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As condições de trabalho são fundamentais para avaliar o trabalho do professor

Luiz Fernandes Dourado é professor na Universidade Federal de Goiás (UFG, Brasil), membro da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação e do Conselho Superior e Técnico Científico da Educação Básica da Capes. Com larga experiência na área da Educação e da Sociologia da Educação, foi diretor da Secretaria de Educação Básica, do Ministério da Educação, e coordenador das equipas de consultores na elaboração dos documentos-referência e final das Conferências Nacionais de Educação (CONAE 2014, 2010 e 2008). Licenciado em Ciências Sociais e mestre em Educação pela UFG, completou o seu percurso académico na Universidade Federal do Rio de Janeiro (doutoramento) e na École des Hautes Études en Siences Sociales (pós-doutoramento). Luiz Dourado conversou com a PÁGINA aquando de uma recente vinda a Portugal, para participar num debate sobre a municipalização da educação promovido pela Federação Nacional dos Professores (Fenprof).

 

Quando falamos de educação e de sistema educativo estamos a falar da mesma coisa ou de conceitos distintos?

Acho que a educação é mais abrangente; entendo-a como uma prática constitutiva e constituinte e, nesse sentido, ela faz parte das relações sociais mais amplas. Pensar a educação é pensar a sociedade. E quando pensamos os sistemas educativos, eles são formas de organização, de sistematização da prática educativa, que normalmente acontece em instituições, escolares ou não.

 

Com determinadas finalidades...

Com determinadas finalidades. Entre os objetivos, no caso brasileiro, está a garantia de acesso a perspetivas formativas, a uma educação sistemática organizada em níveis, etapas e modalidades. Então, nós temos dois níveis: a educação básica e a educação superior. Na educação básica, temos educação infantil, dos zero aos três anos de idade, creche e pré-escolar (4 e 5 anos), ensino fundamental (6 a 14) e ensino médio (15 a 17 anos). Além disso temos modalidades: educação indígena, quilombola, educação no campo, a educação à distância… No caso da educação superior, temos uma etapa inicial, de graduação e licenciatura, e depois a pós-graduação lato-senso (cursos de especialização) e estrito-senso (mestrado, doutoramento e pós-doutoramento).

 

Esse é, portanto, o sistema educativo brasileiro...

De uma maneira geral, essa é a estrutura sistémica da educação no Brasil. Além disso, temos a educação não escolar, que acontece noutros espaços, como as prisões, numa perspetiva socioeducativa de formação, e em associações e espaços outros, que não os institucionais.

 

Para termos uma noção da dimensão do sistema educativo brasileiro, pode referir alguns indicadores?

É um sistema bastante complexo, com cerca de 50 milhões de estudantes e mais de dois milhões de professores distribuídos por três subsistemas: municipal, estadual e federal. Segundo dados de 2013, mais de 23 milhões de alunos estão na esfera municipal, 17 milhões na esfera estadual e apenas 300 mil na federal – o setor privado responde por mais de 8,5 milhões. Isto na educação básica; na superior, temos mais de sete milhões de estudantes: cerca de um milhão e meio no setor público e os demais no privado.

 

Em termos de financiamento do sistema público, qual é o valor de referência em termos de orçamento, ou de orçamentos?

Nós temos uma definição constitucional de vinculação de recursos à educação. Pela constituição federal de 1988, o Estado nacional deve investir no mínimo 18% e os estados e municípios 25% cada.

 

Significa quanto, em percentagem do produto interno bruto?

Tem resultado, aproximadamente, entre cinco e 5,5% do produto interno bruto. Mas o Plano Nacional de Educação, aprovado em julho de 2014 [ver caixa], aponta para 10% do PIB até 2024, com a meta intermediária de 7% em 2020. Portanto, numa década, teremos de duplicar o percentual do PIB para a educação pública.

 

Nos tempos que correm, faz sentido falar de educação de qualidade para todos como um desígnio dos Estados?

Nós estamos a vivenciar um cenário de muitas mudanças, até na conceção de Estado. Mas pensar um Estado passa, certamente, pela garantia do direito à educação, sobretudo na perspetiva de que essa educação seja pública e, diria mais, gratuita. Hoje, à escala mundial, a tendência é para a mercantilização da educação, mas eu entendo que só um sistema público de qualidade e gratuito pode, de facto, assegurar a todos e a todas o direito à educação – um direito inalienável, cuja garantia deve ser uma marca dos Estados modernos, numa perspetiva cultural e de formação humana mais ampla.

 

O que define a qualidade na Educação?

Qualidade é um termo polissémico, um conceito complexo que envolve vários atributos, o que implica discutirmos o papel social da educação, como se garante e efetiva o direito à educação, que compreensão temos sobre a infância, a adolescência e a juventude... É também um conceito historicamente determinado, que se altera no tempo e no espaço. Estas são questões fundantes para discutirmos a qualidade, mas também é preciso pensar nas variáveis internas e externas do processo educativo. Eu diria que a discussão da qualidade envolve conceções e princípios e, portanto, uma perspetiva filosófica: uma perspetiva emancipadora da educação defenderá um critério de qualidade; uma perspetiva mais centrada no fazer, na profissionalização estrito-senso, certamente terá outra compreensão da qualidade. O que implica uma discussão acerca do projeto pedagógico.

 

E que projeto pedagógico deve nortear a qualidade da Educação?

Um projeto de Estado que tenha em conta os múltiplos segmentos sociais e se articule de forma includente, garantindo vários insumos e processos de ensino-aprendizagem que atendam às diferentes realidades, bem como aos aspetos extraescolares que interferem no quotidiano da qualidade educativa. Numa sociedade desigual, a Escola precisa de ações afirmativas para contribuir para a equalização social. Eu diria que é preciso compreender mais aprofundadamente a relação entre educação e escola de qualidade: como é que o ato educativo se efetiva, quais as trajetórias familiares, qual o capital económico e cultural dos estudantes, dos professores... E considerar a heterogeneidade e a pluralidade sociocultural dos sujeitos não como algo a ser superado, mas como uma riqueza que deve ser observada. Há variáveis extraescolares que interferem no quotidiano da aprendizagem e a Escola deve promover dinâmicas que permitam o sucesso desses estudantes.

 

Fazendo mesmo uma discriminação positiva?

Sim, ações afirmativas de discriminação positiva são fundamentais, porque nós tratamos grupos desiguais. E a forma de ultrapassar a naturalização da desigualdade é pensar e organizar ações de descriminação positiva como, por exemplo, a educação de tempo integral para a população de baixa renda, com uma perspetiva de que ela possa ter acesso aos conhecimentos universais, à língua pátria, à matemática, às ciências, mas também a outras formações artísticas, a outras linguagens.

 

Em Portugal aumentou-se o número de horas de Português e de Matemática e desvalorizou-se tudo o resto...

Também no Brasil. É uma tendência mundial, sobretudo das agências de acreditação. Mas na compreensão mais ampla, que eu defendo, é fundamental o Português e a Matemática, como é fundamental a Sociologia, a Filosofia e uma visão ampla de Mundo, do Homem e da Sociedade. Não acredito que ampliar o tempo escolar para fazer mais do mesmo contribua para um avanço emancipatório nem para uma educação cidadã numa perspetiva de inclusão social.

 

Tudo isso sugere uma Escola diferente.

A Escola deve ser repensada como um lugar vivo, que não seja apenas o lugar do conteúdo curricular. Claro que isso tem uma centralidade, mas a formação deve ser mais ampla. Então, é preciso pensar na articulação entre questões de ordem mais geral – a escola como espaço fundante, de aprendizagem, de relações sociais, de convivialidade, de trabalho coletivo, de múltiplas linguagens – e o acesso ao conhecimento científico universal, no nosso caso, o Português, a Matemática, as Ciências. Igualmente, é preciso repensar as condições de oferta, e isso envolve o acesso à escola e as condições de permanência. E para isso é preciso uma escola com boa qualidade: de formação, mas também de infraestruturas, equipamentos e recursos.

 

E relativamente aos projetos pedagógicos?

O projeto pedagógico da instituição é fundamental. Deve retratar como a escola se pensa a si mesma, como se pensa na relação com as outras escolas, e portanto com o sistema, e como se define em termos de organização e gestão do trabalho escolar. Mas a definição e a organização da escola não são competências somente do diretor, são também do corpo pedagógico, dos professores e funcionários. E devem envolver os estudantes e os pais, de modo a que se possam discutir coletivamente questões como o planeamento, o trabalho pedagógico ou a avaliação – entender que esta discussão não é somente dos especialistas e que os pais podem contribuir para a discussão do currículo e da avaliação é uma quebra de paradigma. Quanto aos estudantes, se não os envolvermos nessa discussão, corremos o risco de uma oferta e de uma dinâmica curricular altamente dissociadas dos seus interesses.

 

Estamos a falar de gestão democrática, de comunidade educativa...

É a ideia da instituição escolar como espaço coletivo e, nesse sentido, de comunidade educativa; não no sentido de uniformização, mas de espaço onde se discutem grandes questões com impacto na organização da escola – finalidades educativas, autonomia pedagógica, gestão de recursos – e se possa pensar em estruturas como o regimento escolar, não como a decisão cartorial da escola, mas como uma construção coletiva em que direitos e deveres sejam construídos por quem vai vivenciar essas regras no quotidiano. Isso pode contribuir para o desenvolvimento da instituição e a melhoria das aprendizagens e da utilização de equipamentos, para uma discussão sobre a jornada de trabalho e a sua organização.

 

Ainda não falamos dos professores...

Pensando na articulação entre formação inicial e continuada, condições de trabalho, salários e carreira, o plano de valorização dos profissionais da educação é outro aspeto que, naturalmente, interfere na qualidade da educação. Os professores precisam de se encontrar e discutir processos de trabalho, dinâmicas formativas, a avaliação dos estudantes, as exigências que hoje se colocam ao trabalho docente…

 

No fundo, pensar o que deve ser hoje o professor.

Isso. Quem é esse profissional, como estrutura as suas atividades, que possibilidades de estudo tem, de correção de tarefas e elaboração de processos formativos mais amplos? Como acontecem as reuniões pedagógicas e qual a sua importância? Tudo isto tem a ver com o que eu chamo valorização dos profissionais.

 

E sobretudo é preciso pensar nos alunos.

O estudante é o ator fundamental no processo, e muitas vezes é secundarizado. É preciso pensar nele a partir do acesso, da permanência e da aprendizagem significativa. Não podemos pensar numa instituição educativa se não pensarmos nos estudantes. Uma das mudanças muito importantes para avançarmos na qualidade educativa é envolver os estudantes na construção pedagógica da instituição educativa e nas decisões sobre a lógica formativa que lhes será conferida.

 

Eles é que são a razão de ser da Escola.

Exatamente. O estudante deve ter uma ação de protagonista no processo formativo, como tem o professor. Esta seria uma mudança muito significativa e com impacto na relação com os demais profissionais. Eu sei que isso é difícil de discutir, mas é preciso repensar o papel dos sujeitos e a participação da comunidade na escola, numa perspetiva de viabilizar processos formativos mais amplos e de tornar a escola um espaço agradável e menos burocrático – sem perder de vista, obviamente, que ela tem papéis e objetivos a alcançar, entre eles a garantia plena do direito à aprendizagem. Portanto, a meu ver, a discussão da qualidade da educação passa por uma conceção que inclua a participação dos sujeitos, que rediscuta a escola e os currículos, a sua abrangência e pertinência, mas também processos mais interessantes de ensino/aprendizagem.

 

Há décadas tínhamos uma educação pública mais elitista

 

Em Portugal concorrem várias narrativas para explicar a “falta de qualidade” da Educação, nomeadamente na Escola Pública: do “facilitismo no ensino” à “perda de autoridade” dos professores, do “eduquês” à “indisciplina dos alunos”... O próprio ministro da Educação reclama que a Escola tem ser uma coisa séria, cada vez com mais exames, que não é a brincar que as crianças e jovens aprendem e que o mais importante, desde pequeninos, é saber ler, escrever e contar... Isto diz-lhe alguma coisa?

Eu acho que temos de refletir sobre essa agenda. Claro que é preciso garantir a autoridade do professor, mas isso é diferente de legitimar o professor autoritário. A autoridade do professor está, por um lado, na sua capacidade de formação e, por outro, na sua capacidade de trabalho coletivo, de interação com os estudantes, e da organização do seu plano de trabalho, articulado às classes em que vai atuar. Um professor que trabalha no horizonte coletivo de participação não perde a sua autoridade; aliás, normalmente, tende a vê-la reforçada. Agora, o que anda aí é um discurso que defende o autoritarismo docente, a centralidade do professor, e, por isso, um ambiente disciplinar rígido. Há um tempo, no Brasil, falava-se em “delegacias de ensino”; o próprio nome delegacia remete para uma conceção muito próxima de prisão.

 

Nessas críticas parece haver um “ajuste de contas” com a democratização da Educação...

As mudanças que tivemos não se devem à democratização; a democratização leva a avanços, à manutenção de rigor na perspetiva formativa. Há essa crítica de que se exige menos dos estudantes, mas a grande questão é que as exigências sejam repensadas a partir de um projeto pedagógico. Sempre que estiverem articuladas a um projeto pedagógico, e se a construção desse projeto for coletiva, as possibilidades de termos uma geração com uma conceção mais ampla de Mundo, de Homem e de Sociedade será maior. Eu não faço parte dos que têm um certo saudosismo de dizer que há décadas tínhamos uma educação pública melhor, porque há décadas o que nós tínhamos era uma educação pública mais elitista. E não podemos culpabilizar a democratização do acesso pela deterioração da escola pública – houve foi um crescimento do número de estudantes que não teve um aumento de recursos correspondente. Então, tivemos um empobrecimento da capacidade de resposta, de acompanhamento e da prática formativa, e isso resultou em classes maiores, com impacto na atuação dos professores, que passaram a ter menos tempo para o desenvolvimento das suas atividades.

 

Como se responde a essa situação?

Desde logo, com um projeto pedagógico em que o rácio professor/alunos seja compatível. Mas também é preciso repensar as bases curriculares – eu defendo uma base curricular nacional (o que deve ser fundamental para a unidade do Brasil), mas sem prejuízo de uma base diversificada, que considere as especificidades dos estados e dos municípios. Acho que este é o grande desafio e que pensar de forma colegial contribui para a melhoria da educação. Na conceção que estou a trabalhar (qualidade socialmente referenciada), a participação e a democratização das relações são fundamentais para a melhoria da qualidade.

 

Quando diz “socialmente referenciada” tem a ver com validação pela sociedade?

Isso. Quando digo socialmente referenciada, a base é o direito social – a educação como um direito de todos, numa perspetiva de contribuir para a emancipação dos sujeitos. Ela é socialmente referenciada a partir de um projeto de Sociedade, um projeto de Homem, de Cultura. O outro lado contrapõe uma conceção mais utilitarista da Educação, por isso, a ênfase em Português e Matemática em detrimento das Ciências e das Artes – trata-se de uma formação programática e eu tendo a achar que também é uma educação referenciada, mas referenciada no mercado.

 

E o mercado não reage bem a dimensões emancipadoras; sente-se mais confortável na escola do “saber ler, escrever e contar”...

Ler, escrever e contar é fundamental, mas é preciso que essa leitura, essa alfabetização que é para toda a vida, permita aos indivíduos não apenas ler, mas fazer uma leitura contextualizada, problematizadora. Isso contribuirá para a formação de sujeitos mais críticos, para repensarem a sua própria condição e a condição da sociedade e para lutarem por condições melhores. A Escola não pode cumprir este papel sozinha, mas tem uma importância muito grande, porque é talvez o único espaço em que há um tempo reservado para um conjunto da população. No Brasil, 50 milhões de estudantes têm, no mínimo, 20 horas semanais de aulas; se aproveitarmos melhor esse tempo pedagógico, essa dinâmica formativa, certamente teremos sujeitos com uma visão mais abrangente do mundo e da sociedade.

 

Todo o mundo tende a afirmar a Educação como um direito fundamental, mas na persistência da investida neoliberal, ela é tida como um produto e um mercado. Como é que o Poder lida com as duas visões?

Essa questão é fundamental. A Educação entendida como processo resulta num tipo de produto; entendida como um produto que nega o processo, e que, portanto, é pré- determinada, ela gera um produto que a meu ver é de segunda linha. E é isso que a relação entre Educação e mercado tem gerado – o discurso é que temos de ter uma formação cada vez mais rápida e que o importante é a língua e a matemática. Eu sublinho que outras linguagens também são fundamentais na dinâmica formativa e que é fundamental pensar a articulação ambiente educativo-prática pedagógica-avaliação. Não podemos definir uma lógica formativa com a ideia de um currículo mínimo, apostar em testes estandardizados e a partir daí dizer que temos ou não uma boa escola. Isso não é suficiente.

 

Sobretudo, quando se comparam realidades que não são comparáveis...

Exatamente! Quando pegamos no PISA, que é uma avaliação internacional da OCDE, os resultados precisam de ser contextualizados com as realidades nacionais; se não, estabelecemos um tipo de comparação entre coisas que não são comparáveis. Mas eu não sou contrário à existência dessas provas; sou é contra o uso que se faz delas, isto é, que os exames nacionais e internacionais sejam a referência do rendimento do estudante ou a referência de qualidade da escola. Eles são apenas indicadores, e limitados.

 

E qual deve ser a consequência da avaliação? Para quê avaliar?

Eu defendo uma avaliação formativa, que leve a repensar o trabalho dos professores e as condições em que a escola oferece a dinâmica formativa. Então, o exame não deve ser apenas um elemento para impedir ou validar o progresso do estudante. Quando falamos nessa avaliação mais reduzida, ela é punitiva, classificatória, é uma avaliação que naturaliza as diferenças. A avaliação formativa direciona-se para identificar os problemas no processo de ensino-aprendizagem e para os solucionar. O que significa, por exemplo, identificar os alunos com mais dificuldades, para que tenham um acompanhamento diferenciado e uma agenda que lhes permita ter êxito no seu percurso formativo. E aqui é importante dizer que também sou contra a promoção automática – a lógica é a mesma da avaliação punitiva, porque promover o estudante sem lhe ter garantido um processo de ensino-aprendizagem é negar-lhe o direito à educação. A avaliação é muito importante, e hoje é discutida por especialistas, pais, estudantes e professores, mas é ainda um tema pouco aprofundado.

 

Referiu a relação da avaliação com o trabalho dos professores. E eles, como devem ser avaliados?

No Brasil, a avaliação de professores é feita por sistemas educativos e por avaliações de larga escala, nacionais e internacionais, mas eu acho que precisamos de a rediscutir. Eu defendo uma avaliação, mas acho que ela deve contar com os próprios pares, que os professores devem participar na construção da dinâmica avaliativa. Nós temos essa experiência na educação superior, onde os próprios pares se avaliam – mas também há um processo autoavaliativo, em que o docente avalia as suas condições objetivas, a formação continuada, o tipo de investigação e a publicação daí resultante. É o conjunto desses elementos que lhe permite progredir na carreira. Na educação básica, eu acho que também é preciso envolver a avaliação do professor no conjunto da avaliação institucional. A avaliação só faz sentido se estiver ancorada na avaliação da instituição, e aí volto à ideia da valorização – a avaliação é importante para a valorização do profissional, mas uma avaliação que articule formação inicial e continuada, carreira, salário e condições de trabalho. As condições de trabalho são fundamentais para podermos avaliar o trabalho do professor.

 

A municipalização levou ao empobrecimento dos profissionais da Educação

 

Voltando à estrutura do sistema educativo – e isto entronca na questão dos conselhos municipais de educação e da municipalização, que está a marcar a atualidade política educativa portuguesa –, qual deve ser o papel das administrações, das escolas e dos diferentes atores?

Esta questão é importante, porque devemos identificar esses conselhos com algum grau de autonomia. Quando falamos em conselho municipal, eu não estou a pensar em município em sentido limitado, em câmara; estou a pensar num Conselho Municipal de Educação que tem a ver com a condição local, mas que envolve professores, diretores, pais, estudantes e comunidade na discussão das questões educacionais. No Brasil, temos o Conselho Nacional de Educação, os conselhos estaduais e municipais, e também os escolares. As diretrizes nacionais são elaboradas pelo CNE, que tem 24 membros, indicados por sindicatos e associações científicas e nomeados pela Presidência da República. Aos conselhos estaduais, que têm uma composição próxima e a mesma lógica, compete normalizar matérias complementares às definidas pelo CNE, e os conselhos municipais fazem normativos complementares aos estaduais…

 

… Um efeito cascata que vai desaguar nas escolas.

Isso deve chegar à escola, onde funcionam os conselhos escolares, que são órgãos colegiais, com a participação da direção da escola e representação dos professores, estudantes, pais e comunidade local. Ali discute-se o projeto da escola, a organização do trabalho, a gestão dos recursos financeiros, o programa de alimentação escolar… Temos ainda um canal muito vivo de participa- ção da sociedade civil – os fóruns (nacional, estaduais e municipais), que dinamizam as Conferências Nacionais de Educação e, previamente, as municipais, intermunicipais e estaduais. O Fórum Nacional de Educação propõe um documento-referência que é trabalhado desde o nível local ao estadual e depois vai para a Conferência Nacional, que tem a participação de delegados das conferências estaduais e municipais, onde se discute e se trabalha.

 

E o que acontece depois a esses documentos?

São encaminhados tanto para os ministérios e secretarias de Educação, como para os conselhos, nacional, estaduais e municipais. No caso, a Conferência Nacional de 2010 foi fundamental para a proposta de Plano Nacional de Educação do governo, de que falei há pouco, porque ele absorveu uma parte das conceções e propostas da conferência.

 

O Conselho Nacional é apenas um órgão de consulta ou tem competência deliberativa?

É um órgão normativo e delibera sobre várias matérias, que têm de ter a homologação do ministério. Quando há um entendimento muito diferenciado, o Ministério da Educação não pode alterar, mas devolve ao conselho e pede o reexame do documento. Portanto, gozamos de algumas prerrogativas de autonomia... Por outro lado, o Conselho Nacional tem um conjunto de atividades de articulação com a sociedade, faz audiências públicas sobre várias temáticas. No ano passado, fizemos audiências sobre formação de professores, educação à distância, gestão democrática. Enfim, o conselho chama para as suas audiências públicas as grandes temáticas e aí submete um documento ou uma resolução à manifestação popular, havendo sempre uma comissão que acolhe o conjunto de contribuições. É um processo em que estamos a avançar, e precisamos de avançar mais. Os conselhos devem ser órgãos de Estado e, portanto, devem ter mais autonomia.

 

A ‘estratificação’ administrativa da educação pública brasileira não resulta numa sobreposição de assimetrias, e logo desigualdades, entre escolas, entre municípios e entre estados?

É importante dizer que já temos esse nível de desconcentração há longo tempo e o desafio é avançarmos para um efetivo processo de descentralização qualificada que não prescinda do papel coordenador do Governo nacional a partir de relações de cooperação com os governos subnacionais (estados, distrito federal e municípios). Hoje já há algumas propostas direcionadas para a centralização ou federalização. Particularmente, eu sou contra, porque na verdade temos um conjunto de experiências muito ricas. Mas também sou contrário à municipalização, se entendida como prefeiturização, ou seja, como mero processo de desconcentração de atribuições e responsabilidades. Nesse cenário, é preciso garantir que a atuação do poder público se efetive com condições pedagógicas e financeiras objetivas. O caso brasileiro é histórico e complexo, é preciso aperfeiçoar a colaboração e cooperação entre os entes federados. Eu defendo uma descentralização qualificada, por meio de efetivo regime de colaboração e cooperação entre os entes federados (união, estados e municípios) no tocante ao financiamento, gestão e regulação das políticas educacionais, sem prescindir do papel de coordenação nacional das políticas pela União, em articulação às diretrizes curriculares nacionais, definidas pelo Conselho Nacional de Educação, e complementadas pelos conselhos estaduais e municipais.

 

Quando fala de municipalização, fala de uma realidade geográfica, territorial, e não da instância política municipal, da câmara...

É exatamente isso. É uma ideia de descentralização territorial, neste caso, com competências dos municípios, dos estados e da União no tocante ao financiamento. Mas no caso brasileiro, a municipalização gerou uma desobrigação do poder central e o que aconteceu? O município assumiu muito mais competências do que condições objetivas para fazer; assumiu um conjunto de novas atribuições, mas não teve novos recursos, ou não foram suficientes. Houve uma ampliação das oportunidades educacionais, mas não houve melhoria da educação – em alguns casos houve até retrocesso.

 

E o que fazer agora?

Essa não é uma engenharia muito simples, porque a centralização excessiva também é problemática. Por isso defendo um modelo de descentralização qualificada, em que compete ao Estado nacional (União) estabelecer as diretrizes nacionais e participar ativamente, por meio de relações de cooperação e pactuação com governos estaduais e municipais, do financiamento e gestão da educação básica, visando garantir políticas estáveis que se materializem a partir de referenciais nacionais de qualidade. Hoje estamos a vivenciar um processo que altera, e muito, a lógica de municipalização dos governos neoliberais que tivemos; não temos uma revolução, mas temos um governo que avança e mudanças importantes, sobretudo no campo educacional. Primeira delas, o governo de Lula da Silva estabeleceu um piso salarial nacional [salário mínimo], o que representa um avanço muito grande, porque nós temos 26 estados, um distrito federal e mais de 5.500 municípios, e cada uma dessas instâncias tinha uma política salarial. Então, desde 2008, os professores têm uma diretriz salarial comum, independentemente de serem da rede municipal, estadual ou federal.

 

Naturalmente, foi uma mudança bem acolhida...

Na verdade, ela foi objeto de questionamento dos governadores de alguns estados ao Supremo Superior/Tribunal Federal, que deu ganho de causa ao governo nacional, no sentido de ser preciso garantir um salário base comum a todos os professores. Esta realidade precisa de ser aprimorada, porque o piso ainda é baixo, mas é uma sinalização muito objetiva. Uma outra diz respeito ao fundo de financiamento e valorização da educação básica.

 

Porquê, o que muda?

É um fundo de natureza contábil, que vai reequacionar os recursos: os estados mais ricos repassam recursos para os mais pobres, que podem melhorar um pouco as suas condições objetivas. Portanto, o Brasil caminha com a sinalização de uma descentralização qualificada: continua a haver a participação dos estados e dos municípios na oferta de ensino, mas a participação da União está cada vez mais presente: na alimentação escolar, na política nacional de livros didáticos, na formação inicial e continuada, nas questões salariais... E isso foi necessário, exatamente, porque a municipalização levou ao empobrecimento, inclusive, dos profissionais da educação.

 

E em termos de carreiras, como funciona? Há uma carreira única ou várias?

Nós temos várias carreiras, mas o Plano Nacional de Educação definiu um período de dois anos para que o governo nacional (União), em articulação com os estados e os municípios, estabeleça diretrizes nacionais para as carreiras. Isso pode levar a carreiras correlacionadas, mas para já, o que há de comum são os salários, a base salarial; as carreiras são diferenciadas. Cada estado e cada município têm as suas carreiras, algumas mais atrativas do que outras – por exemplo, nos municípios das capitais, que dispõem de mais recursos, as carreiras são melhores, o salário dos professores é melhor…

 

Então existem três carreiras e três espécies de vínculo: municipal, estadual e federal?

Sim, mas no caso municipal, o vínculo não é único. Cada município tem a sua carreira, ou seja, há a possibilidade de mais de 5.000 tipologias... Mas há algumas regras e exigências que são nacionais. Por exemplo, o ingresso é só por concurso público, não importa se é federal, estadual ou municipal; é necessária uma determinada formação; há uma carga horária mínima, de 20 horas…

 

E um professor que está na carreira municipal também pode estar na federal, ou só pode estar numa?

Numa jornada parcial, é possível ter mais de um vínculo e pertencer a mais de um sistema. E o mais comum é estar na carreira municipal e na estadual, porque no caso da federal, grande parte dos professores tem dedicação exclusiva.

 

A realidade brasileira – a perspetiva de avançar, de fazer mais, de fazer melhor – é completamente diferente da portuguesa, se não oposta. Por comparação às metas que o Brasil se propõe atingir nos próximos dez anos, como vê a situação em Portugal?

O cenário internacional é muito complexo e afeta os diferentes países. Os processos de financiamento do capitalismo delapidam as riquezas nacionais e alimentam discursos cada vez mais redutores do serviço público em determinadas áreas, argumentando que o setor privado é mais qualificado e competente para o assegurar. Então, há toda uma pressão para a terceirização de atividades que são prerrogativas do Estado, como é o caso da educação. E aqui vejo com preocupação o processo de municipalização – a simples delegação do serviço público de educação nas autarquias poderá efetivar-se não como processo de descentralização, mas de desconcentração e desresponsabilização do poder central face à educação.

 

Com que consequências?

Poderá afetar não apenas os profissionais da educação, mas também os estudantes, que poderão ter escolas de qualidade diferenciada em função da condição do próprio município. Portanto, acho que se deve problematizar mais o quadro da municipalização, à luz das condições políticas e das dinâmicas de organização da educação, porque pode-se correr o risco de – como aconteceu no Brasil, em alguns casos – não termos mais democracia, nem participação e, ao contrário, serem ampliados o clientelismo local e um certo protagonismo da autarquia.

António Baldaia (entrevista)

Ana Alvim (fotografia)

 

GRANDES DESAFIOS PARA UMA DÉCADA

Aprovado em 2014, o Plano Nacional de Educação (PNE) do Brasil compreende 20 metas para alcançar até 2024: universalização do ensino médio, gestão democrática do sistema, plano de carreiras com critérios nacionais como o salário inicial, articulação ensino médio/educação profissional, duplicação de vagas na educação superior, duplicação do financiamento em percentagem do PIB. Estes são alguns dos objetivos que apontam a Educação como uma prioridade do Estado brasileiro – no seu discurso de posse, a Presidente Dilma Rousseff falou de pátria educadora. Apesar de aprovada no PNE, esta agenda tem de ser regulamentada, o que significa luta política e uma disputa pelos fundos públicos. O setor privado quer cada vez mais ser beneficiado por meio de financiamentos, de bolsa estudantil, de recursos para as instituições – há setores que defendem os vouchers com o discurso da liberdade de ensino. Para materializar estas políticas, é preciso grande mobilização da sociedade, que deve resultar da participação cidadã nos vários espaços de discussão: conselhos, fóruns e conferências – estas foram aprovadas no âmbito do PNE e passam a ocorrer como dispositivo legal. O desafio de melhorar a qualidade do ensino fundamental é enorme, porque as taxas de evasão e de retenção são altas. Um desafio quantitativo e qualitativo: continuar o esforço de ampliar as oportunidades educacionais e, de maneira concomitante, melhorar a qualidade da educação.


  
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