Os reformados são cada vez em maior número em Portugal. Mas quem são? Como se ocupam? Quais as suas condições de vida?... "Consegues imaginar-nos daqui a uns anos, partilhando tranquilamente um banco de jardim? É tão estranho ter setenta anos..." "Old Friends" Simon and Garfunkel
É manhã cedo. Tal como diariamente, Mário Alves acorda por volta das oito horas. Toma o pequeno almoço e sai de casa uma hora mais tarde. Antes de ir à missa das dez da manhã, um hábito adquirido há mais de quarenta anos, aproveita para respirar o ar fresco da manhã e tomar um pingo descafeínado no café mais próximo. Até há bem poucos anos, um dos seus prazeres preferidos era o primeiro café e cigarro do dia. Mas "o coração já não é o mesmo", diz, e o médico proibiu-o de abusar da cafeína e do tabaco. É que apesar do aparente vigor do corpo, os 65 anos estão lá. É nesta altura do dia que gosta de ler as primeiras notícias e folhear calmamente as diferentes secções do jornal até à hora dos deveres religiosos. Como não tem possibilidades de comprar um jornal diário - "sempre são três contos por mês" -, dá uma vista de olhos pelo jornal da casa. A página de necrologia é uma das mais requisitadas. "Nunca se sabe quando vamos dar de caras com um antigo amigo ou um conhecido. É por isso que gosto de ler, para saber quem parte e quem vai ficando". A seguir à missa visita sempre a campa da mulher no cemitério do Prado do Repouso. Altura para passear um pouco e aproveitar para comprar flores. Sempre no mesmo sítio, explica Alves, porque a florista já o conhece e faz-lhe um preço mais em conta. Um simples ramo de flores silvestres, como a senhora Albertina gostava. Se não fosse assim, "era incomportável levar-lhe um ramo todos os dias". A mulher morreu há quatro anos. Desde essa altura que cozinha para si próprio. Pratos simples como omeletes, batatas cozidas, esparguete ou arroz, acompanhados normalmente de peixe ou carne cozidos. A filha prepara-lhe sopa uma vez por semana. As saudades da mulher não se limitam ao foro sentimental. É que de acordo com Alves, "não havia nada como os cozinhados dela". Ao domingo, recorda, preparava-lhe sempre o seu prato preferido: frango e batatas assadas com arroz. Quando o orçamento familiar era constituído pelas duas reformas, Mário Alves ainda conseguia ir vivendo bem. Mas uma não dá para muito. Trinta e seis magros contos, esticados mensalmente, para fazer face a todas as despesas. Só em medicamentos, diz, gasta quase sete contos. O que lhe vale é a renda ser baixa e gastar pouca electricidade e telefone. Este último, aliás, é exclusivamente utilizado para falar com os filhos e netos. A tarde é passada no jardim da praça do Marquês - conhecido por ser um ponto de encontro de dezenas de reformados -, por entre conversas com amigos e uns jogos de sueca. "Não tenho muito com que me entreter. Quando éramos mais novos, eu e a minha mulher ainda íamos ao cinema. Mas depois desabituei-me. Além disso, os bilhetes agora custam uma fortuna. Vejo televisão, que não custa nada, e vou pondo a conversa em dia". E quando chove? "Nesse caso não há outras alternativas senão o quentinho da casa ou a mesa do café". Um dos seus companheiros de tardes é José Oliveira, homem baixo e bonacheirão, de 56 anos, "campeão" local da sueca. A avaliar pelo à vontade com que dirige o jogo, o seu lugar está praticamente marcado. Aliás, diz Alves com ar troçista, "sem ele isto não era o mesmo". Há cerca de dez anos, Oliveira sofreu um acidente na mão e viu-se obrigado a pedir a reforma antecipada por invalidez parcial. A sua vida alterou-se radicalmente. Toda a vida tinha sido polícia. "Ao princípio achei estranho não ter nada para fazer. Era como se tivesse deixado de levar uma vida normal. Há três anos arranjei um trabalho como guarda nocturno, através de uma pessoa amiga, e desde essa altura que até ando mais bem disposto". Além de lhe proporcionar um maior desafogo económico, este novo trabalho é também uma maneira de se manter ocupado. O ditado lá diz: parar é morrer. Mesmo sabendo os perigos a que está sujeito - e de não receber qualquer subsídio de risco por isso -, afirma que não tem outro remédio. É que mesmo para um funcionário público, como é o seu caso, a maioria das pensões são muito baixas. José Oliveira recebe 5400 escudos do seguro de invalidez e 58 contos de reforma, para si e para a mulher. "Praticamente nada", queixa-se. Há uns anos atrás, acreditando que através da política podia ajudar a tentar melhorar as condições de vida dos reformados, decidiu inscrever-se no Partido de Solidariedade Nacional. O resultado foi decepcionante. "Quando lá estava o antigo presidente (Manuel Sérgio) aquilo ainda ia funcionando - até cheguei a fazer parte das listas eleitorais -, mas depois foi perdendo força e acabei por sair". Uma onda de pessimismo varre-lhe agora os pensamentos: "Continua tudo na mesma e assim há-de continuar. Os mais velhos são quem mais sofre". (Entre 1990 e 1997, a percentagem da população portuguesa com mais de 65 anos aumentou de 14 para 15 por cento, enquanto que os menores de 14 passaram de 20 para 17 por cento. Segundo números oficiais o índice de envelhecimento subiu de forma substancial, já que no início da década a relação da população idosa por cada 100 jovens era de 68 e em 1997 passou para 89). Mais recatada é a vida de Alice Costa, de 62 anos. Uma senhora de ar frágil, mas ao mesmo tempo desperta e bem disposta, cujas rugas lhe vão marcando as expressões com que vai reagindo à conversa, ora com sorrisos, ora com ar de espanto ou de resignação. Insiste em mostrar uma fotografia da sua juventude. "Tinha um palminho de cara, não acha? Ainda cheguei a aparecer numa revista de modelos de roupa, mas naquela altura não pagavam o mesmo que a estas raparigas de agora. Nem pensar!". Dada a pouca sorte no mundo da moda, não teve outro remédio senão ir trabalhar como balconista para uma casa de têxteis. Agora, 34 anos depois, é "reformada do comércio". Ganha pouco mais de 38 contos. "Uns trocos. Se não fosse a reforma do meu marido não sei como seria". Férias é coisa em que nem sequer pensa. Há dois anos ainda foi a um cruzeiro pelas rias baixas de Vigo, organizada por uma empresa de vendas. "Só se pagava dois contos e aproveitámos. Foi muito bom. ". Depois, a lida da casa toma-lhe praticamente o tempo todo. "Limpo a casa, cozinho para mim e para o meu marido, vou às compras, vou aqui e ali... Enfim, vou-me entretendo...". Mas confessa que a impressiona ver pessoas da idade dela "enfiadas em casa a olhar pela janela...". "É como se estivessem à espera de morrer..." Misturado por entre os adeptos que conversam no exterior do estádio das Antas, Fernando Magalhães é um daqueles indefectíveis que passam a tarde esperando poder ver de perto os jogadores do FC Porto e dirigir-lhes um cumprimento. Ou uma crítica, se o comportamento no jogo anterior assim o justificar. É quase a sua segunda casa. Naquela tarde, conversava sobre a última contratação do clube azul e branco, Deco, um jovem de 21 anos, que, a avaliar pelas opiniões dos treinadores de bancada presentes, parece ter ser sido uma boa aposta do presidente Pinto da Costa. Magalhães completou 64 anos há dois meses. Começou a trabalhar aos treze anos numa fábrica de têxteis e só se reformou há seis. "Tempos duros", afirma, ao longo dos quais praticamente sempre laborou por turnos. "Havia semanas em que mal via os filhos e a mulher porque trabalhava de noite e aproveitava para fazer uns biscates durante o dia. Agora tenho uma reforma de 32 contos. Uma autêntica miséria". Vai-lhe valendo a reforma de trabalhadora doméstica da mulher e o facto de habitar uma casa de renda económica num bairro camarário. (No ano passado, o governo socialista anunciou o aumento extraordinário das pensões de velhice e invalidez do "regime de geral com carreiras contributivas completas" (40 anos ou mais) para valores equivalentes ao salário mínimo nacional. O aumento começará a ter efeitos a partir do início de Junho. No entanto, cerca de 65 por cento da população reformada continua a auferir valores cerca de três vezes inferiores à média comunitária, de acordo com números do próprio Instituto Nacional de Estatística). Mas há quem decida ocupar o tempo de outras formas. Mais activas. Como Aurora Dias, de 79 anos, ex-costureira e reformada desde os 62. Uma mulher bem disposta que, juntamente com duas outras amigas, frequenta as aulas de ginástica do programa Desporto na Terceira Idade, promovido pela autarquia portuense. E até foi "por acaso" que começou a fazer ginástica, conta no seu tom pausado, próprio de quem tem todo o tempo do mundo. Depois de sofrer um pequeno acidente doméstico, que a obrigou a sessões de fisioterapia, o médico aconselhou-a a fazer exercício físico. E ainda não parou. "Desde que comecei a ginástica sinto-me muito bem e acabei por deixar a fisioterapia". Mais: acabou por aprender a nadar e hoje já não dispensa a ida à piscina uma vez por semana. Só tem um desejo: "só peço a Deus que me deixe continuar assim". A reforma não é grande coisa - cinquenta e tal contos -, "mas vai dando", expressão invariavelmente repetida ao longo desta recolha de depoimentos. "Ainda em Dezembro do ano passado a câmara organizou um passeio e um almoço. Foi maravilhoso. E tudo de graça. O que se pode pedir mais?". (Mais de 400 mil idosos portugueses aderiram em sete meses ao "cartão 65", um passe que dá descontos em muitos bens de consumo e equipamentos colectivos. A expectativa era de que esta espécie de "cartão jovem", lançado em Julho do ano passado, atingisse 150 mil pessoas no primeiro ano. Em Fevereiro último, porém, tinham sido emitidos 400 mil cartões e cinco mil idosos esperavam para receber o seu). Ao seu lado está Helena Pinho. O ar extremamente jovial e o cabelo impecavelmente arranjado nunca fariam adivinhar os seus 71 anos. Aparenta seguramente menos dez. Trabalhou toda a vida como cabeleireira e "nos últimos tempos", antes de o marido morrer, dirigia o seu próprio estabelecimento. "Agora é tempo de descansar", afirma com um ligeiro ar de regozijo. A vida parece não lhe correr mal ou apresentar grandes preocupações: "Tenho saúde, ganho duas reformas e vou vivendo bem. É o que se quer". As aulas de ginástica não são a sua única ocupação. Aliás, preencher o tempo é o que garante saber fazer melhor. Passeia pela cidade, vê umas montras, visita a família e faz as compras para a casa. Ao fim de semana, é costume ir a um baile dar um pé de dança. "Sempre gostei de dançar", confessa. "Nem a morte do meu marido me retirou essa alegria". Mas não pára por aqui. "Quanto mais não seja, meto-me num autocarro, vou até ao fim da linha e regresso no seguinte". Ri-se. Deolinda Grelo é que já não está para essas andanças. Apesar de ser uma mulher de aspecto firme e pele bem conservada, já conta oitenta anos. Engraça com o próprio apelido: "há muito poucas pessoas com o meu nome. Os médicos até costumam achar piada e metem-se comigo...", diz com uma gargalhada tímida. É viúva e tem dois filhos, com os quais almoça todos os domingos. "Ora na casa de um, ora na casa de outro, mas estou sempre com eles. O meu filho mais velho até lá vai a casa todos os dias ver se está tudo bem e conversar um bocadinho comigo". Herdeira de um tempo em que as mulheres estavam maioritariamente destinadas ao trabalho de casa, sempre foi doméstica. Tratava da casa, dos filhos e ia fazendo uns trabalhos de costura para fora. Agora, a vida está longe de ser um mar de rosas. "Apesar de ganhar duas reformas, a minha e a do meu marido, que era ferroviário, é muito pouco dinheiro". Prefere não dizer quanto. Diz apenas que "vai dando para viver...". De qualquer forma, os filhos já a tranquilizaram. "Já me disseram que posso sempre contar com a ajuda deles". Para além das aulas de ginástica, gosta de se entreter com a renda. Ou de ler um pouco. Não muito, explica, porque tem problemas de visão desde que sofreu uma trombose. "Canso-me muito facilmente e as letras começam a fugir-me". De resto, sempre que vai fazer compras aproveita para dar um pequeno passeio. À noite, o programa costuma ser invariavelmente o mesmo: vê um bocado de televisão e vai-se deitar. "É uma vida muito solitária. Sempre vivi acompanhada e agora custa-me muito. Quando o meu marido ainda era vivo sempre íamos fazendo umas viagens, mas agora não tenho tempo nem saúde para isso". (Em finais de 1994, existiam 690 lares privados para 29 lares públicos. Deste total, 26 foram encerrados no ano passado por falta de condições. Dos cinco milhões de idosos com mais de 65 anos que se calcula existir em Portugal, apenas 100 mil dipunham desta espécie de acolhimento e nas listas de espera o número quase duplicava). "Aprender ao longo da vida" parece ser o lema dos dois professores reformados que encontrámos na Universidade do Autodidacta e da Terceira Idade do Porto (UATIP), um dos vários estabelecimentos dedicados a esta faixa etária que, nos últimos anos, têm surgido nesta cidade. LVO foi professora do 1º ciclo ao longo de 39 anos e reformou-se há cinco. Mesmo após a reforma, confessa que mesmo agora não tem tempo para fazer tudo o que gosta. Retomar a aprendizagem de piano no Conservatório de Música do porto, por exemplo, que abandonou quando o primeiro filho nasceu. "Era algo que me dava muito prazer, mas para já não tenho disponibilidade", lamenta, de modo sincero, enquanto retoca mais uma pincelada na cópia da "Bailarina", de Degas, que tem vindo a reproduzir na aula de pintura. Apesar de já não ter de acordar tão cedo como fazia no tempo em que ainda dava aulas, continua a levantar-se por volta das sete horas da manhã. Mas a cama pode esperar até às duas ou três da madrugada, altura em que gosta de ver televisão. Ou de ler. Ou de ouvir música. Pequenos prazeres que a falta de tempo roubou ao longo de 61 anos. A reforma, cerca de 270 contos, permite-lhe viver desafogadamente. Pelo menos, para já. "Daqui a seis anos, com o aumento do custo de vida, essa quantia já não valerá o mesmo. Nessa altura já não sei se direi o mesmo". "Estou longe de estar numa idade de paragem. Pelo contrário, estou numa idade de recomeçar. O espírito de lamúria é que é letal. É preciso aceitar a velhice e viver com ela o melhor possível. A maioria, infelizmente, não pensa como eu". A afirmação é de um ex-professor de filosofia que, apesar da simpatia com que acedeu falar, se recusou a identificar. Hoje, com 75 anos, continua a pensar que é importante ter um projecto de vida. Como "arejar" a UATIP, que confessa ser o seu actual cavalo de batalha. E dar sentido a pequenos prazeres. "Sentirmo-nos felizes por podermos ir nadar, por exemplo...". Inscreveu -se em Sociologia, Psicologia e História da Arte, mas o que lhe agrada mesmo são as aulas de ioga. Tanto, que não faz ideia como foi possível viver até hoje "sem saber respirar". Apesar de não se queixar do valor da sua reforma - cerca de duzentos contos - diz que ela não chega para comprar todos os livros que gostaria. "De qualquer forma, é mais do que muita gente ganha". Mas, mais do que o dinheiro, diz, "o fundamental é estar atento à vida". (A Assembleia da República aprovou recentemente uma lei para a actualização das pensões da carreira docente, através da qual as reformas passam a ser calculadas em função do vencimento pago aos professores da mesma categoria e escalão no activo no momento da aposentação. A lei prevê ainda que, a partir do ano 2000, os professores não poderão receber uma pensão inferior a metade dos professores em exercício. Ainda assim, muitos aposentados continuarão com diferenças substanciais - cerca de trinta por cento - em relação aos valores actualmente praticados). Reportagem escrita antes do incêndio que destruiu um lar de idosos, nos arredores de Lisboa, vitimando 8 dos seus ocupantes. Ricardo Jorge Costa
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