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É possível construir uma sociedade com igualdade de oportunidades

Veio a Portugal defender, na Universidade Católica do Porto, uma tese de doutoramento em Ciências da Educação intitulada “A mulher moçambicana na ocupação de cargos de decisão. Um estudo de caso no âmbito das direções provincianas de Nampula”. Nesse estudo, conclui que, apesar de a mulher estar a conquistar aos poucos o seu espaço, os homens continuam a ser privilegiados em termos de oportunidades no acesso à educação e, consequentemente, aos cargos de decisão. Com 36 anos, Natália Bolacha é diretora pedagógica da Faculdade de Educação e Comunicação da Universidade Católica, em Moçambique, e diz que sente na pele o preconceito ainda evidente em relação à mulher – “não pode falhar”, disse à PÁGINA, deixando propostas e alertas: a mulher precisa de ser solidária, de lutar pelo seu espaço, de ser forte para ultrapassar os obstáculos e de mostrar que tem capacidade de liderança.

 

A que conclusões chegou na sua tese?

As minhas conclusões revelam que as mulheres ainda ocupam menos cargos de decisão em relação aos homens. Mas, fazendo uma comparação com o passado, também chegámos à conclusão de que as mulheres estão a conquistar cada vez mais o seu espaço, principalmente nesses cargos: temos agora mais ministras, mais governadoras, mais diretoras provinciais e mais mulheres responsáveis noutros setores de atividade. Penso que a mulher moçambicana está a crescer e a lutar cada vez mais para conquistar a sua emancipação. Para além disso, a mulher moçambicana continua a ser a responsável pelos trabalhos domésticos e por cuidar dos filhos, do esposo, dos idosos, da família. Então, ela tem uma responsabilidade muito grande na gestão doméstica e isto põe-na numa situação desfavorável em relação ao homem. Porque os fatores culturais e tradicionais têm muita influência. Muitas vezes, quando se trata de filhos, a sociedade moçambicana dá mais oportunidades aos rapazes para irem à escola, enquanto as raparigas ficam em casa a aprender a cuidar dos trabalhos domésticos. E um dos requisitos principais para o acesso aos cargos de decisão é ter, pelo menos, a 12a classe. Portanto, é necessária uma educação formal mínima, e se elas não têm a oportunidade de ir à escola, torna-se mais difícil. O estudo revela também que, apesar de o Governo e das direções provinciais fazerem um esforço no sentido de privilegiarem as mulheres na atribuição de bolsa de estudos, para elas se formarem e terem um nível mais elevado, há cada vez mais mulheres nos setores de atividades sem um nível de educação superior em relação aos homens. Moçambique tem uma quota de 35 por cento que privilegia as mulheres para ocupação de cargos de decisão, mas se elas não têm o nível que é exigido, não lhes é possível aceder aos cargos de decisão. Esta é a razão por que eu proponho na tese que a mulher, ela em primeiro lugar, se preocupe em apostar mais nos estudos, em acreditar nela mesma, e se está a exercer alguma atividade, então tem de se dedicar mais, tem de se preocupar em ter um desempenho positivo e mostrar aos demais colegas e aos seus superiores que tem capacidades. Os nossos entrevistados foram quase unânimes em dizer que há poucas mulheres a exercer cargos de decisão e que a própria história revela que quem sempre exerceu cargos de liderança foram os homens. Portanto, o homem é experiente na questão de liderança e a mulher sempre ficou para trás.

 

As mulheres têm um “duplo trabalho”: tratar da família e das suas responsabilidades profissionais. É uma situação comum, que exige muito delas...

É verdade, porque só o trabalho da família já é muito. Mas as mulheres não têm outra hipótese se não tentar conciliar ambas as partes: cuidar da casa e fazer o esforço de conquistar o seu próprio espaço nos setores de atividade. Então a mulher moçambicana enfrenta um desafio muito grande. E os fatores principais que criam obstáculos ou barreiras a que a mulher cresça, a que o seu estatuto seja elevado – e não só nos cargos de decisão – não é só a educação, mas também as questões tradicionais e culturais. Em Moçambique, tradicionalmente, o poder está dividido em duas partes: na zona norte, o poder matriarcal; na zona sul, o poder patriarcal. Mas isto só funcionava no período pré-colonial. Atualmente, o modelo patriarcal de poder alastrou para quase todo o país, é o homem que tem o privilégio e que está em grande parte dos cargos de decisão. Então, para conquistar o seu espaço, a mulher tem de se preocupar em estudar, em elevar cada vez mais o seu nível; tem de pedir espaço para ter a palavra, para ter voz, e mostrar que realmente é capaz. Se não, nunca é acreditada, por causa dos fatores culturais e tradicionais e, também, dos estereótipos sociais e sexuais em relação às suas características e capacidades de liderança.

 

E acha que as moçambicanas procuram acreditar mais nelas?

Sim, procuram. E uma das consequências disso, conversando com algumas que ocupam cargos de decisão, é a questão do divórcio. Elas diziam que corriam o risco de se divorciarem, porque tinham estudado e tinham espaço, e os homens acham que já não podem mandar mais, sentem-se cada vez mais em baixo... Aí entra a questão tradicional e, como consequência disso, há divórcios. Como dizia antes, acho que as mulheres, para evitarem a questão de divórcio, devem tentar conciliar os trabalhos: a gestão doméstica e a responsabilidade profissional.

 

Qual é a importância da educação na promoção da igualdade de género?

Essa é uma preocupação geral, da família, da escola e de toda a sociedade, para a mudança das mentalidades. A escola tem de começar a criar programas de intervenção no sentido de sensibilizar os homens a mudarem a sua mente. Tem de haver mudança social a respeito da igualdade de género. Nós fomos socializados desde a infância para que os homens exerçam estas atividades e as mulheres exerçam aquelas. Assim fomos ensinados e crescendo e nos comportamos. Foram-nos inculcados esses valores e crenças, que assimilámos, interiorizámos e assim seguimos naturalmente. Agora, acho que precisamos de abrir a mente, de tentar desconstruir as velhas ideias e mudar para uma nova realidade, porque todos merecemos, homens e mulheres, os mesmos direitos. Temos de ter os mesmos privilégios, tem de haver igualdade na oportunidade. A educação é um direito que todos merecemos e é uma porta de entrada para todas as situações. Então, também é importante que as mulheres tenham o seu espaço na área da educação.

 

Foi essa a ideia que a levou a escolher a tese de doutoramento?

A História diz que as mulheres não tiveram as mesmas oportunidades que os homens, principalmente na educação. Isso é que me levou a estudar esta matéria, e também porque estou a fazer um curso de Pedagogia Social, que intervém principalmente nas camadas desfavorecidas. Acredito que, em todo o mundo, as mulheres encontram-se numa situação desfavorecida em relação aos homens, em termos económicos, políticos, sociais e educativos. Eu preocupei-me em estudar isso, para perceber em que situação nos encontramos e que propostas posso trazer para a sociedade moçambicana.

 

A sua faculdade promove feiras de projetos empresariais onde os estudantes finalistas tentam responder às necessidades do mercado de trabalho. Como está esse mercado em Moçambique, principalmente para as mulheres?

Está cada vez mais exigente. Para se ter acesso ao mercado de trabalho, é preciso adquirir competências e habilidades: saber fazer, saber ser e saber estar. Neste momento, a Faculdade de Educação e Comunicação aposta principalmente no saber fazer, porque o mercado exige pessoas que saibam fazer. No final do curso, os estudantes concebem um projeto de simulação empresarial, vão às empresas fazer pesquisas, detetam necessidades e, a partir delas, desenham um projeto. Isto é muito interessante e importante, porque treinam o saber fazer e adquirem as competências próprias para o mercado de trabalho.

 

Esses projetos abrem portas para as mulheres moçambicanas?

Em Moçambique, principalmente nas universidades, há cada vez mais mulheres. De modo particular, na minha faculdade tenho reparado que há cada vez mais mulheres, até em relação aos homens. A mulher moçambicana vai agora à luta, preocupa-se em conquistar espaço, em garantir que haja realmente igualdade de géneros.

 

Como descreve a Mulher moçambicana?

A mulher moçambicana ainda não está 100 por cento emancipada, ainda não adquiriu esse estatuto. Mas o Governo preocupa-se com este aspeto e já inclui a questão da igualdade de género nas suas políticas. O que acontece é que os próprios dirigentes não assumem o compromisso, não há vontade política, por vários fatores, culturais, mas também económicos: sempre que há um orçamento ligado à questão da igualdade de género, esse orçamento é desviado, às vezes porque os próprios dirigentes não têm vontade para o aplicar. Mas acho que já temos instrumentos legais e políticos suficientes que favorecem o estatuto social das mulheres – o problema está na aplicação efetiva desses instrumentos, que falha por falta de compromisso e vontade política dos próprios dirigentes.

 

Ainda há preconceitos?

O preconceito ainda prevalece. Ainda existem estereótipos em relação à figura da mulher, em todos os âmbitos, mas principalmente em relação aos cargos de decisão. Ainda não se acredita. Por isso eu continuo a defender que tem de ser a própria mulher que tem de lutar, de estudar, de mostrar que realmente tem capacidades para o efeito, porque alguns estudos já mostram que não há muita diferença em termos de liderança entre homens e mulheres. As mulheres são capazes de liderar, sim, mas por causa dos preconceitos, ainda há receio por parte dos dirigentes. Não exijo muito das mulheres, apenas não vejo alternativa para conquistarem o seu próprio espaço. Têm de ser as mulheres…

 

Como diretora pedagógica de uma faculdade, sente esse preconceito?

Eu sinto e vivo esta preocupação, este preconceito. Por isso é que apelo às outras mulheres: é preciso ser forte para superar essas barreiras. Eu sou diretora pedagógica porque fui nomeada para o efeito, mas, se não mostro que sou capaz, nunca vou ter possibilidade de dar uma opinião, não vou ter voz, só vou dizer sim, sim, sim, sim ao que os homens querem. Às vezes, sinto que as pessoas não acreditam em mim porque sou mulher, que isto não vai em frente porque sou mulher, e que se fosse homem seria mais compreendida, porque a sociedade é mais tolerante com os homens do que com as mulheres, principalmente no processo de tomada de decisão. Os homens não aceitam erros, não aceitam falhas nas mulheres. Elas têm de mostrar que realmente são capazes de fazer e de cumprir com os seus planos ou com os planos da organização.

 

Devia haver maior abertura...

Comparando com o passado, há. Só que é um processo lento, a mudança tem de ser paulatina. Mesmo na intervenção com vista à igualdade de género, os programas não devem ser agressivos, porque isso mexe com o ser das pessoas. Temos de tentar inculcar novos valores, novos hábitos e costumes, de forma muito paulatina. E os jovens, pouco a pouco, vão entendendo e desenvolvendo práticas com vista à igualdade de género.

 

Em Moçambique existe a Organização da Mulher Moçambicana e celebra-se o Dia da Mulher Moçambicana. Em pleno século XXI, são necessários “incentivos” deste tipo?

São, porque os aspetos culturais e a questão do modelo patriarcal são muito fortes. Há vontade de abrir espaço para a emancipação das mulheres e os instrumentos legais existem, mas não se aplicam. Esse é o problema e a razão por que há muitas datas comemorativas da mulher: tentar inculcar, principalmente nos homens, o espírito de que todos temos direitos iguais e que é possível construirmos uma sociedade com igualdade de oportunidades. A Organização da Mulher Moçambicana está muito forte nesse sentido. Até 2020, África comemora a Década da Mulher Africana sob o lema “Igualdade de Género e Empoderamento da Mulher”, com manifestações, palestras, ações de sensibilização e até espaços de debate radiofónicos, no sentido de educar a sociedade e tentarmos mudar a mentalidade das pessoas.

 

Existe solidariedade entre as mulheres moçambicanas?

Acho que não. Muitas vezes, quando se confia a uma mulher esta ou aquela atividade é por iniciativa dos homens, mas outra mulher que diz não, que aquela não merece, que não tem capacidade, que não tem competências, que não estudou... Até alegam questões de assédio sexual: aquela ocupou aquele cargo porque, se calhar, tem alguma coisa com o dirigente... São as próprias mulheres que se prejudicam, que não se ajudam. E devia ser ao contrário, uma mulher a apoiar outra mulher, porque só assim conseguiremos elevar o nosso status social. Eu coloco essa proposta na minha tese: as mulheres devem unir-se, devem apoiar-se e ser solidárias.

 

No que toca a esta matéria, há alguma relação entre Moçambique e Portugal?

Tive acesso a alguns documentos que mostram que Portugal está também a lutar pela igualdade de género, mas parece-me que há mais resistência à mudança do que em Moçambique: lá há mais mulheres a ocupar cargos de decisão do que cá. Mas acho que esta preocupação é geral, em todo o mundo. Este é um tema atual e universal.

Maria João Leite (entrevista)

Ana Alvim (fotografia)


  
Ficha do Artigo

 
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