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Jurjo Torres Santomé em Entrevista a "a Página" ( segmento 1 de 2 )
A Escola sempre esteve
e estará desajustada
O que é fundamental
é analisar informação...
...para aceder à informação
não é preciso ir à escola

Jurjo Torres Santomé é professor catedrático de Didática e Organização Escolar na universidade da Corunha. Foi professor nas universidades de Salamanca e de Santiago de Compostela. Trabalha em temas relativos à sociologia do curriculo e do curriculo integrado. Entre as suas publicações encontram-se títulos como: "La Educación en la Sociedade Económica de Amigos del País de Santiago" (s. XVIII-XIX)(1979); "Pra Unha educación preescolar galega" (1978, Prémio Alexandre Bóveda); "El Diário Escolar" (1986); "La Globalización como forma de organización del Curriculum" (1987); "El Marco curricular en una escuela renovada" (1988, co-autor); "Para qué los profesores y profesoras si ya tenemos libros de texto" (1989); "El curriculum oculto" (1991); "La reforma educativa y la psicologización de los problemas sociales" (1991); "A educação infantil" (1991); "El poder y los valores en las aulas" (1993); "Alguns rastros de conservadurismo en la institución escolar. El olvido de los valores laicos" (1994). A sua obra "O Curriculum Oculto" foi traduzida para português pela editorial Porto, de Portugal. Outra das suas obras de referência "Globalización e Interdisciplinariedad: el curriculum integrado" encontra-se traduzido para português pela editorial Artes Médicas, do Brasil. Dirige a colecção "Educación crítica", publicada pelas edições Morata em coedição com a Fundação Paideia. É membro do conselho de redacção da revista britânica Curriculum Studies.

P: O professor Jurjo Torres Santomé foi o principal coordenador do encontro "Volver a pensar la Educación", organizado em 1993, na Corunha, que conseguiu reunir diversos especialistas mundiais nesta área. Que repercussões teve esse encontro?

R: Penso que as ideias então debatidas ainda continuam a ter repercussões, no sentido de que saíram textos e foram realizados debates que ainda estão na ordem do dia. Falou-se nomeadamente sobre a avaliação institucional do sistema educativo, sobre o que significa democratizar o sistema educativo, em que aspectos o sistema educativo está mais ou menos democratizado, a necessidade de revisão dos conteúdos escolares, a organização das instituições educativas, como devem ser formados os professores e professoras, que papel desempenham e qual o seu novo papel na nova sociedade da informação.

P: Referiu a emergência da sociedade da informação. A escola está desajustada face ao mundo que hoje vivemos?

R: Creio que a escola sempre esteve desajustada e sempre irá estar desajustada. Se olharmos para a história da educação não há ninguém que diga que a escola está a cumprir aquilo que se lhe pede. Em nenhum momento da história. E isso é uma característica particular da escola. No entanto, penso que actualmente os desajustamentos são muito maiores, dado estarmos a atravessar um período de grandes transformações, como é exemplo a revolução da informação.
A escola da segunda metade do século XX é uma escola pensada para toda a população. Em tempos anteriores, especialmente no século XIX, estava planificada como um recurso para as elites e para os grupos sociais que tinham maior poder económico, com efeitos um tanto ou quanto reprodutores. Os movimentos e lutas sociais levaram a que a escola fosse ampliando a sua base e começasse a ser destinada a toda a população, não só com o objectivo de proporcionar uma escolarização básica como também o de alargar o período dessa escolarização. E isso transforma o que se pretende realizar, porque é diferente pensar numa escola para elites e numa escola que prepara para a cidadania, que está a ajudar a formar um país e a dar-lhe uma cultura comum. Com a escolarização pretende-se afirmar a cidadania como possibilidadede transformar o mundo que habitam. A educação deve permitir às pessoas analisar, tomar decisões, trabalhar e disfrutar de modo muito mais responsável, com liberdade e preocupando-se com o bem estar de todos, em especial dos mais desfavorecidos.
Nos últimos tempos há outra revolução maior: a revolução da informação. Passamos de uma escola onde havia escassa informação e onde o acesso aos livros era muito limitado - basta recordar que há 40 ou 50 anos as crianças ainda copiavam directamente as lições do livro do mestre -, para um problema que hoje se verifica no sentido inverso, isto é, um excesso de informação: muitos livros, muitas revistas e toda uma panóplia de informação escrita e audiovisual.

P: O acesso a essa informação é que não está ainda totalmente democratizado...

R: O acesso a essa informação podia estar, hoje em dia, muito mais democratizado. Tudo dependeria de como a escola procedesse a essa democratização. A internet, por exemplo, é um canal com todo o tipo e classe de informações. Depende muito de como os professores procuram essa informação e a utilizam, e de como ensinam os alunos a utilizá-la. Entre os objectivos que enformam todos os projectos educativos deve estar o de formar pessoas capacitadas para lutar pela democratização e acesso à informação. Isto obriga a ensinar de modo muito crítico, com toda a classe de informação, aprender a descobrir de que modo e porquê se manipula a informação, quem beneficia e quem sai prejudicado com a ocultação ou desfiguração da informação.

P: Estava a referir-me principalmente aos países menos desenvolvidos...

R: Esta situação de desigualdade tem vindo a regredir gradualmente ao longo da história. Os países menos desenvolvidos estão a atravessar situações deficitárias como as que nós vivíamos há cinquenta anos. O previsível é que essa situação se inverta a curto prazo...

P: Esses novos meios permitirão uma aproximação mais rápida desses países em relação aos países do primeiro mundo, ou, pelo contrário, apenas contribuirão para aumentará o fosso existente?

R: São as duas dinâmicas actualmente em debate. Tanto pode degenerar numa situação como noutra. Se o primeiro mundo tem interesses tecnológicos, como os tem, no terceiro mundo, necessitará de "alfabetizar" essas populações. Mas na medida em que o alfabetiza e lhe proporciona estruturas como a internet, podem ao mesmo tempo produzir-se contradições. Isto, porque ao proporcionar esse tipo de meios as pessoas poderão aceder a outras informações. A internet não foi pensada para promover movimentos de activismo social, mas olhando para o recente conflito em Timor Leste, por exemplo, ela foi largamente utilizada para alertar para a situação e promover campanhas de solidariedade social. Mas não estava na ideia de quem a concebeu utilizá-la para esses fins. São contradições que os utilizadores geram.
Apesar destas situações não serem mecânicas nem previsíveis, há que pensar que todos os colectivos humanos se defenderam ao longo da história, isto é, que podemos ler a história de uma forma positiva. O grande erro da escola tradicional foi tornar-nos muito pessimistas, pensar que sempre sofremos ao longo da história. E a história foi uma comunidade que vivia nos esclavagismo e se rebelou; a história foi uma sociedade que estava a viver no feudalismo e se rebelou; a história foi um processo onde as mulheres mal eram considerados seres humanos e onde lutaram pelas suas conquistas; a história foi uma realidade onde pessoas de cor eram consideradas quase como animais irracionais, e hoje isso acabou.
A história foi feita por pessoas que se revoltaram. Ou seja, a história será feita pelas pessoas que hoje enfrentam as mesmas condições de opressão e de controlo da informação. É verdade que existe um controlo apertado da informação mas também é verdade que nunca antes circulou tanta informação contrária aos interesses dominantes.

P: A propósito da escola tradicional, o professor recorre a uma afirmação interessante num artigo recentemente publicado na Página: "O problema das escolas tradicionais, onde se dá grande ênfase aos conteúdos apresentados em pacotes disciplinares, é que não conseguem que os alunos vejam esses conteúdos como parte do seu próprio mundo. Dessa forma contribui-se para perpetuar uma mistificação do conhecimento" Quer desenvolver?

R: Eu creio que estão actualmente a produzir-se culturas duplas. As crianças aprendem que o conhecimento só é produzido por pessoas excepcionais em lugares excepcionais (laboratórios tecnologicamente sofisticados e localizados em lugares muito distantes). Aprendem também, de modo implícito, como curriculo oculto, que esses conteúdos com que trabalham todos os dias na aula são "logicamente" demasiado abstractos e complexos e, consequentemente, que eles não são necessários para que o mundo avance.
Mas ao mesmo tempo, quando saem da escola, muitos deles vão ligar-se à internet, seja através de um computador pessoal, em casa, ou num qualquer café ou bar que disponha deste serviço - há-os por aí agora nas cidades. E vão acedendo a estruturas onde são eles próprios os criadores de conhecimento. Ao mesmo tempo que circula na rede o conhecimento académico mais especializado, circula igualmente a cultura dos 'comics', da música, das criações literárias e discursos, que estão a ser produzidos por grupos de estudantes. Ou seja, fora da escola eles produzem conhecimento, que não reconhecem como valioso, mas é conhecimento que utilizam na sua vida quotidiana para analisar a sua realidade e para enfrentar e resolver os seus problemas.
A juventude valeu-se da música para diagnosticar e enfrentar o mundo e as estruturas de dominação dos adultos. E eles não estavam preocupados se essa música era considerada valiosa ou não, se os conservatórios a aprovavam ou não. Eles consumiam-na de qualquer forma. O mesmo se passou com a banda desaenhada, com a literatura infanto-juvenil, com o grafitti, enfim, com as produções artísticas de uma maneira geral. A escola disse-lhes que iria ser muito difícil criar, mas eles não fizeram caso. Basta lembrar que um fenómeno como a internet foi praticamente construída por adolescentes, as mesmas pessoas a quem a escola disse que seria muito difícil produzir coisas inovadoras, porque isso estaria reservado às pessoas sábias e experientes.
É curioso estar a produzir-se um fenómeno nunca antes verificado na história: pela primeira vez são as gerações mais novas que ensinam os adultos. Quem funciona com os computadores, com os video-gravadores ou com as câmaras de filmar não são os pais, são os filhos.
Na minha perspectiva, creio que esta certa desvalorização da cultura académica está relacionada com o modo de como é apresentada a cultura aos alunos nas escolas. Se apresentamos os conteúdos em pacotes disciplinares é muito difícil entender o seu verdadeiro significado e utilidade. A matemática, a física, a gramática, a biologia, etc, são modos de organizar o conhecimento construído pelas pessoas que possuíam maiores níveis culturais; e estas estruturas disciplinares são apropriadas para as comunidades de especialistas, não como estratégia para educar as pessoas de menor idade e formação: as crianças.
Para aprender algo é necessário apercebermo-nos da sua funcionalidade, utilidade e necessidade desde o primeiro momento. A actual fragmentação do conhecimento em disciplinas é o que explica também o silêncio do aluno na sala de aula; não se interrogam, não problematizam os conteúdos disciplinares, porque não os entendem como parte da vida real, não sentem necessidade de os viver fora da sala de aula.
Um exemplo do que estou a falar, e que a muitas famílias surpreende: a sua filha ou o seu filho traz um certificado da escola no qual se informa que já sabe realizar operações matemáticas como a soma, subtracção, multiplicação e divisão. Porém, a família não o crê porque na vida quotidiana essa criança não sabe utilizar esse conhecimento matemático. Na escola aprendeu a fazer operações matemáticas tal qual uma máquina registadora, mas não aprendeu a saber quando e porquê é necessário realizar essas operações. Uma estratégia que resolve este problema da fragmentação do conhecimento, que o converte em relevante e significativo, é o curriculo flexível ou interdisciplinar.

P: Que poder de resposta tem a escola face ao "imperialismo cultural" dos países dominantes, nas palavras de Michael Apple, aproveitando-se desses instrumentos?

R: A escola pode ter um grande poder de resposta. Mas se compete unicamente por fornecer informação, por encher as mentes de informação,então todos ficam a perder. Hoje, se considerarmos como importante apenas o acesso à informação, não é necessário ir à escola. Basta pôr uma criança diante de um televisor e ela ficará ligada a múltiplos programas de televisão, onde passam continuamente documentários de grande qualidade e com mensagens muito claras.
Mas o que nenhum meio de comunicação lhe proporcionará é algo que é função fundamental da escola: a análise dessa informação. Ver como essa informação está construída e quem a construiu, com que objectivos, que distorções estão presentes e como se manipula essa informação. Do meu ponto de vista só a escola poderá exercer esta função, que, aliás, deve ser a sua razão de ser. Temos de capacitar as pessoas para compreender o seu mundo e entender que a informação é produzida num determinado contexto histórico e que as pessoas que a constroem têm interesses.
Sabemos que em muitos países, por exemplo, mais de 60 por cento do orçamento está destinado a investigação militar. Teremos alguma vez de denunciar isto e afirmar que interessa mais às pessoas que esse dinheiro seja canalizado para outro tipo de pesquisas, de carácter sanitário, social, etc...
Por conseguinte, é à escola que compete essa finalidade: construir esse mundo de possibilidades, fazer ver às pessoas que o processo de construção de conhecimento é um processo histórico e inacabado, em que todos podemos e devemos participar. E que não se pode mistificar o conhecimento, apresentando-o como algo sagrado, que não se pode tocar. Pelo contrário: o conhecimento é falível, é produzido por seres humanos com interesses opostos. E na medida em que estivermos conscientes disso melhor o podemos avaliar e denunciar o que não funciona, promovendo a construção de um conhecimento mais útil.

P: Uma das suas obras intitula-se "O curriculo oculto". O que pretende significar com essa expressão?

R: A minha intenção é consciencializar os professores de que a escola está a ensinar muito mais do que acreditamos. Alguns professores preocupam-se exclusivamente em ensinar a sua área de conhecimento e dentro dela aquilo que consideram mais importante. O curriculo oculto pretende demonstrar que além das matérias propriamente ditas os professores estão a ensinar mais do que isso. Mas é oculto porque não temos consciência do que realmente estamos a ensinar, que não estamos a fazê-lo de uma forma reflectida.
Quando entram no sistema escolar, os alunos aprendem a ser competitivos. Quanto muito o professor pode dizer-lhes que devem ser solidários e ajudar-se mutuamente, mas eles estão conscientes que triunfam na medida em que souberem mais do que os outros. Isso faz com que os estudantes não se ajudem entre si e aprendem a ser acríticos e dogmáticos. E isso porquê? Por só haver uma fonte informativa e por as pessoas tomarem como certa essa fonte. A crítica desenvolve-se na medida em que as pessoas têm acesso a fontes informativas diversas e possam encontrar a razão numa determinativa linha argumentativa. E isso vai fazendo com que aceitemos mais perspectivas em consideração.
Um professor pode ensinar que devemos ter em conta os diferentes ritmos de aprendizagem e que devemos ajudar os colegas com maiores dificuldades, trabalhando em conjunto, ou a aceitar e a conviver com um colega com perturbações motoras ou, num caso mais extremo, com perturbações psíquicas.

P: É nesse sentido que fala do curriculo integrado? Pretende ser uma resposta?

R: É uma resposta na medida em que pretende afirmar que o conhecimento funciona de uma forma integrada. E que nos servimos dele correctamente quando tomamos em consideração diferentes perspectivas. Cada disciplina corresponde a um único ponto de vista da realidade. Podemos ver a realidade de um ponto de vista mais matemático, podemos encarar o lado mais físico-químico, podemos atentar no lado mais social, etc... E quando se lhes colocam problemas ou questões da actualidade, cada disciplina tende a responder, para jogar com as palavras, "disciplinadamente" a cada um desses problemas.
Se um economista deparar com um psicólogo provavelmente este dir-lhe-á que ele vê o mundo de forma demasiadamente economiscista. Este, por seu lado, responder-lhe-á que ele encara o mundo de forma negativa, com falsos preconceitos. O psicólogo estará a "psicologizar" a realidade, a converter a sua disciplina na chave de todos os problemas. Ou seja, cada um vê uma realidade e opera sobre essa realidade, conferida pela sua especialização.
Se acostumarmos as pessoas desde a educação infantil a contemplar o maior número de perspectivas possíveis relativamente às matérias que abordamos, estaremos a formar pessoas com vistas mais largas, aplicáveis mesmo nos actos quotidianos. Na compra de brinquedos, nomeadamente. Quando oferecemos uma bola de futebol da marca 'nike', por exemplo, sabemos que estamos a contribuir para perpetuar uma estrutura de produção no terceiro mundo que utiliza crianças no trabalho. E normamelmente não pensamos nisto. De alguma forma temos sempre apenas uma ou duas variáveis em conta: se gostamos ou não e quanto nos vai custar.
O problema das disciplinas é que copiam um modelo de arquivo. Num computador é certo podermos armazenar informações de uma forma disciplinada. E os especialistas em qualquer campo podem organizar esse conhecimento num plano disciplinar. Mas as pessoas que aprendem não podem aprender da mesma forma que se armazena informação. Uma coisa é como os especialistas podem armazenar informação e investigar nessa base e outra é a maneira como fazemos com que as novas gerações tomem contacto com esse conhecimento.

P: Passar da teoria à prática é que se torna mais difícil...

R: É difícil, tal como sempre foi difícil aplicar qualquer teoria à prática. Mudar sempre foi difícil, mas é necessário. E os efeitos já se vêm sentindo. Em quase todos os países do mundo, independentemente das práticas dos professores serem mais ou menos disciplinares, existem sempre colectivos de professores e professoras que estão a fazer este tipo de experiências.
O grande problema com que se deparam é o facto de as estruturas disciplinares não funcionarem de modo a que aqueles que ainda não se tornaram especialistas, os estudantes, entendam, valorizem, desejem e se apaixonem por aprender. Os próprios governos estão a aceitar que é preciso que a escola trabalhe com estratégias de organização dos conteúdos muito mais flexíveis. E uma prova disso é o facto de na última revisão legislativa sobre as reformas educativas aparecerem já algumas tentativas para resolver estas temáticas.
Na última revisão legislativa das administrações educativas, em Espanha, incorporou-se uma palavra para abranger determinadas temáticas: o curriculo transversal. Ou seja, o curriculo tem de ter esta e aquela disciplina e, transversalmente, há que incluir educação sexual, educação para a paz, educação para a cidadania, educação para a saúde, etc... Podia organizar-se todo o curriculo desta forma, mas o que significaria isto? Na perspectiva do modelo tradicional disciplinar estas seriam dimensões formativas importantes que ninguém saberia ao certo a quem competiriam. Os programas podiam correr o risco de serem mais conflitivos. A educação sexual, por exemplo. Quem a daria? As ciências sociais? A biologia? A religião? E como é um tema complicado ninguém acabaria por tocar-lhe, delegando a responsabilidade nos outros. Os temas mais conflitivos são aqueles que estão nas fronteiras das disciplinas.
O que se está tentar dizer é que não existe um professor de educação sexual. Todas as disciplinas têm alguma questão relacionada com a educação sexual. O que é preciso é planear um trabalho conjunto, uma educação interdisciplinar. O problema é que os professores não foram formados assim, são excessivamente disciplinares.

P: Então isso passa por um plano geral de reconversão da formação de professores?

R: As práticas de formação de professores devem ser trabalhadas de uma forma mais interdisciplinar. Se um professor ou uma professora foi formado estudando unicamente através de disciplinas - psicologia do desenvolvimento, teoria da educação, didática geral, estatística, matemática, física, literatura, etc... - ele constrói já por si um modo de pensar disciplinar. Como consequência, a primeira vez que deseje trabalhar com projectos curriculares integrados irá concerteza ter dificuldades. É provável que não se sinta seguro a trabalhar com um modelo tão novo para ele e que isso o leve a convencer-se de que os modelos disciplinares são por si só suficientes.
É preciso ter consciência de que as disciplinas reflectem também formas organizativas de poder. Cada professor é defensor da sua parcela; pensa que unicamente ele tem possibilidades de falar sobre os conteúdos que são sua especialidade; esses conteúdos passam a ser os mais importantes que as crianças devem aprender e, por essa razão, tratará de fazer com a sua disciplina ocupe o maior número de horas no horário escolar; o seu grupo tratará de conseguir os maiores investimentos económicos, pretendendo que seja considerado o mais importante. Os professores das restantes disciplinas passam a ser entendido como rivais, como competidores, e, em alguns casos, considerados menos importantes para a formação integral do aluno.
É imprescindível que os professores aprendam a ver-se como parte de um projecto colectivo de formação; que para ensinar a conhecer a história e o presente da sociedade cada um sabe algo que precisa da colaboração dos saberes dos restantes professores e professoras para ser entendido de forma mais completa. Têm de ser os professores os primeiros a sentir a necessidade da interdisciplinaridade como estratégia para entender e participar no mundo actual. Unicamente as pessoas convencidas da interdisciplinaridade realizam os esforços necessários para trabalhar nas aulas com projectos integrados.

P: O professor Jurjo torres integra diversos movimentos de índole social, nomeadamente os "Educadores pola Paz" e na década de setenta e oitenta foi co-fundador de diversos movimentos de renovação pedagógica, como o "Conselho Educativo", em Castela-Leão, e da "Associação Sócio-Pedagógica Galega", da qual chegou a ser presidente. Que contributo é que eesas organizações não governamentais podem dar com vista a essa mudança?

R: Eu creio que eles vêm dando desde há muito. Os movimentos de renovação pedagógica em espanha foram formados por professores e professoras com particular sensibilidade política e social. São, por assim dizer, professores e professoras com vocação. Pessoas que se deram conta de que tinham tido sorte na vida em aceder a determinados níveis culturais, sorte em poder avaliar as situações de uma forma diferente das pessoas menos instruídas e que queriam que cada vez mais pessoas tivessem esses previlégios. Grupos com uma grande consciência social e ética que os levou a renovar a sua prática em função desses objectivos.
Ao longo de todo o século XX não há referência de qualquer inovação educativa importante que não tenha sido concretizada por professores que, sendo docentes, militavam ao mesmo tempo em organizações sociais como partidos políticos, sindicatos, movimentos comunitários ou organizações não governamentais, etc...

P: Mas esses movimentos têm uma força efectiva? Conseguem imprimir transformações?

R: Sim. Se se analisar as últimas reformas educativas em Espanha - a lei geral de reforma do sistema educativo espanhol, por exemplo - elas não partiram de ideias geniais que tenham ocorrido ao ministro ou à ministra.
Foram estes colectivos de professores que, durante anos, por exemplo, reclamaram o início da educação pré-escolar no primeiro ano de vida da criança e não a partir dos três anos, como acontecia. Foram estes colectivos de professores que foram alertando a sociedade no sentido de fazê-la compreender que a igualdade de oportunidades também começa por uma aprendizagem de base mais sólida. E estas ideias começaram a ganhar forma e foram postos em prática quando os partidos que mais se identificavam com estes movimentos e com estes princípios chegaram ao poder.
O mesmo se passou com o conceito de educação transversal. Havia colectivos de professores que começaram a pensar e a pôr em prática novas formas de trabalho interdisciplinar que agora aparecem legitimadas pela actual legislação, ao propôr que deve existir um curriculo transversal. Estas e outras inovações são uma boa prova de que o colectivo docente tem possibilidades de pressionar com êxito para a mudança aquilo que não considera correcto. A política oficial vai sempre atrás da realidade. A legislação costuma legitimar e reconhecer o que já vinha sendo uma realidade, o fruto do trabalho dos grupos mais activos.
Qualquer história da educação contada com rigor tem de reconhecer que as principais inovações educativas foram ensaiadas sempre por grupos de professores e professores mais sensibilizados. Perante as injustiças sociais que detectavam, procuravam encontrar soluções; não esperavam que o estado e as legislações educativas fizessem algo para as resolver. Pelo contrário, começavam desde logo a actuar e a forçar o estado, a classe política, a procurar modos de solucionar essas injustiças.

P: Na lógica dessa trocas de opiniões, e partindo dos contactos que vai estabelecendo com outros educadores, que experiências tem retirado?

R: Os colectivos de professores vão aprendendo, experimentando e cometendo erros. A educação para o racismo é um exemplo. Não nos ocorre pensar que a chave para a eliminação do racismo está no sistema educativo. Não é o único meio, claro, mas ele pode dar um contributo fundamental e decisivo. Num primeiro momento tentamos fazer algumas experiências, introduzindo algumas mudanças nos programas que, por vezes, não davam resultados. Mas íamos experimentando e vendo que através de outras formas até resultavam melhor.
E isto passa-se um pouco por todo o mundo com os colectivos de docentes que trabalham estas matérias. Somos um dos colectivos com mais possibilidades de tomar consciência dos grandes problemas sociais, já que as famílias com as quais trabalhamos, as que nos enviam para a escola os seus filhos e filhas, fazem-nos conscientes dos problemas que têm para viver.
Nesse sentido, vamos aprendendo à medida que vamos reflectindo e chegando à conclusão de que não existem grandes fórmulas e que se torna necessário avaliar bem o que estamos a fazer, não ter medo e reconhecer que cometemos erros.
Uma das grandes lacunas que marca estes colectivos de professores é o facto de não haver redes que nos liguem, onde se aprenda não só sobre a nossa experiência mas também sobre o que fazem outros grupos, noutros lugares.

P: É então importante que se multipliquem encontros como o que falámos no início da entrevista?

R: Sem dúvida. Fazer com que não tenhamos de reinventar a roda, isto é, aprender com experiências e tomadas decisões levadas a cabo noutros lugares, dando a conhecer, ao mesmo tempo, as nossas próprias experiências, vitórias e fracassos. Temos de aprender a ser um pouco humildes e reconhecer que podemos aprender com experiências de toda as partes do mundo. E isso faz-se não só através de encontros, como também através de publicações, como a Página. O conhecimento só se pode ir construindo através dos contactos e da troca de experiências.
No mundo da educação, no entanto, essa comunicação é mais lenta e há menos tradição em verificar como os problemas que nos preocupam são resolvidos noutros lados e tentar aprender através deles. Esta prática advém em boa parte das próprias práticas das escolas de formação de professores, mas vai-se esbatendo lentamente. Neste sentido penso que temos vantagens sobre os povos que vivem situações conflitivas e com maiores níveis de subdesenvolvimento.
Outras vezes acontece o contrário. Costumo viajar para os Estados Unidos e para o Reino Unido e verifico como esses países tem um defeito: são demasiadamente orgulhosos para tentarem aprender algo com os outros. Creio que povos como os nossos, os galegos, os espanhóis ou os portugueses, têm maior capacidade para aprender com os outros. Neste contexto creio que seria impossível exportar ideias da europa para os Estados Unidos.

P: Tomam-se de certa maneira como modelos...

R: Eu creio que sim, consideram-se auto-suficientes. E nesse aspecto penso que temos vantagens. Somos mais permeáveis a ideias, venham elas de onde vierem; avaliamo-las e, se as consideramos úteis, levamo-los à prática sem complexos e sem lutar pela sua propriedade ou ?copyright?. A história é fruto do que umas gerações foram aprendendo e transmitindo às seguintes. Vamos nos ombros de quem nos procedeu ou já experimentou algo que mereça a pena.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa

Jornal a Página da Educação nº 87 - Janeiro de 2000, pg. 11


  
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Edição:

N.º 87
Ano 8, Janeiro 2000

Autoria:

Jurjo Torres Santomé
Universidade da Corunha, Galiza/Espanha
Jurjo Torres Santomé
Universidade da Corunha, Galiza/Espanha

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