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Desporto versus actividade física

O desporto, não saiu muito bem da segunda Guerra Mundial (1914-1918). De uma maneira geral, os líderes desportivos de diversos países europeus, tinham estado associados aos antigos regimes políticos, tendo, muitos deles, sido um autêntico joguete nas mãos dos partidos detentores do poder. O desporto chegou mesmo a ser em diversos países, um instrumento político dos regimes instituídos. Assim, quando a guerra acabou, ninguém sabia muito bem o que fazer ao desporto. As confusões eram muitas, e os receios vários.
Hoje, as coisas não são muitos diferentes na medida em que ainda existem enormes preconceitos relativamente a uma prática que a generalidade das pessoas, pelas mais diversas razões, recusa compreender a sua verdadeira natureza. E porquê? Porque a natureza do desporto encontra as suas raízes mais profundas no instinto da luta pela sobrevivência. De facto, a dimensão antropológicas da luta pela sobrevivência que se expressa de uma forma singular na competição desportiva, sempre foi e será uma oportunidade de sublimação das frustrações das derrotas entre elas as militares, como o provou Pierre de Coubertin ao institucionalizar os Jogos Olímpicos da era moderna, bem como uma oportunidade para o homem expressar toda a violência que lhe vai na alma, sempre que coloca o desporto ao serviço da violência gratuita, da guerra, do terror e da morte. O problema é que, de uma maneira geral, os dirigentes desportivos no mais puro oportunismo e os dirigentes políticos na mais descarada ignorância, têm jogado o jogo do desporto no "fio da navalha", tomando em matéria de políticas públicas desportivas as mais estapafúrdias decisões, que deviam ser objecto de estudo e ponderação. Por outro lado, a partir dos anos cinquenta, foi desencadeado com origem em diversos países do Norte da Europa, um movimento conducente ao envolvimento das pessoas em actividades físicas de cariz recreativo, cuja dimensão competitiva foi subvalorizada ou, em alguns casos, até mesmo anulada, a fim de se ultrapassarem as sequelas da guerra, que davam "má fama" do desporto. Dizia ao tempo a propaganda que "a actividade física não é um acto gratuito, é um acto de vida", numa alusão indirecta à dimensão belicista que, desde sempre, envolveu as práticas desportivas. Nesta perspectiva, em 1966 surgiu, pela primeira vez, o conceito de "desporto para todos" e, em 1975, a "Carta Europeia do Desporto para Todos" aonde, por estranho que posa parecer, a palavra competição acabou pura e simplesmente ignorada. Deste modo, o desporto foi ilusoriamente transformado numa actividade acética, praticada à margem de toda e qualquer contaminação de tipo competitivo, em que se privilegiava prioritariamente o exercício da actividade física com meros objectivos recreativos. Entretanto, o verdadeiro desporto, evoluiu em regime de roda livre, à margem de qualquer controlo de ordem ética, político e social, enquanto os responsáveis tanto desportivos como políticos se limitavam a fazer a triste figura de avestruzes. Esta situação só veio a ser corrigida com a publicação da "Carta do Desporto" em 1992, aonde se passou a considerar de uma forma clara, a dimensão competitiva do desporto e a sua organização a diversos níveis. O problema é que o mal já estava feito. A assunção da competição na sua plenitude veio tarde de mais.
Muito embora os arautos do "desporto acético" tenham acintosamente denegrido a competição expressa na luta para além da luta pela sobrevivência, quer dizer, quando a luta ganha um sentido lúdico, recreativo e pedagógico, o que é facto é que o desporto enquanto jogo que é, não deixou de seguir ao ritmo dos ponteiros do relógio biológico da história. A competição tinha de surgir com toda a sua pujança. Era uma questão de tempo. O problema é que a prática desportiva enquanto competição que é, ao ser deixada ao livre arbítrio daqueles que jogam e à margem de qualquer sistema de controlo, acaba por ser geradora de efeitos perversos. Quando hoje olhamos para o que se passa com a criança que é disputada por dois grandes clubes portugueses, temos de encontrar os grandes responsáveis entre aqueles que ao longo dos últimos anos estigmatizaram o valor educativo do desporto, enquanto instrumento promotor de uma verdadeira cultura competitiva, geradora do desenvolvimento e do progresso das nações.
A actual Lei de Bases da Actividade Física e Desporto, Lei 5/2007 de 16 de Janeiro, ao estabelecer um corte epistemológico entre a actividade física e o desporto, veio em boa hora separar águas, permitindo um esclarecimento entre os dois conceitos. O que está agora em causa é esclarecer o conceito de desporto porque, quando por meros motivos de marketing, se transforma uma qualquer actividade física numa prática desportiva, o desporto acaba por ser tudo e, sendo tudo, acaba também por não ser nada.
Nem toda a actividade física é desporto pelo que as modalidades desportivas existem para além da actividade física. O desporto, na sua essência, não se esgota na actividade física. Esta, por si só, realizada de uma forma mais ou menos organizada, com objectivos recreativos, de saúde, estéticos, de promoção social ou outros, tem, tanto do ponto de vista pessoal como social, a sua utilidade própria. No entanto, não pode ser considerada uma prática desportiva. Por isso, é importante determinar o que afinal é uma actividade desportivamente relevante.
Como referiram Johan Huizinga (1872-1945) no que diz respeito ao Ocidente e Samuel Griffith (1845-1920) relativamente ao Oriente, não existe civilização ao longo da história da humanidade em que a guerra não tenha sido uma instituição com uma cultura de honra e glória própria. Hoje, o desporto deve ser entendido como um espaço agónico de substituição, onde se digladiam diferentes protagonistas que extravasam e resolvem os conflitos de alma que perturbam a condição humana. Mas é também uma oportunidade de aprendizagem do controlo pessoal e um ambiente aonde se partilham sentimentos desejos e projectos colectivos que podem e devem alcandorar um povo e um país por exemplo como Portugal, para além do marketing das ilusões do futebol nacional e das pieguices nacionalistas do senhor Scolari. Não existe desporto sem confronto de vontades, numa competição de soma nula, em que a vitória em termos económicos, sociais e políticos, ou é verdadeiramente importante para o país, ou não passa de um instrumento de alienação de massas ao serviço de dirigentes políticos e desportivos sem escrúpulos.
Por isso, a ideia central e, porventura, mais nobre do conceito de desporto é a palavra competição. Competição organizada, tendo em atenção as suas raízes biológicas, bem como as regras que decorrem do industrialismo. Uma competição que encontra as suas raízes na própria origem do homem, como diria Bernard Jeu, no momento da formação do mundo e, agora, na teia da sociedade global em que vivemos. Uma competição desportiva na sequência do supérfluo do jogo da luta, que organiza a "estratégia de guerra" que em termos modernos se configura no desporto enquanto instrumento de controlo, coesão e paz social.

Gustavo Pires


  
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Edição:

N.º 174
Ano 17, Janeiro 2008

Autoria:

Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa
Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa

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