificuldades tem de vencer, o que lhe permite trabalhar assim, o que ainda não conseguiu, o que tem de fazer... estamos a mostrar-lhe que aquilo que faz é por nós reconhecido e que merece ser partilhado.
A educação escolar tem vindo a melhorar?
Se comparar com a escola pública da minha geração, mudou imenso e, na generalidade, para melhor. Já não falo da minha infância, mas desde que comecei a ser professora, a Escola melhorou bastante na oferta. Mesmo naquele espírito efervescente de querer fazer da Escola uma instituição democrática, de uma vivência social muito positiva, provavelmente nem eu imaginava aquilo que a Escola conseguiria agora. Apesar de tudo, ainda não conseguiu cumprir completamente os princípios da igualdade de oportunidades de sucesso e de escola inclusiva, pelo que tem de se analisar o que está a falhar e onde se pode investir. Apesar do que já se fez, ainda há muito que se pode fazer. O que esperamos é que, quando há um passo atrás, depois haja dois à frente, e não um passo atrás, e outro passo atrás, e outro passo atrás... Todos sabemos que, de facto, estamos a viver um momento que pode representar um passo atrás, mas esperemos que isso não ocorra.
A escola tem sido “para todos”?
Nós sabemos que, quando Veiga Simão se referia, no princípio dos anos 70 (séc. XX), ao princípio da igualdade de oportunidades de acesso, o que estava subjacente era o princípio da meritocracia: à Escola podem aceder todos, mas depois, a cada um segundo o seu mérito. Isto era o que era dito. Hoje, este princípio é imensamente contestável. Sabemos que não basta o acesso: se nuns contextos familiares as expectativas e os apoios são muitos, noutros a Escola ainda não é uma prioridade. ... E, evidentemente, quem é socializado num ambiente destes, não pode atribuir à Escola a mesma importância que atribui o filho de quem lhe reconhece a importância. Portanto, a igualdade de oportunidades ainda está muito longe de ser conseguida. Apesar disso, algumas medidas políticas tentaram cumprir o princípio da justiça curricular. Por exemplo, os projetos curriculares pensados concretamente para o João e para a Maria, e não para o aluno-médio tipo, promovendo que todos conseguissem aprender, adquirir conhecimentos e desenvolver competências. Tinha-se começado por aí como um dos passos para se conseguir. A questão da avaliação como promotora e geradora de aprendizagem, e não apenas para classificar, também é um caminho – descobrir em que é que cada um é bom para desenvolver um autoconceito positivo terá consequências. Neste momento também há que ter em conta a questão da alimentação, no sentido de se identificarem alunos mal alimentados, ou não alimentados, e fornecer-lhes suplemento alimentar sem dar disso conhecimento público, sem eles terem de interiorizar a humilhação de não terem acesso ao que os outros têm. Isso é extremamente importante!
Para terminar, como vê o futuro do ensino em Portugal?
Espero que seja um futuro melhor do que o presente. Um futuro que amplie a cultura que se tinha iniciado na transição de século e onde cada criança se sinta muito bem, muito reconhecida, e onde tenha condições para se desenvolver ao máximo e se sentir feliz, mas também para aprender. E devo dizer que, muitas vezes, quando visito jardins-escola, vejo esse futuro; vejo crianças a tomarem decisões, a assumirem a sua responsabilidade – é uma cultura que se criou e se sustentou. Depois, às vezes, isto vai-se perdendo com outras organizações de espaço, com outras práticas, e é isso que não pode acontecer. Hoje não direi, como em 1996, que é preciso desconstruir para reconstruir. É preciso é ampliar a construção que se tinha iniciado; parar e pensar o que podemos melhorar: se estamos a conseguir, através da educação pública, promover e concretizar o princípio da igualdade de oportunidades e de sucesso, se estamos a contribuir para promover a justiça social. Se não estamos, e em alguns aspetos temos de reconhecer que não, o que vamos fazer, onde vamos melhorar? E não o que parece estar para a acontecer: um retroceder sem sentido – ou, aliás, com um sentido que não o desejado.
A AVALIAÇÃO DEVE SER FORMADORA
O que pensa sobre a avaliação?
Sou defensora acérrima de que a avaliação da aprendizagem deve ser um dispositivo gerador de formação. Por outro lado, também sou adepta ferrenha, quase, de que a verdadeira avaliação deve ser conduzida pelo próprio, embora reconheça que, para cada um desenvolver a competência de se autoavaliar, é preciso haver heteroavaliação. Neste sentido, considero que o recurso a procedimentos que permitam aos alunos desenvolver a competência de se autoavaliarem é excelente em relação a todos os aspetos: conteúdos, comportamentos, organização do tempo, etc. Aliás, muitos dos instrumentos que algumas escolas, ou alguns professores, usam para fazer a avaliação dão oportunidade aos alunos de pensarem “o que é que já consegui, o que é que não consegui, o que tenho de fazer melhor?”. Daí o conceito de avaliação formativa. Fazer da avaliação uma oportunidade de cada criança ou jovem pensar no seu comportamento, na forma como organiza o seu trabalho, na responsabilidade que está a assumir ou não. É evidente que, depois, tem de saber – porque isto também é uma aprendizagem social – que aquilo que conseguiu tem uma classificação que o posiciona face aos outros e o coloca numa escala. Mau é se os que ficam em baixo na escala são sempre os mesmos e em tudo – e lá temos a questão das inteligências múltiplas, de conseguir identificar em cada um aquilo em que ele é bom, porque se não, vai aparecer sempre no fim da escala em tudo. Sobre as políticas de avaliação em Portugal, a OCDE considera que a avaliação formativa não está muito desenvolvida... A avaliação formativa pode não estar muito presente porque, se calhar, se trabalha privilegiadamente para os conteúdos. Tudo isto é influenciado pelas condições para a concretizar, porque a avaliação formativa implica que haja oportunidade para o professor aplicar com mais frequência testes ou outros procedimentos para verificar como as aprendizagens estão a ocorrer e, simultaneamente, para que as que não foram realizadas venham a sê-lo. Por outro lado, um passo à frente da avaliação formativa seria aquilo a que chamamos avaliação formadora e que corresponde ao desenvolvimento de competências e criação de oportunidades para que os alunos façam o seu próprio balanço. Numa utopia desejável, os alunos teriam a competência de autoavaliarem e isso permitir-lhes-ia irem fazendo o acompanhamento dos seus próprios percursos. Mas isto não nasce connosco, é uma competência que se desenvolve, que se adquire; vai-se aprendendo e desenvolvendo. Sempre com o contributo de uma heteroavaliação.
Entrevista conduzida por Maria João Leite
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