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O músico

As duas foram criando uma amizade fácil num canto da salinha de professores. Unia-as muita coisa. A profissão e o grupo de Inglês. A idade, uma acabara de dobrar os quarenta, a outra estava quase a fazer o mesmo. Um casamento relativamente tardio ó não se percebia se por excesso de precaução ou por qualquer medo vindo da adolescência ó seguido de divórcio relativamente rápido. Num dos intervalos, no balcão do bar, haviam reconhecido que os homens em geral eram volúveis, e mais crianças a precisar de mãe que de mulher. Ora elas, para os homens, preferiam ser mais mulheres que mães.
Estas, e outras pequenas coisas da vida, haviam criado uma cumplicidade crescente. Por isso, às sextas-feiras, decidiram preencher os vazios da semana, saindo juntas para a 'noite'. Diziam uma à outra não querer agarrar nada, era mais para ver, quebrar a rotina. Também tinham dito uma à outra ó o que tantas dizem ó que os 'tipos', com algum interesse, ou estão casados ou são 'maricas'.
Naquela sexta-feira entraram no bar à hora do costume e como de costume. A Laura à frente a outra atrás. Como noutras noites procuraram o lugar disponível menos exposto, e pediram a bebida habitual, vodka com laranja. A conversa correu, como sempre, como a banda sonora que suporta o correr das imagens. Parecia uma noite de sexta-feira como as outras, mas não foi.
A outra sentiu depressa o alheamento da Laura. Nesta ia em crescendo uma certa agitação, dificilmente disfarçada, e a dificuldade em desviar o olhar do homem solitariamente sentado, três mesas à frente. O interesse vinha de o sentir estrangeiro, só, triste, um tanto desmazelado, aspecto de cachorro inofensivo e abandonado. E foi isso que a impressionou e confessou à outra.
E a conversa centrou-se ali, adivinhando-se facilmente o que se disse. O incentivo ligeiramente picante da outra. As resistências, desdéns e negações da Laura. E tudo isto sem que o homem fizesse fosse o que fosse que desfizesse o ar de cachorrinho abandonado. Foi isso que deu ânimo a Laura e a justificação necessária para a iniciativa de o convidar a juntar-se-lhes.
Americano. Com muitas deambulações pelo mundo. Músico. Mais propriamente, compositor e pianista. Um amante da música clássica, num tempo em que ninguém liga à cultura. Desiludido da vida. Amargo. Descrente dos homens e das instituições. Incompreendido. Por questões de princípio, e de cultura, incapaz de fazer cedências. Sem casa, sem trabalho, sem amigos e sem abrigo.
Que andaria perto dos cinquenta já elas tinham percebido. Laura bebeu-lhe as palavras e como nunca comoveu-se com tanta injustiça. Ofereceu-lhe abrigo temporário. Aceite sem entusiasmo, sem resistências como se fosse fatal que assim acontecesse.
A outra anda agora ainda mais sozinha sem sonhos de sexta-feira.
A Laura sobreocupada. Ele dorme a maior parte do tempo e no tempo que sobra pensa. Fala pouco. Ela compreende que pensar a música é muito absorvente e respeita-lhe religiosamente os silêncios. Comprou-lhe um piano usado, no qual ele ainda não tocou. Laura espera o momento mágico em que ele tocará só para ela. Também não tem escrito música e quando Laura, timidamente, lhe perguntou porque não compunha, ele respondeu que a falta de espectáculos e de perspectivas não o motiva.
A Laura multiplica-se em actividade. Descobrir o que ele gosta de comer e os corredores dos subsídios e apoios é uma tarefa desgastante. Mas a Laura não pára nem perde animo nem coragem.
Laura já escreveu a todas as entidades a quem é possível escrever para obter o reconhecimento do talento do seu músico. Sem resposta. Marcou entrevistas. Raros a receberam. Escreveu a presidentes de câmara e visitou vereadores da cultura. Nada adiantou ó falta de verbas. Recolheu informação junto de amigos sobre o melhor modo de agir. Meteu empenhos. Falou a empresários do espectáculo. Telefonou e escreveu a jornalistas. Mas, desgraçadamente, ninguém parece interessado no seu músico.
Mas a Laura parece mais nova, mais forte, decidida e livre. Esqueceu doenças e a reforma longínqua. E balança entre o eufórico e o zangado. Nos quatro cantos e no meio da salinha de professores fala constantemente aos colegas da falta de respeito pela cultura. E pergunta, a quem a quer ouvir, como se pode educar num país que ignora a música clássica. Agora a Laura é vigorosamente contra a corrupção, o compadrio, a injustiça, o poder, todo o poder. Lê sobre música, sobre cultura em geral, vive, grita, fala, já não faz de conta que fala, nem murmura.
Benditos sejam os cachorros inofensivos, tristes e abandonados. Bendito o amor.

José Paulo Serralheiro


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 71
Ano 7, Setembro 1998

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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