Sabemos que todo o universo poético de Álvaro de Campos se conjuga e converge no mesmo sentido tão pessoano de compreender como Campos e Pessoa fizeram o mesmo percurso, viveram nas mesmas casas de várias cores, conheceram e conviveram com as mesmas pessoas, suportaram sonhos e humilhações bastantes de um meio tão provinciano e hostil, viajaram ambos no mesmo Chevrolet emprestado pela estrada de Sintra, beberam em horas de enfado e de cansaço muitos cafés e bagaços, quando o poeta de "Opiário" regressou a Lisboa e aqui ficou nesse ano já distante de 1935, que por coincidência foi o mesmo em que nasceu Ruy Belo e quando o fascismo se consolidava em Portugal, porque lembro ainda como Pessoa pôde dizer a Carmona, em carta que lhe escreveu e não chegara a enviar, não se sabe bem porquê, "que até aqui a Ditadura não tinha tido o impudor de renegando toda a verdadeira política do espírito - isto é, o de pôr o espírito acima da política - vir intimar quem pensa a que pense pela cabeça do Estado, que a não tem, ou de vir intimar a quem trabalha a que trabalhe livremente como lhe mandam". Na releitura de Sodoma Divinizada de Raul Leal, não podemos deixar de evocar o ruído público feito em redor deste livro de um dos nomes para sempre ligados ao Orpheu, sobretudo por ter sido Pedro Theotónio Pereira que encabeçou em 1923 um movimento de estudantes que em Lisboa, quando Raul Leal publicou a primeira edição deste livro, desceu a terreiro nas páginas do jornal Época, e sob a custódia do governo civil da cidade, para moralizar os bons costumes num manifesto que causou brado, pôde denunciar "que urgia uma reacção pronta e implacável, a nossa mocidade se levanta forte e resoluta, nas nossas mãos brandimos o ferro em brasa para cicatrizar as chagas, e a quem manda nós apontamos hoje a necessidade imperiosa de fazer justiça, porque é preciso que os livreiros honrados expulsem das suas casas os livros torpes, é necessário que os adeptos da infâmia caiam sob a alçada da lei, que um movimento enérgico de repressão castigue em nome do bem público". E, se porventura se vislumbrava no tom desse manifesto os sinais já evidentes de uma mentalidade claramente fascizante de que esse mesmo cabecilha seria depois um incondicional defensor, adivinhava-se nessa horda morigeradora de estudantes das escolas ditas superiores de Lisboa a intenção primeira de fiscalizar as livrarias, exercer uma rigorosa censura nos teatros e cinemas, enfim, executar os seus autos-de-fé e perseguições sumárias contra aqueles que erguiam a voz na afirmação de outros valores, mesmo que fossem condenados por homens que, como Raul Brandão, se não escusaram em dizer que nesse tempo Lisboa não passava de uma cloaca, porque "no Entrudo, numa escola da Graça houve um baile de pederastas" e lamentava "que se publicassem livros de versos dedicados a homens por homens", e entre os manifestos e folhetos espalhados figurava Sodoma Divinizada. E exactamente por isso Álvaro de Campos não podia ficar calado e de imediato desceu à praça pública com um "Aviso por Causa da Moral", em defesa do seu amigo Raul Leal, propositadamente datado da Europa, 1923, em que, como é bom que se lembre, clamava nestes termos contra aqueles estudantes de Lisboa: "Quando o público soube que os estudantes de Lisboa, nos intervalos de dizerem obscenidades às senhoras que passam, estavam empenhados em moralizar toda a gente, teve uma exclamação de impaciência". E, um pouco mais adiante, avisava: "Ser novo é não ser velho. Ser velho é ter opiniões. Ser novo é não querer saber de opiniões para nada. Ser novo é deixar os outros ir em paz para o diabo com as opiniões que têm, boas ou más - boas ou más, que a gente nunca sabe com quais é que vai para o diabo". E, logo em seguida, Campos concluía assim o seu aviso público: "Mas, quanto ao resto, calem-se o mais silenciosamente possível. Porque só há duas maneiras de se ter razão. Uma é calar-se, que é a que convém aos novos. A outra é contradizer-se, mas só alguém de mais idade a pode cometer. Tudo o mais é uma maçada para quem está presente por acaso. E a sociedade em que nascemos é o lugar onde mais por acaso estamos presentes". Ora, face à intervenção irónica e lúcida de Álvaro de Campos (como antes acontecera em texto de Pessoa sobre a estética de António Botto), na poeira convulsionária levantada pelo livro de Raul Leal, nas respostas dadas aos espíritos mais retrógrados da época, Pessoa não podia ficar indiferente, e não ficou, claro, porque no texto "Sobre um Manifesto de Estudantes", e na sequência da lição que Raul Leal entendera dar a esses jovens mancebos acoitados nas páginas da Época, dizia com desvanecedora lógica e uma fina inteligência crítica: "Há três cousas com que um espírito nobre, de velho ou de jovem, nunca brinca, porque o brincar com eles é um dos sinais distintivos da baixeza da alma: são elas os deuses, a morte e a loucura. Se, porém, o autor do manifesto o escreveu a sério, ou crê louco o doutor Raul Leal, ou não crendo, usa o parecer crê-lo para o conspurcar. Só a última canalha das ruas insulta um louco, e em público. Só qualquer canalha abaixo dessa imita esse insulto, sabendo que mente". E, depois de propositadamente acentuar que esses jovens estudantes das escolas superiores de Lisboa eram mesmo "o resultado da Monarquia dos Braganças e da República Portuguesa, produto de uma sociedade preparada em vários séculos de educação fradesca e jesuítica, pela anulação do espírito crítico e científico, o advento das ideias liberais", Pessoa concluía deste modo a sua intervenção: "Aos estudantes de Lisboa não desejo mais - porque não posso desejar melhor - de que um dia possam ter uma vida tão digna, uma alma tão alta e nobre como as do homem que tão nesciamente insultaram. A Raul Leal, não podendo prestar-lhe, nesta hora da plebe, melhor homenagem, presto-lhe esta, simples e clara, não só da minha amizade, que não tem limites, mas também da minha admiração pelo seu alto génio especulativo e metafísico, lustre que será da nossa grande raça. Nem creio que em minha vida, como quer que decorra, maior honra me possa caber que a presente, que é a de tê-lo por companheiro nesta aventura cultural em que coincidimos, diferentes e sozinhos, sob o chasco e o insulto da canalha". Mas conhecemos hoje como esse trajecto só em parte foi depois coincidente, no acto de Pessoa ter partido desta vida muito mais cedo e quase sem aviso. Raul Leal continuou no seu percurso de "maldito", de vertigem em vertigem, até ao rompimento final de todos os laços e numa vida atribulada de canseiras e atropelos para sobreviver. Quase não publicou em vida e, mesmo tantos anos após a sua morte, uma parte substancial dos seus escritos, no que revelam de uma loucura metafísica e desvairada, ainda está por divulgar. Por isso, a reedição feita em 1989 de Sodoma Divinizada, com todas as peças do processo aquando da edição de 1923, permitiu entender e pôr em destaque o exemplo, não de todo moralista para a moral vigente no tempo da primeira República, que constituiu a atitude frontal de Raul Leal, porque na linha do ideal estético de Botto defendido por Pessoa se atreveu a falar de sodomia em tempos que eram de algum recato ou de hipocrisia colectiva. Como hoje, quando muito se fala na clara defesa da igualdade de direitos - todos diferentes, todos iguais. E o que sobrou da poeira do tempo na releitura do processo em redor de Sodoma Divinizada, mais do que uma simples polémica, que teve o seu ponto alto nas intervenções de Pessoa e Campos, serve uma vez mais para se declarar que um espírito da craveira intelectual de Raul Leal talvez tenha nascido e morrido aqui por engano. Não lhe valeu de muito o companheirismo e o incondicional apoio de Pessoa, não lhe adiantou grande coisa ser nos derradeiros anos de vida companheiro dos surrealistas portugueses, em cuja aventura desejou entrar pelo convívio que manteve com Cesariny ou Herberto. Nascido em Lisboa em 1886, o autor de Sodoma Divinizada morreu na capital, depois de alguns meses hospitalizado nos Capuchos, e acabar com os ossos na vala comum do cemitério do Lumiar, onde foi sepultado em Agosto de 1964. Colaborador de Orpheu, Centauro ou Portugal Futurista, Raul Leal pouco publicou no domínio da poesia - toda ela escrita em francês -, mas ainda se pode considerar, como de si afirmou Jorge de Sena, "um dos mais típicos e significativos representantes da integral aventura espiritual a que muitos participantes de tais movimentos se não atreveram nunca." Mas, repetimos, está ainda por conhecer em toda a sua extensão a obra poética e ensaística desta personalidade inteiramente possessa da sua originalidade e do pensamento que se tornou, como disse Jorge de Sena, "a única razão de ser da sua peculiar importância, credora de um lugar de relevo em qualquer antologia da poesia moderna portuguesa". Serafim Ferreira Crítico Literário Raul Leal SODOMA DIVINIZADA Prefácio e organização de Aníbal Fernandes Ed. Hiena / Lisboa, 1989.
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