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Mexer sem mudar o essencial...

Reorganização curricular do Ensino Básico

"...num espaço que previligie
a educação para a cidadania"

Um 1º ciclo caracterizado por uma elevada dispersão da rede escolar, pelo isolamento e pela falta de condições de muitas escolas; um 2º e 3º ciclo onde têm persistido elevadas taxas de insucesso escolar e de abandono; uma grande dificuldade em lidar com a heterogeneidade dos alunos e a diversidade das situações. Enfim, uma escola básica onde a deficiente articulação entre os três níveis de ensino e a falta de sequencialidade tem constituído "um dos aspectos mais negativos do sistema educativo". O retrato é pessimista e o próprio ministério da educação o reconhece na recente Proposta de Reorganização Curricular do Ensino Básico.
A proposta - que resulta, em grande medida, do documento orientador das políticas para o ensino básico, apresentado em 1998 - não procura, ao contrário do que aconteceu com a revisão curricular do ensino secundário, introduzir mudanças de fundo nos objectivos, nos programas ou no desenho curricular, no regime de avaliação ou na criação de disciplinas novas. Nas palavras da Secretária de Estado da Educação, Ana Benavente, existem apenas "regulações pontuais", introduzindo-se uma área dirigida à aprendizagem de métodos de estudo e de trabalho - estudo acompanhado - e o reforço da educação para a cidadania. Uma forma de "combater o insucesso escolar", afirmou Benavente à comunicação social, cujas principais causas estão centradas na actual "uniformidade da escola" e na "rigidez do currículo".
Nesse sentido, lê-se no documento, as funções da escolaridade básica não podem traduzir-se na "mera adição de disciplinas", devendo centrar-se no objectivo de "assegurar a formação integral dos alunos". Daí que a escola, adianta-se, "necessite de assumir-se como um espaço onde se previligie a educação para a cidadania".
Mudanças que parecem querer imprimir uma nova filosofia nas escolas, assente numa "nova visão de currículo" e de "novas práticas de gestão curricular", na qual os professores deverão saber "identificar e interpretar problemas educativos e procurar soluções para esses problemas". Perspectivas, admite o ME, que constituirão um "enorme desafio" e cujas mudanças serão "forçosamente lentas e graduais".
Os professores mostram alguma prudência. A Fenprof, apesar de considerar que a sua posição não é ainda um parecer definitivo, adianta alguma preocupação pelo facto de o ministério da educação estar a propôr alterações de fundo sem que os professores tenham sido globalmente ouvidos. Numa primeira abordagem, diz esta estrutura, a proposta apresentada pelo ME parece nascer da "intersecção de um conjunto de experiências localizadas" e para fazer a "generalização" da Gestão Flexível dos Currículos. A Fenprof questiona-se igualmente sobre o modelo de avaliação da experiência, de formação de professores - nomeadamente no domínio da gestão curricular - e do ?timing? de revisão dos programas do ensino básico.
Os sindicatos afectos à FNE, por seu lado, consideraram a proposta "globalmente positiva", nomeadamente o que se refere à introdução de uma segunda língua obrigatória e de a Área de Projecto contar com um horário próprio. Reservas quanto ao Estudo Acompanhado, que merece uma "clarificação", e à distribuição da carga curricular entre as áreas de ciências naturais e sociais, cuja diferenciação, diza FNE, não é consentânea com a aposta na componente experimental e laboratorial que a tutela pretende ver implementada nas escolas.
A Confederação das Associações de Pais reconhece que poderá haver alguns aspectos a "limar", mas congratula-se, de uma maneira geral, com a proposta apresentada pelo ME. Delas, a federação destaca como principais aspectos positivos a introdução da Educação para a Cidadania e o Estudo Acompanhado nos planos curriculares, salientando igualmente a "melhoria do sistema de avaliação".

Alterações incluem novas áreas curriculares

As alterações de carácter prático entram em vigor a partir de Setembro de 2001 para os alunos que iniciem o ensino básico no ano lectivo de 2001-2002, estendendo-se ao oitavo e nono anos em 2002-2003 e 2003-2004, respectivamente.
No que toca à carga horária, no 1º ciclo ela comportará um mínimo obrigatório de 25 horas semanais, não se especificando, porém, de que forma ela deverá ser gerida. No 2º e 3º ciclos, o período de aulas irá ser organizado em torno de um bloco de 90 minutos, podendo cada um destes blocos corresponder a uma só disciplina ou dividir-se em dois períodos de 45 minutos, correspondentes a diferentes disciplinas. Semanalmente, a carga horária terá de um máximo de 16,5 blocos de 90 minutos no 2º ciclo e 17,5 blocos no 3º ciclo, tentando-se, desta forma, manter próximo das 30 horas o tempo semanal destinado a actividades lectivas obrigatórias.
Uma forma de desperdiçar menos tempo, diz o ministério, opinião que algumas associações de professores contestam, já que se "corta" horas lectivas em determinadas disciplinas em preterência de outras. A área de ciências físicas e naturais, por exemplo, terá uma menor carga horária relativamente à área de ciências humanas. A inclusão de uma segunda língua estrangeira obrigatória no 3º ciclo - outra das principais novidades previstas nesta proposta de reorganização curricular - vem baralhar ainda mais as contas.
Em determinadas situações, salvaguarda o documento, as escolas poderão adoptar diferentes modos de organizar os tempos lectivos, devendo, nestes casos, ter-se em conta "considerações de ordem pedagógica, do ambiente de trabalho que se pretenda promover, os tipos de actividades propostas aos alunos e a própria natureza das aprendizagens".
A proposta prevê também que os currículos passem a integrar um conjunto de componentes disciplinares obrigatórias. Uma delas é a Área de Projecto, através da qual se pretende envolver os alunos na realização e avaliação de "projectos de pesquisa e de intervenção", a cargo de dois professores, no 2º e 3º ciclos. Uma outra é o Estudo Acompanhado, criada com o propósito de desenvolver nos alunos métodos de estudo e de trabalho, cujo apoio, também nos 2º e 3º ciclos, será igualmente assegurado por dois professores.
A disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social será "substituída" pela Educação para a Cidadania, que tomará forma na designada "assembleia de turma" e será enquadrada com o "apoio de um tempo semanal para sessões de informação e de debate". O horário dos alunos destinado a este fim, nos 2º e 3º ciclos, será atribuído ao Director de Turma. Esta componente curricular é entendida como transversal e concretiza-se através de um plano de trabalho que abranja o trabalho a realizar nas diversas disciplinas e áreas curriculares. Com ela, afirma-se no documento, pretende-se reforçar a "construção da identidade e desenvolvimento da consciência cívica dos alunos", abordando temas como a educação para a saúde, a educação sexual, a educação rodoviária ou a educação ambiental, entre outros considerados pertinentes ou levantados pelos próprios alunos.
Faz também parte integrante do currículo, em todos os ciclos, a utilização das tecnologias da informação e comunicação, cuja aplicação terá um espaço próprio nas áreas de Estudo Acompanhado e de Projecto, numa perspectiva simultânea de formação básica dos alunos e de apoio a todas as áreas de disciplina do currículo.

Mudanças na avaliação

A avaliação das aprendizagens merece também destaque, não se pretendendo, apesar disso, introduzir qualquer ruptura no actual modelo, mas antes "desenvolver os aspectos positivos previstos na legislação anterior". Nesse sentido, e apesar de não recusar a ideia de repetência no final de cada ciclo, o ministério entende que ela não deverá ser a "resposta banalizada" aos problemas da aprendizagem, sugerindo que deverá ser a escola a "proceder dos modos mais adequados face a cada aluno", de modo a garantir que as aprendizagens e competências sejam "efectivamente desenvolvidas".
Em linhas práticas, manter-se-á a avaliação sumativa no final de cada um dos três períodos escolares, sendo que no 1º ciclo essa avaliação será meramente descritiva, ou seja, não terá efeitos quantitativos. No 2º e 3º ciclos todas as disciplinas serão avaliadas sumativamente, à excepção de Estudo Acompanhado e Direcção de Turma.
Uma das principais novidades é o facto de a actual prova global do 9º ano poder ser substituída por um projecto ou trabalho "globalizante" e haver lugar à realização de provas nacionais de aferição no final de cada ciclo. Estas últimas não terão repercussões na avaliação final, tendo como único objectivo "fornecer informação útil aos professores, às escolas e ao sistema educativo". Em qualquer dos ciclos, haverá dois momentos intercalares de avaliação a meio dos primeiro e segundo períodos.
A actual proposta de reorganização curricular não prevê, nesta primeira fase, qualquer alteração dos programas, admitindo apenas "ligeiros ajustamentos que se venham a revelar imprescindíveis". Numa fase posterior - e num quadro de "maior estabilidade das grandes orientações curriculares", lê-se - os programas poderão ser "gradualmente ajustados".
Uma nota final para o reforço da educação artística e tecnológica, que contará com uma "abertura moderada" do leque de opções. Assim, no 7º e 8º anos, o plano de estudos, que inclui educação visual, poderá ser alargado através da escolha de uma das duas vias. No 9º ano, os alunos podem optar livremente por uma única disciplina, entre as ofertas da escola nos domínios artístico e tecnológico.
Mais uma vez, e à semelhança do que aconteceu com as propostas de reorganização curricular do ensino secundário e da lei de organização e ordenamento do ensino superior, a Página abre neste número um espaço de debate sobre as ideias contidas nesta mais recente proposta ministerial. Para isso, iremos contar com a participação de professores e de investigadores da área das ciências da educação - neste número incluímos dois textos, um de Rui Trindade, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, outro de Conceição Dinis, professora do ensino básico e dirigente sindical - e, naturalmente, com a opinião dos leitores que desejem manifestar-se.

Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 91
Ano 9, Maio 2000

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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