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Se Eu Não Me Sentisse Confuso de Como Fui Feito...

À minha descendência

Feito

Porque de certeza não foi o espírito que me criou. Faz já dez anos. Não foi o espírito que entrou no corpo da minha mãe e depositou aí o meu corpo. Diz a minha mãe que foi ela quem me trouxe ao mundo. Que me pôs neste mundo. Que me deu à luz. Que entregou o meu corpo à família e ao pai. E aos vizinhos. Que me viram no dia do baptismo. Diz a mãe que me levou no seu ventre durante um tempo cumprido. Diz a mãe. A mãe sempre diz todo o que ela sofreu comigo dentro. Diz que sofreu por ter que acordar à noite para me amamentar. Diz a mãe que teve de mudar as minhas fraldas milhentas vezes quando era pequeno e não sabia usar penico. Diz a mãe.

O pai não fala. Ouve o lê o jornal, ou mexe as mãos como umas tesouras para arranjar os papéis do seu trabalho. O pai trabalha no Concelho ou numa escola ou escreve livros ou faz contas para pagar ordenados. Em tanto assunto mexe que eu não entendo o que faz. Tanta coisa faz, que nem tempo tem para comentar. Trabalha num sítio qualquer. Ainda não é claro e certo para mim, o que o pai faz. Ele nunca fala em casa e a mãe só fala dele ao preparar as comidas, do que ele gosta, do que ele prefere, do que ele detesta e de como ele vai-se zangar se não está tudo pronto, a horas e bem temperado. E engole caladamente, a olhar os seus papéis. Ou a recortar. Nem sei o que faz o pai. Inveja tenho do Zé e a Maria, que falam à mesa e os pais discutem o trabalho, a casa, os estudos deles. Eu, tenho essa sorte. Só sei que o pai não me teve no seu corpo nem me amamentou, nem mudou as minhas fraldas. Nunca olhou para mim, embora pedisse cumprimentos. Beijos não queria, os homens não se beijam, dizia ele. Diz a mãe, essa que me come com beijos, diz a mãe que o pai olhava e me acarinhava quando eu era pequeno, quando já tinha um ano ou dois. E que brincava à bola comigo. Diz que eu teimava pegar a bola com a mão, o pai teimava a pegar com o pé. Nunca consegui aprender, ao que se parece, e o pai disse-me maricas, nunca mais jogou comigo e eu entrei pelo mundo da fantasia a inventar os meus próprios jogos. Jogos nos quais o pai sempre aparecia. O que fazia o pai ? O que fez para ser meu pai ? Porquê esse homem que eu quero, é o que chamo pai? E por ele sempre espero, com carinho, com temor, nunca sei se anda feliz ou zangado. A mãe é a que sabe. E, ou abre a boca, ou come em silêncio para não interromper os trabalhos do pai.

Pai

Pai. Uma palavra esquisita. Não é como a palavra mãe. Mãe faz sentido. Por acaso, não andou no seu ventre, comigo. Por acaso, não me teve no seu colo quando sugava o seu peito? Por acaso, não me cantava canções de embalar ao me amamentar ? Por acaso, até com raiva, não mudava as minhas fraldas ? E as palavras que digo, não foram retiradas das suas ? Não é, porém, a minha língua, uma linguagem materna ? Emotiva ? Amorosa? Palavras que me aparecem sempre com carinho e eu aponto-as, anoto-as, para as não esquecer mais. É a mãe a que me fez. Até ao ponto de eu entender as pessoas que vinham a casa. Casa na qual a mãe sempre estava. E contava os jogos que eu fazia. E os trabalhos da escola. O que de bem ia a minha vida escolar. Mesmo que não tivesse notas famosas. A mãe dava-me confiança. Fazia de mim uma pessoa. Que não tinha medo de falar com as pessoas amigas. Excepto, quando estava também o pai. E os seus amigos. Que iam falando e bebendo enquanto debatiam. De coisas. De coisas que eu não entendia. E eu, sei lá, se não punia a mãe nessas noites, porque ele arfava e ela gemia. Quando estava com os copos. Coisa estranha. Desde bem pequeno, eu ouvia esses ais! Às noites, ou na sesta aos domingos, quando o pai mandava entrar a mãe para o quarto. Esses dias que apenas ele arfava e ela não gemia. Ele ficava a dormir, e ela saía do quarto para os afazeres de casa. E, às tantas, a sua barriga ia alargando, crescendo, e outro bebé nascia. Como é que ele era feito? Na catequese e no Natal, falavam sempre do nascimento. Do menino que a gente punha no presépio. E até presentes tínhamos para festejar esse nascimento. Nascimento acontecido pelo anjo que anunciou a essa mãe que o espírito ia entrar nela. E a criancinha assim tinha nascido. Será que o arfar do pai suga o espírito anunciado pelos anjos e outro bebé entra no corpo da mãe, que no seu ventre dá forma aos olhos, às mãos, aos pés, ao corpo todo? E tão pequeninos que são quando nascem! Como se ainda não estivesse todo feito. Deve ser por isso que o levam à Igreja, para pôr óleos na sua testa a escorregarem até ter o tamanho para poder brincar comigo. Esses meus irmãos que iam aparecendo aos meus quatro, aos meus cinco anos, ou antes. Mas, de antes não lembro. Todos, de certeza, filhos do espírito que faz crianças. Como dizem em casa. Como diz o pai que dizem outros povos do mundo. Em outros continentes. Sei lá. Se é a mesma história, então é o espírito.

Confuso

Confuso ando eu. Com tanto rabisco que me entra pela cabeça dentro. Mal saio de casa, as explicações mudam. Os putos meus amigos andam sempre a olhar para as raparigas. Eu, com certa timidez o digo, também. Porque será que quando olho para elas ferve-me o sangue e o meu pénis fica mais crescido? E fico com desejos de as beijar. Especialmente essa rapariga que tem muito cabelo, onde gosto os meus dedos enredar. E passar as mãos pelas bochechas. E, mal posso, arranco um beijo. Ou cutuco as sua mamas crescidinhas. Não são grandes como as da sua mãe, ou da minha. São mamas pequenas que as minha mãos agarram quando ela fica perto de mim. E ela até sorri!. Não se zanga. Gosto de cheirar o odor do seu corpo. Mais ainda, quando fazemos ginástica. E ela sua, e eu também. E diz que suo bem, gosta do cheiro do meu corpo! E não deixo que em casa me mandem tomar banho. Guardo o cheiro para ela, a minha rapariga. Que me faz ferver o sangue sei lá porquê. Diz a rir o meu amigo João, que ando enamorado. Enamorado eu? Enamorar, se vejo bem o que a televisão mostra, são duas pessoas que estão juntas numa cama. Ele salta por cima dela e mexe o seu corpo. Ela agarra-o com as sua mãos, e passa as sua unhas pelas costas do homem que está com ela. E mais não posso ver, os lençóis tapam os corpos, os pais tiram-me do aparelho ou mandam-me ir para a cama. E na cama jogo com o meu corpo. Que ficou a fervilhar por ter tocado na minha amiga, por ter espreitado o que os pais proíbem que eu veja.

Sorte a minha, essa de ter confiança no João, mais velho, com mais dois anos da idade que eu. Esse que me conta que ele e os seus dois outros amigos brincam com a sua pila até sentir que o corpo cai e um leite salta fora dos seus corpos. Leite que escondem num papel ou num lenço. Que às vezes vão juntos à casa de banho e mexem neles próprios a brincar a quem lança o leite mais longe. Talvez, quando eu tiver a idade deles, possa acompanhá-los, digo. E o João diz que nem por isso, que eu, nem aí. Que é para os mais velhos. Que eu não ia saber empurrar esse amigo que gostava de agarrar a pila deles e lhes dar beijos. Não percebi. Ainda não percebo. Queria perguntar à mãe, mas a mãe não tem pila, como ia entender isso? Será que o pai tem? E se falar com ele ? Mas, como lhe digo? Não sei as palavras. Na escola ensinam biologia e dizem que vamos ficar lentos e perdidos quando chegar a quê? Ah!, diz o livro, à puberdade. Vamos ficar lentos, desabalados, meios parvos, sem balanço. E nada mais diz a professora que nos ensina. Essa que fala em grupo, aparte com as raparigas, e oiço à distância, a palavra sangue mensal. Sangue nos seus corpos? Porquê? Coitadas. Ao que parece, nós damos leite e elas sangue. Quando, porquê, para quê? Os putos do Quinto e Sexto anos, têm aulas para encontrar palavras. Palavras que eles traduzem para palavras usadas para os factos já vividos. Pelo menos, diz o João, aprendem a usarem o preservativo. O quê? Raios me partam, esses adultos pensam que eu sou um anjinho. Perigoso. Será que já estou na idade de anunciar às mulheres que vai aparecer o espírito e vão ter filhos?

Ai! Se eu não estiver confuso, para que serve o meu corpo. Se eu tiver palavras. Mas esses grandes pensam que eu não penso nem sinto. Que me coloco ao lado deles por puro carinho, sem repararem que junto o meu corpo ao de outro que me conheça intimamente, porque sinto prazer no meu. E como é que gosta de dar beijos aos que gosto! Beijos a fazerem o meu coração saltitar. Como o outro dia, quando fiquei a olhar para essa minha rapariga no fundo dos seus olhos, e a minha mão esticou-se sem eu dar por isso. Peguei numa flor que crescia à beira do caminho e dei-lha. Ela deu-me um beijo na cara. Cara que não lavei para guardar o suave sentir desses lábios, tão diferentes dos da minha mãe. E, desde esse dia, já nem quero que a mãe me beije. É um beijo tão diferente. Ai! Se eu soubesse para o que sirvo, como fervilha o meu sangue, se esses grandalhões entendessem que eu sinto sem palavras. E sofro por sentir e não ter quem me ajude. Tudo se passa por eu ter a idade que tenho, um puto pequeno. Útil só para estudar e fazer o que me mandam em casa. Ou ler livros de trabalho de escola, ou ver televisão às tardes. Ou ver histórias no cinema, que eu gosto, como a de Colombo. Aventuras da História, essas que não me explicam a História do meu corpo. Que começa cedo nas nossas vidas. Bem mais cedo do que os pais quereriam admitir. Que os professores, aceitam. Que os Padres e o raio dos que denominam Direito Canónico, dizem: até à puberdade, toda criança é um ser inocente a ser orientado a viver com os outros.

Como ? senhor leitor . Se não junto palavras com sentimentos ninguém pensa que eu também penso? Nem sabe que eu também sinto? Nem constroem uma conversa de casa para, docemente falar dos meus sentimentos? Esses que tenho, da rapariga, às vezes, do João outras, do meu irmão tantas, da senhora que toma conta de nós, quando a mãe deve estar ausente? E que eu espreito pelo espelho quando ela muda de roupa. E no espelho, se reflectem essas grandes mamas que detesto, tão pouco semelhantes às da rapariga dos meus amores?

Notas de
Diário de Yarín, Pencahue, Chile.
Diário do Joel, Vilaruiva, Portugal.
Diário de Pilar, Vilatuxe, Galiza.

Conclusão

Faz anos que estudo crianças. Elas ensinaram-me nos seus jogos e brincadeiras, nas suas confidências, nos seus sonhos, no seu agir quando eu, observador feito sombra, olhava para elas, sem ser visto. Quando aprendi a ver, ouvir e calar e a assistir à catequese que pouco diz, e às aulas que não falam dos assuntos que a estas crianças, acontecem. Muito se fala delas e do trabalho por jornadas, e do seu corpo mercadoria a ser vendida, pelas teias da pornografia. Quando aprendi a ouvir os pais que de tudo falavam, excepção feita ao sentir erótico e emotivo das criancinhas. Que servem para se falar delas enquanto filhos, mas nunca enquanto ente autónomo e individual, que desenvolve o corpo sem acompanhar esse corpo, o pensamento. Premissa horrorosamente cartesiana que todo investigador qualitativo, detesta. Investigador que também foi criança e se lembra. E sabe retirar dos factos, as lembranças, sem fazer da pesquisa mais outro assunto, que confronta os adultos nos direitos humanos dos mais novos. Como Mozart soube fazer na sua ópera Apollo e Hyacinthus no seu Salzburgo de 1776, aos 11 anos de idade. Metaforicamente, há muitos Wolfangs que imaginam o amor, o carinho e a paixão, com a epistemologia que este rapaz soube fazer apesar das contrariedades do seu pai e dos encarregados da música na Corte do Cardeal Príncipe Colloredo, o seu patrão, que Wolfgang soube mandar a sítio especial, quando o ofendeu, mostrando, ao se vergar para cumprimentar o público, as partes de trás do seu corpo. Facto que as crianças hoje fazem porque os adultos são, em metáfora também, Colloredos que não percebem que a pequenada é adulta de sentimentos que não identifica e desabafa com raiva contra os seus adultos. Ou fica a dar voltas ao seu pensamento fantasioso o que é que será o que sente quando sente o seu sangue ferver e os seus genitais, humedecer. Por um homem ou por uma mulher. Um Ego por um Outro que, já cedo, começa a retirar do seu lar, ao preparar para viver no social. Que entra no Século XXI com os mesmos princípios sobre a infância, debatidos já no Século de Rousseau e nos séculos de Freud. Não doenças, mas formas naturais de agir que o adulto não sabe aceitar ao conceber sua conceição, como pequeno que não sabe. Inocente do mais importante saber que todo ser humano, de toda cultura, desde a infância, tem.

E com estas palavras, síntese do meu livro a aparecer, deixo ao senhor leitor pensar e meditar no Verão. Para responder. Todo autor gosta do debate. Este autor, é fervente em acreditar que do debate, nasce o desenvolvimento do saber. E não há tema que seja tabu, excepto esse que o social proíbe e que, em benefício da infância, é o nosso dever abafar para conhecer. Este é, enfim o objectivo científico do que tenho andado a trabalhar com um grupo largo de investigadores pela Europa, África e América Latina: Antropologia da Educação, que defino como a procura da epistemologia da criança por baixo do que o adulto quer definir para as crianças, das aparências do que se vê, o entendimento das ideais da miudagem no processo educativo, processo de ensino e aprendizagem na interacção social.

Raúl Iturra
Instituto Superior de Ciências
do Trabalho e da Empresa (ISCTE) / Lisboa


  
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Edição:

N.º 82
Ano 8, Julho 1999

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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