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O Primado do Pedagógico (II)

A pedagogização da acção administrativa, nomeadamente da que se exerce por via governativa, é uma das características mais marcantes do discurso político da actualidade em matéria de educação. Que o discurso político tenha de socorrer-se de recursos oriundos do campo pedagógico, não é, propriamente, uma novidade. Sempre a educação constituiu um bom argumento e uma boa causa para justificar todo o tipo de políticas. O que, porém, é relativamente novo, no discurso, é a construção inversa da enunciação, através da qual o administrativo se diz ter de subalternizar-se ao pedagógico, como se o seu sentido tivesse, doravante, de procurar-se fora das relações de poder e não a partir dele. Na última crónica, admitimos que tal orientação para o discurso político visa, justamente, libertar o sentido da Reforma Educativa do ónus político que qualquer reforma educativa, necessariamente, carrega. A ser assim, o que se pretende induzir pela primazia dada ao pedagógico é que o político está na decisão e na acção dos educadores e professores e não nos princípios gerais que as enformam, sobretudo quando esses princípios consagram, explicitamente, essa orientação.
A partir daqui reenuncia-se, sob uma linguagem nova e com um outro alcance, o velho lugar comum de que sem o empenhamento dos profissionais da educação não há reforma possível. O "locus" do novo empenhamento está agora no terreno da própria acção pedagógica, onde é suposto que o móbil da acção seja o profissionalismo dos agentes educativos, o qual terá de reger-se não já pelos termos formais do Estatuto, mas segundo a lógica contratual dos interesses locais, encarada à luz dos preceitos pedagógicos. A primazia do pedagógico parece, então, corresponder à instauração de um ciclo de pureza na vida profissional dos professores, ao reconhecer-se-lhes o que foi invocado desde sempre como uma competência autónoma, especificamente profissional.
Só que tal ciclo de pureza é, agora, determinado pela maior das promiscuidades que a Escola jamais conheceu e no seio do qual toda a pureza desaparece. Basta ver a profusão de regulamentações, cada qual a mais minuciosamente elaborada, cujas características maiores são, precisamente, as preocupações de tipo processual que fixam desde competências, figuras, prazos e procedimentos, até fórmulas, diligências, excepções e omissões, num registo ansiosamente hierárquico, como se o pior dos riscos fosse o de não prever todos os comportamentos possíveis.
É nesta contradição de fundo entre uma autonomia pedagógica anunciada e uma prática intensamente regulada que se esvai a autonomia da Escola, cada vez mais identificada com cultura da liderança, termo este muito em voga, cuja recorrência mereceria alguma análise. Note-se que esta contradição é formal, isto é, inscreve-se na própria concepção do funcionamento do sistema e é, portanto, anterior à dinâmica das escolas e, como tal, actua na ordem da prevenção e condicionamento da própria acção dos actores, muito mais que na ordem da criatividade, da espontaneidade ou do compromisso emergentes da situação, a desenvolver num quadro de confiança e de colaboração colectiva. Compreende-se este excesso de produção regulativa à luz duma leitura social para a qual a Escola tem de ser um objecto plenamente administrado na ilusão de que, desta forma, se previne a conflitualidade, ao colocar "cada macaco no seu galho".... Não se espere daí, porém, um grande sopro de vida, um grão de loucura ou de pureza que anime a comunidade educativa. Essa há-de fugir sempre a todos os regulamentos internos, que, a crer nalguns testemunhos, correm o risco de vir a ser verdadeiros tabernáculos do conformismo militante...justamente, por força da cultura da liderança que se reforça à medida que conforma...

Manuel Matos
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação / Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 77
Ano 8, Fevereiro 1999

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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