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Pode a Escola Gerar Depressões?

A adolescência de Pedro B. decorria como a de qualquer outro rapaz novo da sua idade, dividida entre as aulas, o andebol e os amigos. Até ao 11º ano tirou sempre boas notas e entrar para o curso engenharia era o seu grande objectivo. Quando transitou para o 12º ano, porém, o insucesso a duas disciplinas levou-o "praticamente ao desespero", como conta o próprio. Por mais que estudasse não conseguia atingir resultados positivos e, pior que isso, ia descurando as restantes cadeiras. O resultado não foi brilhante. Reprovou com três negativas e a média, que até aí estava bem encaminhada, tinha descido bastante comparativamente aos dois anos anteriores.
Não baixou os braços e prometeu a si próprio trabalhar mais. Entretanto, soube que a média de ingresso em engenharia tinha subido ligeiramente. Nada que não conseguisse superar, pensou. Mas não foi assim. O bloqueio em relação a uma das cadeiras não foi ultrapassado e voltou a comprometer a passagem do ano. "Já não sabia o que fazer. Deixei praticamente de sair com os meus amigos e cheguei a ter aulas com um explicador particular. Mas não resultou. Julguei que nunca mais conseguiria entrar na universidade".
Aos poucos, foi-se refugiando cada vez mais em casa e o início de uma depressão não tardou a ser diagnosticado por um médico amigo da família. Depois disso esteve um ano inteiro sem fazer nada. "Não queria sequer ouvir falar da escola". Aos poucos a situação mudou. Com a ajuda de um psiquiatra conseguiu ir vencendo o medo do fracasso e hoje está já no segundo ano do curso de engenharia de informática e computação. Uma experiência dolorosa, reconhece, mas ao mesmo tempo útil porque o ajudou a entrar no ensino superior com outra atitude e a lidar mais tranquilamente com situações semelhantes.
As depressões, causadas directa ou indirectamente por esgotamento, estão a afectar cada vez mais os estudantes portugueses, com particular incidência no final do ensino secundário e início do ensino superior. Apesar de presentemente não constituir uma situação muito alarmante, o facto é que os casos vão-se sucedendo e ninguém parece estar atento ao problema.
Emília Costa, psicóloga, professora associada da faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação do Porto e coordenadora do centro de atendimento psicológico desta faculdade, não estranha que casos como o de Pedro B. sejam cada vez mais frequentes.
"Em primeiro lugar basta olhar para as actuais médias gerais de acesso à universidade - alguns cursos já têm médias próximas dos vinte valores -, o que leva a que a exigência do jovem em relação a si próprio seja gradualmente maior". A este factor junta-se muitas vezes a pressão da família - o factor "social" - e dos professores, que frequentemente se traduz em medo pelo fracasso e aumenta os níveis de ansiedade e de stress. Estas situações levam a uma diminuição substancial dos tempos de lazer e de convívio do aluno e, inevitavelmente, influem no seu estado psicológico.
Acumulando a experiência de professora e de clínica, Emília Costa garante ser frequente, por alturas do carnaval, começarem a surgir jovens nas consultas com níveis de ansiedade muito elevados, e, por vezes, com crises de pânico. Muitos, inclusivamente, "quase não conseguem permanecer na sala de aula".
A fase de depressão aparece habitualmente em alturas próximas de exames, quando essa ansiedade não costuma ser muito valorizada. A causa mais associada é o esgotamento, traduzido na sobrecarga das faculdades intelectuais sem compensações, como o lazer, que nestes casos se revela de extrema importância. São as chamadas "depressões por esgotamento".
Rui Mota Cardoso, psiquiatra e professor associado da faculdade de medicina do Porto, refere que nos jovens a depressão profunda é rara e está normalmente associada a problemas de índole psico-social. A própria natureza da adolescência - um estado entre dois paradigmas, definido por duas negativas (não sou criança mas também não sou adulto), contribui para aumentar este sentimento. A percepção - verdadeira ou falsa - de que "não valho nada", "não tenho futuro" ou ainda de que "não vale a pena fazer nada para mudar a minha vida", instala-se por vezes como uma sombra.
"Agora acrescentemos a isto as dificuldades actuais do adolescente e, sobretudo, as dificuldades postas pela exigência da escola e do futuro: entrar para a universidade, lidar com colegas e professores, arranjar um emprego... são condições que, em qualquer meio, podem previligiar o estado depressivo", diz Mota Cardoso.
Indo um pouco mais longe, afirma que em última análise as origens deste problema podem ser encontradas no modelo de sociedade que vivemos e na cultura de competitividade que ela desenvolve. A mesma sociedade que, refere, "tem-se desculpabilizado culpabilizando partes dela". Como é o caso da escola, sobre a qual têm gradualmente recaído responsabilidades que, à partida, não lhe assistirão: ser pai e mãe quando não é ela o encarregado de educação; ser assistente social quando não é lá que deveria ser prestado esse apoio; e ser recreio quando não é lá que os jovens deviam passar os seus tempos livres. E, como facilmente se compreenderá, "não é na escola que nasceu a ideia da competição", sublinha.

Desconhecimento do problema

"Não sei a quem deverá ser assacada a responsabilidade pelo que se está a passar, mas o sistema de ensino tem concerteza alguma, nomeadamente pela forma como as escolas gerem as notas e pela competição que vai criando na própria forma como ensina", diz Emília Costa. Os próprios exames nacionais, ao não respeitarem as especificidades dos alunos, não serão tão fiáveis em termos de avaliação individual.
"Uma coisa é certa", afirma com convicção: "Isto tem de terminar, porque não é bom para os alunos, nem para os professores, nem para a família. As pessoas comportam-se como se continuassem a desconhecer esta realidade. E o facto é que todos sabemos que a situação é insustentável, mas ninguém faz nada para a resolver".
O director do serviço de psiquiatria do hospital de São João, António Palha, por seu lado, considera que as condições de acesso à universidade são uma "violência" para os alunos. "Os critérios de entrada deveriam ser revistos. É um assunto que actualmente deve ser repensado". E explica porquê. "Não acho que seja justo um jovem com aptidões para uma determinada área ter que procurar um curso em função de uma média. É extremamente mutilador das suas motivações pessoais"
No que toca à situação em geral, este médico prefere ser mais cauteloso e diz que em função dos quadros clínicos disponíveis não considera a situação tão grave. "A maioria são depressões causadas pela adaptação. O que acontece que algumas pessoas são mais vulneráveis a essas mudanças", diz. O que pensa ser grave em situações de tensão geradas nestas idades é que elas possam funcionar como factores desencadeadores de outras enfermidades, principalmente em sujeitos predispostos a doenças graves, como a esquizofrenia.
De qualquer das formas, é opinião consensual que fenómeno depressivo é ainda pouco compreendido pelas pessoas. "Quando vemos alguém deprimido - e muitas vezes os próprios pais têm esta atitude perante os filhos - é costume dizer que não há motivos para se estar assim, que "não te falta nada", "somos teus amigos", "gostamos de ti"... Aparentemente pode não faltar nada, mas falta. E às vezes é difícil as pessoas compreenderem isso", diz Emília Costa.
Depois, há sempre aquele estigma de que quem vai ao psicólogo é "maluquinho". Nada mais errado: ao psicólogo cabe apenas a tarefa de ajudar o paciente a construir uma vivência mais saudável.
Em alguns países estrangeiros, como a Suécia e os Estados Unidos, os estudos sobre a depressão, e mais especificamente sobre a depressão nos jovens estudantes, está mais avançado. E os resultados são preocupantes. Naquele país nórdico, por exemplo, um recente estudo efectuado junto de uma amostra de 2270 estudantes, entre os 16 e os 17 anos, revelou que cerca de 8 por cento apresentava sintomas de depressão. Após uma segunda entrevista, confirmou-se o diagnóstico em 73 por cento daquele grupo. O estudo referia que os sintomas eram "mais frequentes e mais graves" nas raparigas do que nos rapazes, sem, no entanto, especificar os motivos. Além disso, descobriu-se que deste grupo, 20 por cento das raparigas e 6 por cento dos rapazes apresentavam tendências suicidas. Os sentimentos associados à depressão variavam conforme os sexos. Enquanto os rapazes referiam a tristeza, o choro e as tendências suicidas, as raparigas referia o fracasso, a culpa, a falta de auto-estima ou a fraca imagem de si próprias.
Curiosamente, há três anos, em Chicago, os participantes numa conferência subordinada a este tema - onde se incluiam legisladores e políticos ligados à área da saúde - acabariam por reconhecer que os doentes com depressão "estão a ser tratados com muito pouca eficácia", apesar de ser possível fazê-lo de maneira "segura e económica".

Casos aumentam

Em Portugal, e apesar de não haver estudos que possam caracterizar ou demonstrar a evolução desta doença no meio estudantil, é possível adiantar alguns dados retirados de consultas clínicas.
Assim, e de acordo com Emília Costa, a faixa etária dos alunos com perturbações varia entre os 17 e 23 anos, estes últimos provenientes, na sua maioria, de cursos científicos como as engenharias e as medicinas. Quanto ao sexo dos pacientes, esta psiquiatra arriscaria num maior número de mulheres. Se fizéssemos um estudo provavelmente encontraríamos esse resultado. Por uma razão muito simples: são elas que estão a entrar em maior número nas universidades e, logo, estão em maior situação de risco.
"Mas apesar de tudo acho que sofrem mais os rapazes, porque o tipo de educação que recebem é substancialmente diferente. Elas, por uma questão de educação, são mais facilmente conduzidas para serem certinhas, para estudar, enquanto eles têm mais dificuldade em lidar com esse tipo de comportamento", esclarece.
Partindo destes dados pouco científicos, torna-se extremamente difícil fazer uma antevisão quantitativa sobre a evolução desta doença nos próximos anos. Apenas como termo de comparação, refira-se que no ano passado, só na faculdade de psicologia, foram atendidos cerca de três dezenas de alunos. A maioria, porém, continua a desconhecer a existência deste serviço de apoio gratuito.
Emília Costa refere que o número de casos não só tem vindo a aumentar - principalmente nos últimos três anos, período que conicide com uma subida gradual das médias de acesso - como acontecem cada vez mais cedo. Nomeadamente no ensino secundário, onde as notas contam cada vez mais para o ingresso na universidade.
Um factor de pressão que, de acordo com esta especialista, pode chegar mesmo a pôr em causa relações de amizade devido à competição que se estabelece entre os alunos. "A solidariedade, que seria um dos valores fundamentais a desenvolver nos jovens é, nestes períodos, completamente posta de lado". Depois, quando entram na universidade, estes jovens obedecem a um padrão de comportamento tipificado: mantêm um alto nível de competitividade com os colegas e vivem desintegrados em termos sociais, dedicando-se quase na totalidade ao estudo.
Esta faceta, considera Emília Costa, é particularmente preocupante em profissões que implicam relações humanas. "Um bom médico não é só aquele que sabe medicina, mas aquele que sabe relacionar-se com os seus pacientes".
Algumas faculdades do Porto têm já gabinetes de apoio aos alunos, como são os exemplos de Engenharia, Economia e o pólo da foz da Universidade Católica. Tudo em colaboração com o centro da faculdade de psicologia que, para quem não sabe, está igualmente aberta à comunidade. Outras instituições começam agora a surgir na área do apoio, nomeadamente as juntas de freguesia, que, apesar do esforço, esbarram frequentemente em faltas de apoio financeiro. "Mas começa a haver um crescente número de pedidos por parte destas autarquias", assinala Emília Costa, o que não deixa de ser um sinal positivo.
E propostas para inverter a actual situação parecem não faltar. O principal papel dinamizador cabe ao estado. Em primeiro lugar, sugere Emília Costa, "era importante aumentar o número de psicólogos nas escolas". A maioria delas não dispõe de qualquer técnico e quando isso acontece trabalham para dois e três estabelecimentos de ensino ao mesmo tempo. "Assim é impossível fazer um trabalho de acompanhamento sério", afirma. Além disso, insiste, as universidades deveriam pôr em funcionamento serviços de apoio gratuitos aos jovens, "como acontece em qualquer parte do mundo". Finalmente, é necessário propôr alternativas de formação viáveis que permitam uma mínima segurança de futuro para os jovens. Se é verdade que é necessário limitar a entrada em determinados cursos para se evitar a criação de bolsas de desemprego, também é verdade que se deve encontrar formas alternativas de fazê-lo. Mas, talvez mais importante, é necessário que a escola ofereça uma "formação de qualidade".

Ricardo Jorge Costa

Jornal a Página da Educação nº 85 - Novembro de 1999, pg. 16


  
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Edição:

N.º 85
Ano 8, Novembro 1999

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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