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Na boca da infância

No primeiro aniversário da morte do autor de «Na Boca da Infância», a PÁGINA recupera na íntegra uma entrevista realizada por Luís Souta em Outubro de 2001 e parcialmente publicada na edição no 107 (Novembro de 2001).

António Damião nasceu (1941) em Pocariça, Alenquer, mas viveu em Lisboa desde os 14 meses. Na literatura policial, usou o pseudónimo Henrique Nicolau – foi distinguido com o Prémio Editorial Caminho de Literatura Policial («O Trabalho é Sagrado», 1985) e com o Prémio Repórter X, da Associação Policiária Portuguesa («Todos e Nenhum», 1991). Integrou a direcção da Associação Portuguesa de Escritores (1991). Trabalhou para cinema, publicidade, documentário e televisão, tendo realizado o filme “Talvez Amanhã” (1969) e o programa televisivo “Ensaio”. Colaborou com realizadores como António Macedo, José Fonseca e Costa, António da Cunha Telles e Pierre Kast e foi co-guionista dos filmes “Off” (1994), de Ruy Guerra, e “Água na Fervura” (1995), de José Pedro Santos.

 

O António Damião nasceu na Pocariça. Mas veio cedo para Lisboa, fazendo fé no seu livro «Na Boca da Infância».

Com catorze meses. É curioso, ontem estava com um amigo a falar concretamente sobre as memórias que as pessoas têm, como é que as localizam, e esse meu amigo estava um pouco espantado porque havia não sei quem que tinha memórias dos dois anos e eu disse “eu tenho dos catorze meses”. Lá está, foi uma coisa que me marcou muito, foi um choque para mim. Porque, segundo a minha mãe, durante uma semana ou duas, eu só chorava. Não gostei da cidade. O primeiro contacto não foi muito agradável.

Mas ficou cá para a vida?

Fiquei para a vida. Já tenho ido para outros sítios, mas… Acho que Lisboa tem sofrido muitas tropelias. Agora está a melhorar, por um lado, e a piorar, por outro. Depende.

Vou centrar a nossa conversa particularmente sobre «Na Boca da Infância», ainda que seja no policial que mais tem investido. Referenciei onze livros seus…

Só vendo. Não me recordo desses pormenores. Além de «Na Boca da Infância», publiquei uma série de livros, ditos policiais, entre 1985 e 1993.

A maioria na Caminho e os dois últimos na Puma. Desde 1993, não tem aparecido nada…

Pois não…

Ou seja, o Henrique Nicolau [pseudónimo para o género policial] tem publicado pouco, mas o Damião ainda menos, porque só saiu um com o seu verdadeiro nome [o romance «Na Boca da Infância»]. Como explica este facto? De 1985 a 1993 publicou um livro todos os anos, e em 1992 chegou a lançar dois…

Bom, não tenho propriamente uma explicação. Comecei a escrever no género policial, sob o pseudónimo, e só depois é que me lembrei de escrever «Na Boca da Infância». Como não era policial, resolvi utilizar outro nome. O editor não gostou muito, mas eu sou teimoso. Tenho privilegiado o policial talvez porque é um pouco como contar uma história. Têm-me saído... Não me têm aparecido outras histórias; ou por outra, elas existem, alguns farrapos soltos, coisas escritas que irão certamente ser assinadas por António Damião. E pronto: já se sabe que o Henrique Nicolau é o dos policiais e o António Damião, quando escrever, abordará outros géneros que lhe vierem à cabeça.

António Damião para o romance autobiográfico e Henrique Nicolau para o policial, uma questão de hierarquias?

Não é uma questão de hierarquia. Eu não hierarquizo nada. Há grandes romances no género policial. E depois também acontece que este tipo de livros a que se chama policiais, tiveram, em Portugal, a infelicidade de se chamarem policiais, apesar de, às vezes, nem polícias terem…

Alguns dos seus também não têm.

Os ingleses são mais práticos, chamam-lhe crime e mistério. De facto, o pai disto tudo, ou melhor, o avô destas coisas, o Edgar Allan Poe, chamava-lhes livros de mistério. Eram, sem dúvida, histórias de mistério. Para nós, mistério é outra coisa…

Os seus livros mais recentes, editados pela Puma, foram classificados de “livro negro”. Também não é propriamente uma designação adequada.

Pois, esse foi o nome que eles chamaram à colecção.

Sente que não houve grandes melhorias na imagem do chamado policial? Ainda é um género menor?

Não sou especialista na matéria, nem estudioso. Escrevo histórias policiais. Conheço pessoas que são profundamente conhecedoras do fenómeno policial, da literatura policial, quer portuguesa, quer mundial. Depois de publicar policiais, eu comecei então a estudar o fenómeno, um pouco amadoristicamente, como amador interessado.

Em Portugal não há um grande prémio do romance policial.

Nem vejo a Associação Portuguesa de Escritores a dar um prémio. Os escritores policiais não tinham entrada na associação. Aliás, o amigo que me propôs disse: “Eh, pá! Tu tens sorte, no passado não havia escritores policiais, não entravam”... E, mais, há ali alguns escritores conceituados, que escreveram policiais e não querem que se saiba, o que eu acho curioso... Conheço alguns, mas não vou dizer, até porque são pessoas de quem gosto pessoalmente e não lhes ia fazer essa pequena traição. Eles não querem que se saiba, não se sabe.

Mas se o género não é valorizado no campo literário, já no cinema é um filão.

É. Nos Estados Unidos da América, o prémio “Edgar Allan Poe” é conceituadíssimo, vale normalmente casa de campo. Quem o ganha vende mais um ou dois milhões de exemplares, de certeza. Aquilo, embora não seja um país muito letrado, há por lá muita gente a ler, é um país muito grande.

Em certos estratos, o policial é um livro profundamente consumido. Porquê?

Na minha opinião, porque mantém a tradição do romance realista do século XIX. Depois, o policial fala do dia-a-dia e da rua; é um ambiente que, por inerência, diz muito às pessoas. Aliás, se reparar, o próprio policial americano, quer na escrita, quer nos filmes e nas séries, começa a incluir na narrativa a vida das pessoas; deixou de ser aquele clássico baseado exclusivamente no enredo – do indivíduo que investiga, que é mais hábil ou menos hábil, mais inteligente ou mais esperto, que faz os cálculos todos, que analisa – para passar a falar da vida dos protagonistas e dos outros, os criminosos... Ou seja, tem mantido e desenvolvido a tradição do romance realista, com que as pessoas se identificam mais facilmente.

É o que o Damião faz, mas com contextos portugueses.

Exactamente, foi isso que me interessou.

No seu livro mais conhecido, «O Trabalho é Sagrado», aborda um período muito ‘quente’ e delicado da vida político-social portuguesa, uma teia de ligações duvidosas: corrupção, rede bombista, vida partidária…

… Não é a descoberta do criminoso nos policiais que me interessa, nunca foi. Aliás, num dos policiais mais espantosos que li até hoje, «Sentença e Pedra», a Ruth Rendell diz logo na primeira frase: a fulana não sei quantos – não me lembro do nome, peço desculpa – matou a família não sei quantos porque não sabia ler nem escrever. Logo na primeira frase diz tudo: quem é o criminoso, quem matou e o motivo! Normalmente, as pessoas dizem que é na última frase que deve estar o criminoso, mas eu costumo dizer: e aqueles que têm a mania de ir ler a última página? Bem, é difícil nós largarmos a leitura deste livro porque é de uma economia de meios e de um fascínio de contar; por outro lado, ela deve ter conhecido algum analfabeto de muito perto, porque nos descreve os pequenos truques de que os analfabetos se servem para não mostrarem que o são…

No seu caso, optou por deixar de lado polícias e detectives e escolheu um jornalista como investigador.

Quis ser tão credível quanto possível. Detectives não havia, agora parece que há alguns. Eu já estive em debates em que apareceram alguns detectives encartados, que exercem a actividade. No contexto português, achei que era credível que o jornalista fosse investigar – coisa que agora não há muito. O jornalismo de investigação é uma coisa muito nobre, muito importante, é pena que não se faça mais. É claro que é caro e os fulanos, hoje, querem uma rentabilidade imediata. Um sujeito pode passar meses ou anos para investigar determinados assuntos com profundidade e honestidade e até pode ficar pelo caminho. Olhe, na América do Sul, são dezenas que morrem por ano. Espantoso.

Profissões de alto risco…

Uma profissão de alto risco, se for levada a sério.

Esse conhecimento do mundo da imprensa, da redacção de um jornal, onde o adquiriu? Nunca exerceu?

Não, nunca exerci. Foi um mundo que eu conheci bem, sempre me dei com muitos jornalistas. Sem ter estado lá dentro, era como se estivesse.

O pseudónimo que adoptou tem relação com o seu avô Zé Nicolau?

É. Henrique Nicolau deviam ter sido os meus dois nomes do meio. Só que a senhora do registo lá da minha aldeia em vez de pôr Nicolau pôs Carmo, o nome de família da minha avó, em vez de pôr o do meu avô. Eu tenho muita estima por aquele avô, e boa memória dele. Acho que ele foi muito importante na minha formação, embora fosse analfabeto. Mas era um daqueles analfabetos sábios, daquela gente que está em extinção, se é que já não estão todos extintos. Era um homem de vastíssimos conhecimentos, e depois tinha outra coisa que os analfabetos têm – uma memória elefantina [risos], lembrava-se de tudo. Quando eu era miúdo, às vezes, ele fazia aquele exercício malvado que nós tínhamos de aprender na escola, os nomes e cognomes dos reis de Portugal, primeira dinastia, segunda dinastia... Pois o homem sabia aquilo tudo, não falhava uma!

Dedicou-lhe um livro que acabou por ser premiado.

Quis prestar uma homenagem ao homem que me antecedeu e que, aliás, era um excelente contador de histórias, um fabuloso contador de histórias. Por isso, lá fui repegar no Nicolau. Há uma história na Boca da Infância que é recuperada dele, que me contava quando eu era miúdo. Era a história do homem e do leão que andavam de terra em terra, aconteciam várias coisas, tinham muitas peripécias, etc. E ainda mais curioso, houve um livro de textos para o Ensino Secundário em que os autores aproveitaram essa história. Aproveitaram essa e outra. Mas nunca dão cavaco destas coisas. Foi uma amiga minha que viu os livros do filho e disse: “ah! este é do meu amigo”. Por acaso, na outra, fiquei um bocado ‘mosca’, como se diz em bom calão. As chamadas adaptações pedagógicas [risos]... Não são bem adaptações pedagógicas; eles limitaram-se a cortar uma alcunha que eu tinha dado ao personagem... Era o Quintino, conhecido como o Caga d’Alto. Os bons costumes, pelos vistos, recomendaram que se evitasse isso.

A decisão de optar por um pseudónimo português vai contra o que era habitual em Portugal, onde quem escrevia policiais assinava em inglês – por exemplo, o Dennis McShade usado pelo Diniz Machado. Foi uma opção consciente, essa de nacionalizar?

Foi uma opção perfeitamente consciente.

Mas uma opção com uma certa dose de risco?

Sim, foi um risco. Mas qualquer pessoa que escreva ou publique livros em Portugal arrisca. Quanto a mim, foi um acaso. Não tinha nada que fazer e li um anúncio da Caminho onde se oferecia um prémio. Pensei para mim próprio: e que tal escrever um livro? Aliás, para ser correcto, a prosápia foi bem maior – pensei em escrever o livro para ganhar o prémio. E assim foi, comecei a escrever e aquilo divertiu-me imenso.

Está provado que “o trabalho é sagrado”…

O trabalho é sagrado. Aliás, o meu trabalho ganhou um prémio. Quando cheguei ao fim, li o livro e disse para mim próprio: estes gajos não me vão dar o prémio; ainda por cima, não digo quem é o criminoso... Enfim, mandei aquilo, já que tinha tido tanto trabalho, mas tinha decidido continuar a escrever, dessem eles o prémio ou não.

Livro que depois foi adaptado para a televisão.

Esteve para ser. Não chegou. Vendi os direitos, mas depois... É o que acontece nestas coisas dos filmes. Vendi os direitos, os fulanos (gente do Centro de Produção do Norte) fizeram inclusivamente uma adaptação, tiveram o trabalho, recebi os direitos e tudo [risos]. Infelizmente, às vezes, essas coisas não acontecem. Depois daquelas mudanças que a televisão está sempre a ter (agora tem que se dizer RTP, porque já há outras televisões), falta de orçamento e não sei que mais. Os homens lá do Norte telefonaram-me, todos tristes. Aquele seria o primeiro, eles preparavam-se para continuar…

Tinha realizador para o projecto?

Tinha realizador, que tinha adaptado aquilo. Inicialmente, quando me contactaram, foi para me pedir inclusivamente a minha colaboração e eu disse: “eh pá, isso para mim é uma grande trabalheira, estou a sentir que é preciso um grande esforço para mexer de novo nas coisas que já fiz. Portanto, adaptem como vocês quiserem. O filme vai ser vosso, vocês farão um filme bom ou mau, tem que ser. Se for bom, óptimo; se não for, paciência”.

O António Damião está ligado ao mundo do cinema e da publicidade, e chegou, inclusivamente, a trabalhar para a televisão…

Sim, fiz muita coisa. Nos anos 60, era realizador de um programa quinzenal de 50 minutos, que depois passou a ser semanal. Por razões várias acabei por desistir do projecto... As coisas estão sempre a mudar. Fiz também muitos filmes de publicidade. Mas aí parei, achava aquilo uma chatice. Mas era uma maneira de ganhar bem a vida.

Esse mundo dos filmes foi importante para si, não? Dedica até um livro, «A Escola da Verdade», aos “amigos dos filmes”.

É, de certa maneira, é verdade. Mas talvez ainda pegue nessas coisas. Eu devia era escrever as minhas memórias. Mas se as escrevesse, não seria para publicar em vida, porque não estou para me aborrecer…

Como começou no cinema, ainda como cineclubista?

Comecei como assistente do Ernesto Sousa. Veja lá aos anos que isso foi... Em 59? Só consultando... Depois trabalhei com vários fulanos. Trabalhei muito com o Cunha Telles, como produtor, e com alguns ilustres realizadores, como Fonseca Costa, António Macedo... Se me esqueço de algum, é uma chatice. [risos] Fui também assistente de alguns estrangeiros que vieram cá fazer algumas produções episódicas, estilo filmar uma semana, duas semanas…

Não sei se posso considerar «Na Boca da Infância» um livro autobiográfico, depois me dirá. Há nele uma estreita ligação entre ficção e realidade. Por exemplo, quando fala no seu avô, diz que foi ele o primeiro a ensinar-lhe que “a realidade é sempre mais rica e complexa do que a ficção”. E mais adiante chama a atenção para “a dualidade que existe entre a realidade e a ficção”.

É uma dualidade que eu acho extremamente fascinante, porque se nós olharmos atentamente para a realidade, apanhamos histórias que não passavam pela cabeça de ninguém. Olhe, os acontecimentos de 11 de Setembro nos EUA… Esse lado fascina-me muito. Acho muito curioso. Há alguns anos, a TVI passava uma série de filmes baseados em histórias reais – os filmes, normalmente, eram mauzecos mas as histórias eram terríveis, algumas delas… [pausa] Eu penso que os narradores, os romancistas, os contadores de histórias, ou como se lhe quiser chamar, acabam sempre por selecionar. É fatal, nós selecionamos. E a realidade em si é de tal maneira ambivalente, estende braços... A realidade é sempre muito rica, acho eu. É claro que também depende dos olhos de quem a vê.

Ainda no livro «Na Boca da Infância», há marcas muito concretas de tempo e de lugar; por exemplo, diz que é uma história que se passa nos anos 40/50, num bairro de Lisboa. Só não diz o nome.

Mas olhe que, sobre isso, aliás, foram as críticas mais interessantes que recebi. Críticas pessoais, até, directas. Equivale a outros bairros de outras cidades. Tenho um amigo que viveu no Porto e ele diz que aquilo era a infância dele. «Na Boca da Infância» é a infância dele e tenho confirmado com outras pessoas que vivem noutros bairros. Porque, no fundo, nos bairros criava-se uma determinada cultura, muito semelhante, havia poucas diferenças e a minha intenção foi também essa: não localizar, não precisar qual o sítio, para cada um poder pôr no bairro que quisesse, no seu bairro... Porque há aí personagens que não existem. Eu tentei escrever um livro – não sei se hei-de chamar-lhe romance – que fizesse o balanço entre a realidade e a ficção e que fosse, em alguns casos, arquétipo, sei lá... Por exemplo, o “choné” – todos os bairros de Lisboa tiveram um choné, era uma personagem que existia; eram personagens típicas que aconteciam naqueles grupos, que, de certo modo, eram fechados; eu recordo-me que havia gente do meu bairro que nunca tinha ido à Baixa, por exemplo. Hoje era uma coisa impensável... São mundos fechados, de certo modo, e os mundos fechados acabam por se equivaler, seja aqui ou não sei onde.

Achei muito interessante a estrutura do livro. O Damião explicita-a no texto: “A infância são várias estórias enredadas umas pelas outras, um intrincado de impressões, de imagens avulso, mergulhando fundo na imaginação e saindo dessa caixa de surpresas sem se saber ao certo se foram vividas ou inventadas”.

Exactamente. É esse lado de que eu lhe estava a falar agora, de outro modo e de outra maneira. Quis que o livro fosse uma conversa com alguém que não é identificado, como se fosse uma rememorização, um encontro de duas pessoas que se encontram, por exemplo, que tivesse esse lado sem cronologia, porque não existe cronologia nenhuma no livro. As histórias vão-se encadeando umas nas outras, como as cerejas que se tiram e lá vêm mais duas atrás – aliás, há aquela velha expressão popular que diz que as conversas são como as cerejas. Esse lado do contador de histórias que pega numa história e depois passa para outra e vai por ali adiante... Um bom contador de histórias nunca se cala, é capaz de estar a contar histórias infinitamente.

Essa estrutura corresponde à da própria infância: a criança vive de fogachos, de momentos, não tem um sentido de vida, de lógica, de existência…

É. Depois, visto à distância, ficam os momentos maus, fica aquilo que nos tocou no fundo. Aliás, como tudo na vida, ficam aqueles momentos que significaram coisas boas, coisas más, coisas assim-assim, os personagens que nos fascinaram, que nos serviram de modelo ou que, pelo contrário, nos repugnavam – aqueles que nos repugnavam, à distância, acabamos por integrá-los, pois afinal já não nos repugnam tanto como isso, porque a idade dá-nos a capacidade de nos pormos na cabeça do outro, de nos pormos na cabeça do mau da fita, do índio... [risos] Os cowboys eram os bons, os maus eram os índios.

 

 

Uma particularidade do seu estilo está na linguagem. No livro, recorre a uma epígrafe de Camilo Castelo Branco – não por acaso, naturalmente. Uma espécie de defesa para eventuais ataques à linguagem vernácula e “dura” das crianças, já que “na boca da infância, o linguajar é livre e aberto”.

É. Eu sabia que os senhores críticos encartados me iriam cair em cima nesse aspecto, e de facto isso aconteceu. Deram-me muita tareia pelo facto de eu utilizar o calão lisboeta, sim... Mas os críticos encartados usam cartola, punhos de renda e coisas que tais. Eu fui buscar o mestre da língua portuguesa para chamar a atenção de que não nos devemos constranger em relação ao uso das palavras. As palavras são as palavras.

Isso é muito visível nos seus policiais. Daquilo que conheço, é uma marca muito própria da sua escrita. Normalmente, neste género de livros, os leitores parecem ser mais tolerantes porque se parte do princípio que é um livro para adultos. Não concorda?

Exactamente. Às vezes telefonam-me para ir a escolas – encontros sobre a infância, por exemplo – e eu desculpo-me argumentando que o livro não é destinado a um público infantil; que é um livro para adultos. As pessoas que o lerem não terão dúvidas sobre isso. Apesar disso, conheci pessoas que me disseram lê-lo em público e até famílias que o liam em conjunto – um aspecto curioso, porque hoje já não há muito esse hábito de ler em família –, garantindo-me que se divertiam muito e que os miúdos gostavam, e que, por vezes, até repetiam a leitura.

O livro tem muito de registo etnográfico, no modo como as crianças falavam, na forma como se achincalhavam uns aos outros, até no que respeita às expressões e à própria construção das frases…

Sim, houve também um esforço da minha parte para o livro servir, quanto mais não seja, como uma espécie de registo para alguém que queira estudar a linguagem da Lisboa de então. Tem lá bons exemplos de expressões e palavras que caíram em desuso, mas que, eventualmente, poderão ser recuperadas. Aliás, também já levei na cabeça por isso mesmo, mas não me incomodou. Tive a sorte de começar a escrever muito tarde. Eu acho que as pessoas devem começar a escrever tarde, ou melhor, podem começar a escrever cedo, mas a publicar mais tarde. É o meu caso. Quando publiquei, já estava calejado, já sabia como essas coisas funcionam e não me preocupei com as reacções.

O livro dedica espaço significativo ao mundo escolar. Foi-lhe difícil fazer esse exercício de recordar a escola primária?

Não foi muito difícil, não. Eu tenho aquele tipo de memória chamada de romancista, é um pouco, também, memória fotográfica. Por exemplo, sempre me recusei a decorar números de telefones, mas os poucos telefones que sei, sei-os pelas teclas, pelo local onde elas estão, porque se for 2345..., não sei, perco-me por completo. É a memória da localização das teclas. É da imagem, portanto, e então vem-me uma imagem e depois outras surgem. Aliás, quando começo a escrever, faço-o a partir de uma imagem. E já falei com outras pessoas com quem se passa o mesmo. Há gente que parte de ideias, coisas abstractas; eu parto quase sempre de imagens, de uma imagem que vai sendo desenvolvida. E atrás de imagem, imagem vem…

A escola primária de que fala o livro era uma escola masculina e feminina. Com uma separação eficaz entre os sexos?

Pois, eram separadas. Eu já não me recordo se falo nisso... A escola era nova e começaram por pôr um arame farpado a dividir os recreios. Mas depois, como os matulões iam espreitar as meninas, resolveram fazer um muro suficientemente alto para nós não vermos para o lado de lá, e vice-versa. Então, como havia sempre aquele esquema de um se pôr às cavalitas de outro, a contínua ia fiscalizar o recreio, punha-se no sítio onde estava o muro e quando alguém se aproximava... “Hei, fora daí!”. Era gente doente [risos]. O fascismo, aliás, foi uma doença malvada que passou por este país.

E quem trepava ao muro para ver as raparigas ia de castigo para o ‘segredo’. A comparação com o que se passava no país é fácil, o ‘segredo’ fazia lembrar uma cela de prisão, não é? No entanto, há uma personagem que prima pela diferença: a professora da turma daquele grupo de rapazes, que nunca é designada pelo nome, que contava histórias e estava “sempre pronta a interessar-se pela curiosidade dos alunos”, contrastava com a “maioria dos professores da escola, chatos e quezilentos”, sobressaindo o célebre Sobe-e-Desce, o mau fita.

Vamos lá ver, há aí personagens fabricados, construídos a partir de memórias de outras pessoas. A professora, eu salvei-a porque foi minha durante muito tempo. Tive um professor, não sei bem se foi na 3ª ou na 4ª classe, durante um curto período, mas quando me lembro da escola primária, nem me lembro dele. Aliás, até sei, era um homem pesado... A minha professora já tinha idade, de tal maneira que aprendi a ler pela cartilha do João de Deus, e já havia o livro oficial. A mulher não devia gostar muito do livro oficial, devia-o dar porque era obrigada, penso eu. Mas tenho muito boas recordações. Era de facto uma mulher que, via-se, não gostava de castigar; dava reguadas, mas... Havia lá um fulano que, esse, era às caneladas, reguadas, ponteiradas; um gajo olhava para trás e levava uma ponteirada na cabeça – fazia pontaria à orelha, mas às vezes acertava na cabeça. Houve alguns alunos a quem ele partiu a cabeça. Eram umas bestas.

Era uma escola de muitos castigos físicos: ponteiradas, puxões de orelha, carolos…

Era. As pessoas da minha idade, mais ano menos ano, têm memórias e lembram-se, directa ou indirectamente, de ter professores assim. Houve pessoas que ficaram de tal maneira marcadas que fugiam da escola, claro, e faziam elas bem. Escolas daquelas eram de fugir [risos].

Era o princípio de que só se aprendia à pancada.

Aliás, há uma expressão portuguesa, malvada. Nós temos magníficas expressões... Quem dá o sustento, dá a educação e dá o bordão, é sempre a dar…

O grupo de alunos daquela escola era muito homogéneo, em termos sociais, excepto o Amadeu, que “morava um bocado longe e ia para a escola pela mão da criada” e que nada tinha a ver com aqueles galdérios…

Esse nem se misturava. É curioso que o Baptista Bastos tem um conto – não sei se é um conto, não me recordo ao certo – em que também há um fulano que ganha distâncias, no caso dele, a posteriori. Havia fulanos conforme as escolas e havia escolas muito heterogéneas. Mas a minha ficava de facto perto, no bairro, e havia aquele cidadão que ia pela mão da criada... Algumas mães, no primeiro dia de aulas, iam levar os filhos à escola, porque nós ainda éramos muito miúdos, não sabíamos que era preciso assinar papéis, etc., mas aquele não queria misturar-se. O gajo, se calhar, sofreu que nem um diabo. Não sei onde é que ele está, mas provavelmente sofreu imenso, porque depois sofria o nosso ostracismo – aquele gajo, coitado, era dono do mundo, mas também deve ter sofrido o seu bocado. Um amigo meu, que também foi criado num bairro popular, estava a dizer a um outro nosso amigo, cujos pais eram gente de dinheiro: “pois é pá, tu pertences àqueles que tinham os brinquedos todos, porque havia malta que não tinha brinquedo nenhum e metias raiva à malta”; e dizia o outro: “pois, pois, e tu não queiras saber o que se sofre a defender os brinquedos dos gajos que não têm brinquedos” [risos]. No fundo, era um re- flexo da famosa luta de classes – começava logo nessas pequenas coisas.

Outro dado que recorda com uma certa graça é o facto de se proibirem as leituras não escolares (Cavaleiro Andante, Mundo de Aventuras, O Mosquito), chegando o Sobe-e-Desce a fazer verdadeiras rusgas às malas dos alunos…

É verdade, não se podiam levar para a escola. Ah! o Sobe-e-Desce... Ele era lá professor. Havia um professor que tinha um bocado esse feitio. Havia também o director, uma figura severa no exercício do poder. Mais tarde, o meu irmão foi para a mesma escola e ele queria obrigá-lo a pagar, já não sei quanto, para a Mocidade Portuguesa. Como era mais velho e achei aquilo estranho e abusivo, fui ao Ministério da Educação informar-me e um funcionário disse-me que não era obrigatório pagar. O pobre do meu irmão correu alguns riscos de o aborrecerem, mas, vá lá, teve sorte.

Na altura proibia-se a entrada de livros e revistas nas escolas. Hoje queixamo-nos de que as crianças não lêem, estamos sempre desejosos de que leiam qualquer coisa…

Seja o que for. Seja o Tintin, que até é muito engraçado, ou outra coisa qualquer, importante é ler. Mas pior foi mais tarde, quando andei no Gil Vicente. O reitor, Joaquim Romão Duarte, que era comissário nacional da Mocidade Portuguesa – nós chamávamos-lhe Quinzinho das Cancelas, porque ele resolveu pôr cancelas ao redor do liceu, para que os alunos dos diferentes ciclos não se pudessem misturar; era como as ovelhas, umas para aqui, outras para ali, uma coisa terrível – mandava-nos de castigo para a biblioteca, onde podíamos requisitar um livro. Se o professor faltava, também íamos de ‘castigo’ para a biblioteca. Mas eu divertia-me imenso, porque fartei-me de ler livros. Quando acabavam as aulas, não se podia ir para lá ler, e não se podiam levar livros emprestados. Ou seja, só íamos para lá ler se o professor faltava, que era para não irmos para o recreio incomodar os outros que estavam nas aulas, ou se estávamos de castigo. O livro era um castigo.

Hoje, a leitura de literatura infanto-juvenil é ‘endeusada’, de certa maneira, e a literatura, propriamente dita, é praticamente remetida para o Secundário…

Mas há muitos leitores. Os autores da chamada literatura infanto-juvenil vendem muito.

Mas acha que as crianças e os jovens lêem mais?

Eu acho que se lê mais. Acho que há mais leitores. Nos meus tempos de liceu, mesmo no 5º, 6º e 7º anos, havia na turma dois ou três alunos que se interessavam pela leitura. Hoje, as pessoas queixam-se de que as turmas são muito grandes, mas naquela altura chegávamos a ser 40 na mesma sala. Mas também é verdade que metade não estava lá a fazer nada... E se se portavam mal, iam de castigo para a biblioteca.

Uma boa forma de se começar a odiar as bibliotecas…

Mas essa prática estendia-se a um nível mais vasto, não era só na instituição escolar: os pais não gostavam que lêssemos obras que não fossem de estudo. Livros de estudo é que eram bons, os outros não se liam... De um modo geral, a leitura não era muito incentivada. Desgraças da época que então se vivia. Se há vontade de dominar quem quer que seja, é mantê-lo na ignorância…

Acompanhou o debate sobre o ‘saneamento’ de Luís de Camões no processo de revisão curricular do Secundário?

Não acompanhei muito bem. Como é que hei-de dizer? Achei que era um perigo. Eu levei muito tempo a libertar-me do chato que o Camões era. Porque dos Lusíadas só eram ensinadas determinadas estrofes, e depois há aquela coisa das orações, que hoje reconheço que era um bom exercício; ainda por cima, dividir orações não era fácil e os entendidos, por vezes, também hesitam. Só muito mais tarde, quando dei grandes voltas pela poesia, voltei ao Camões lírico. Aliás, para mim, o Camões era um lírico. Os Lusíadas, está bem, é um grande poema, sim senhor, mas ele escreveu aquilo só para ter atenção, acho eu... Hoje, para mim, o Camões lírico é o grande Camões.

A relação entre a escola e a literatura é uma relação difícil?

Não é uma relação muito difícil, é uma relação complexa, porque pode ser um choque e afastar as pessoas – imagine se um professor de literatura é um chato, está a fazer um péssimo trabalho, de certeza absoluta, está a afastar os alunos. Eu tive um excelente professor no liceu, o doutor Dias Agudo, por sinal professor de Matemática, que me ensinou uma coisa que eu acho que é fundamental em tudo – ele não explicava, ele punha problemas para nós resolvermos e nós, ao resolvermos o problema, adquiríamos conhecimentos. No fundo, como ele dizia, um professor – um pedagogo, acho eu – é que tem de dar ferramentas para as pessoas aprenderem por si. Estou muito grato a esse professor, e a outros, por me ter ensinado a aprender. Nós o que precisamos é de saber aprender. A melhor ferramenta que podemos ter é estar sempre com o espírito suficientemente livre e aberto para aprendermos de novo, porque às vezes temos uma aprendizagem que é caduca, falível; entretanto, apareceram dados que alteram aquilo que nós tínhamos como seguro. Aliás, o avanço da ciência é exactamente esse, descobrir a parte de erro que há nas verdades. Os avanços científicos vão sempre nessa direcção, as pessoas descobrem que num determinado campo há determinados erros e ao descobrir os erros avança-se para novos conhecimentos, para novas descobertas. Estou muito grato a esses professores que me abriram caminhos, direcções, muito mais do que àqueles que eram explicadores, que explicavam tudo; um gajo ouvia, decorava e depois esquecia tudo.

A literatura é vista, pelos estudantes, como pouco utilitária.

As pessoas, hoje em dia, na fúria de comprar coisas, impingem montes de objectos que são perfeitamente inúteis, mas de que eles gostam, são miúdos. Também há uma geração que achava que a literatura era como o pão, muito utilitária, muito útil, fundamental. Efectivamente, é fundamental como exercício e conhecimento. Os autores que me tocam são aqueles que me deram horizontes novos sobre isto ou aquilo. De um modo geral, acontece com toda a gente, não é só comigo. Confesso que já tinha pensado nisso. Um professor de literatura tem de ser uma pessoa muito especial, de literatura e de português, embora de português devessem ser todos. Todos os professores deviam ser professores de português porque lidam com a língua, tão maltratada, coitada.

Na literatura temos acesso a outros mundos e muitas outras realidades. Também sobre a escola, o olhar do escritor é, nalguns casos, um olhar ainda mais profí- cuo do que o do pedagogo. Ler «Na Boca da Infância» é perceber como funciona aquela escola, entender as relações afectivas entre os alunos, conhecer a estrutura social da população escolar. Esse olhar da literatura sobre a realidade é, de facto, muito rico.

Muito obrigado.

É um outro lado da literatura, não é?

É, acho que sim... Sei lá, nunca fui a Nova Iorque, mas há “n” livros que me falam dela, ou de Paris, ou... Há autores que, de facto, têm esse condão... O [H.P.] Lovecraft escreveu um livro de ficção científica, mais de uma zona do fantástico, que se passava em Paris, e houve um fulano que lhe perguntou: “Como é que aquilo está tão bem descrito? É exactamente aquela zona de Paris, como é que conseguiste isso?” – “Eu viajei para lá em sonhos”, respondeu ele [risos]. Aliás, o que me interessou dos ecos do livro [«Na Boca da Infância»], o que me agradou mais, foi ouvir coisas dessas, de pessoas que foram criadas noutros bairros, identificarem-se como se aquilo se tivesse passado lá, como se também estivessem dentro do livro, o livro tem a ver com elas. Não sei de quem é a frase: é preciso ser muito particular para atingir o universal, é preciso ser muito exacto para atingir o universal.

Essa é outra dimensão, a riqueza do pormenor. Em «Na Boca da Infância» encontramos o arquétipo da instituição escolar, a forma como ela operava naquela altura.

A Escola hoje em dia é tão diferente, tão diferente, que falarmos destas coisas talvez ajude os de hoje. Se algum rapaz de hoje pegar no livro, talvez o ajude a perceber algumas coisas do passado.

Creio que essa é outra utilidade da literatura, permitir um acesso à dimensão histórica. Os livros de ensaios são para uma elite interessada na história da educação…

Com excepção dos avós. O avô ou a avó serviam exactamente para isso, fazer a ligação entre o passado, o presente e o futuro, porque eram a memória. É a velha história que se cita muito em África: quando um velho morre, desaparece uma biblioteca. As pessoas sem memória, coitadas, ficam balhelhas de todo. Os homens que estudam o cérebro sabem disso, uma pessoa sem memória está perdida.

Diz-se que vivemos em sociedades sem memória. A literatura pode preencher esse espaço, não acha?

A literatura preenche completamente esse espaço. Se quisermos ter uma ideia do que os gregos pensavam do mundo, vamos ler a «Odisseia» e vemos o que eles pensavam do mundo, como viam o mundo. E quem diz os gregos, diz outros. Se nós lermos o Eça [de Queiroz] ou o Camilo [Castelo Branco], para não fazer escolha entre os dois, estamos a ver aquele século dezanove. Eles representam bem o século dezanove, cada um à sua maneira. O Camilo tem um livro fabuloso – que já várias pessoas quiseram adaptar ao cinema, mas que ninguém adaptou, o que é pena – que é «A Queda de Um Anjo». É o mundo de hoje; quer dizer, é do século passado, mas hoje temos bons exemplos de quedas de anjos. Ou o Pacheco, do Eça... Se formos à Assembleia da República e olharmos muito bem para aquela gente, andam lá bastantes Pachecos…

Sendo uma pessoa exterior ao mundo da Educação, como vê este sector?

Como não tenho filhos, a situação da escola passa-me um bocado ao lado e alguns ecos que eu tenho, é pelos amigos. Tenho muitos amigos que são professores, a maior parte deles universitários, e andam bastante assustados e preocupados com as condições em que os alunos lá chegam. Mas também não sei se os alunos antigamente não chegavam em más condições. Eu acho que os jovens de hoje até sabem mais, estão mais preparados do que no nosso tempo, na generalidade, porque têm acesso a uma quantidade de informação. Às vezes podem-se baralhar, podem não perceber, podem fazer confusões e alterar até os valores…

Mas é uma informação que vem de fora da escola…

Fora da escola ou até daquilo que os pais têm em casa. Se os livros são muitos ou poucos, se são bons ou não, eu não sei, mas quando cresci, os primeiros livros fui eu que os levei para casa. E era dificílimo, porque na minha aldeia ninguém tinha livros... Havia um, lá longe, que assinava aqueles folhetins que se vendiam de porta em porta, coisas assim... Esse papel é hoje preenchido pel’A Bola e pelos jornais desportivos, de um modo geral. Acho que o analfabetismo do povo português, de uma significativa parte, seria bem pior se não fossem os jornais desportivos [risos].

Luís Souta (entrevista e fotografia)

 


  
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