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Arroz e uma Pitada de Sal

Joaquim Castro em Siam Reap

'Quando voltei a ver de novo o meu país cairam-me lágrimas dos olhos de emoção', diz Luon Meng, um khmer de 35 anos que conheço numa embarcação a caminho de Siam Reap, porta da entrada para as mundialmente famosas ruínas de Angkor.

Em 1979, Luon, então com 19 anos, na companhia dos pais, imigra para os Estados Unidos após uma fuga espectacular ao regime de Pol Pot. Pela fronteira da Tailândia. 'A nossa fuga foi semelhante à que vem retratada no Killing Fields', conta. Viu o filme?, pergunta logo a seguir. Luon conheceu muita gente que perdeu a vida ao tentar palmilhar aquele caminho para a liberdade. 'Tínhamos de pisar nas pegadas uns dos outros. Um passo em falso e...'. Luon não completa a frase. Olha em frente. Para as águas barrentas do rio. Nem precisa de o fazer. Todos sabem o que significa o 'e...'. Que o digam as centenas de milhares de amputados, que após o fatídico dia em que puseram os pés no pedaço de terreno errado voltam a encarar o dia-a-dia apesar de todas as dificuldades.
Acolhido nas tendas da Cruz Vermelha, Luon esperou meses junto à fronteira, com a família, até que lhes fosse concedido o estatuto de refugiados políticos. Hoje, na posse de um passaporte americano, regressa ao Camboja para se casar. 'Com uma khmer, claro', afirma seguro de si. Encontrar esposa não foi difícil. Apenas trinta dias após a sua chegada, Luon está já de malas aviadas. Regressa aos EUA. 'Vou levá-la comigo', diz orgulhoso da nova companheira sentada a seu lado. Ela não fala uma palavra de inglês. Mas isso pouco importa. 'Possuímos uma pequena padaria; havemos de nos arranjar. Sempre é melhor do que a incerteza da vida, aqui, no Camboja', conclui. Os cambojanos, no estrangeiro, entreajudam-se. A sua integração no 'país da liberdade', como se imagina, não se faz da melhor maneira. Mas antes da América há que visitar primeiro Angkor, a glória da cultura khmer. 'Sabe, é a primeira vez que lá vou', confessa. À semelhança de Luon a maioria dos cambojanos nunca pôs os olhos nas fabulosas ruínas: talvez o mais rico e espectacular conjunto arquitectónico de todo o mundo. E, a manterem-se os elevados preços dos bilhetes de barco e a constante insegurança, a situação não vai mudar tão cedo. Já que o avião - meio de transporte utilizado por 90 por cento dos turistas estrangeiros que aí se deslocam em grupos organizados - está definitivamente fora do seu alcance. Quanto à via terrestre... Existe, mas o piso, quando desimpedido, não é o melhor. Para além disso, essa é a forma ideal de se fazer assassinar. Ou, na melhor das hipóteses, fazer-se assaltar. Pela guerrilha ou pelas dezenas de grupos de bandidos que pululam pelo país fora. Ou mesmo pelas forças governamentais, ao que se comprova, descontentes com os salários miseráveis que recebem. Conclusão: entre khmers rouges, malfeitores e o exército que venha o diabo e escolha.
'Na América, lavava pratos num restaurante', conta Luon sorrindo. Sentados no reduzido espaço do convés, deixamo-nos embalar pela corrida do barco nas águas serenas. 'Mas tudo é melhor do que Pol Pot', acaba por dizer. Adolescente ainda, Luon foi retirado da família. Com muitos outros rapazes e raparigas da sua idade. 'Amontoaram-nos nuns barracões, recorda. 'Todas as noites vinham buscar alguns de nós para serem executados'.
Luon conheceu os horrores da Tuol Sleng, a tristemente célebre escola secundária tornada no cárcere mais temido do regime maoísta. Hoje, chamam-lhe o museu 'dos horrores praticados pela clique de Pol Pot'. Daí, milhares de prisioneiros, depois de torturados, foram conduzidos para os campos de extermínio - os tristemente famosos killing fields. Meras valas comuns abertas a uma dezena de quilómetros da capital, onde se ergue hoje um memorial com centenas de caveiras e vestuário de vítimas. Tudo exposto por detrás de um vidro. 'Éramos escravos. Começávamos a trabalhar às 4 da madrugada e só parávamos à 1 da manhã do dia seguinte', continua Luon. Todas estas horas de esforço físico e humilhação em troca de um pouco de arroz. Metade dos prisioneiros morreram. Devido a maus tratos e, sobretudo, de fome. 'Construíamos muros para terraços de arroz. Durante anos e anos, a mesma coisa', recorda este khmer que quantas vezes fingiu doença para poder descansar. Tudo do colectivo e para o colectivo, essa era lei. 'À noite ia procurar comida na selva, às escondidas, diz. 'Mesmo que visse um peixe no rio não o podia pescar. Não estava autorizado a comê-lo, a cozinhá-lo'. Luon não compreende que um criminoso como Pol Pot continue ainda vivo. Que tenha estado refugiado tantos anos na Tailândia. País que, na sua opinião, 'apoia as actividades terroristas' dos khmers rouges. 'Os tailandeses são nossos inimigos', afirma. 'Querem apoderar-se da zona fronteiriça, onde há ouro e pedras preciosas'. Mas as ambições da Tailândia são mais vastas. Angkor, a pérola arquitectónica, 'não andará concerteza longe da sua mira'. Quanto aos 'inimigos vietnamitas' - apesar de terem morto muitos khmers e anexado parcelas do território fronteiriço - Luon acha que lhes tem de agradecer 'por nos terem ajudado a livrarmo-nos de Pol Pot'.
Luon parece agora contente com a sua vida. Quando voltar à América intenciona abrir uma pizzaria. A juntar à padaria familiar. 'É bom poder estar aqui, no meu país, e comprar toda a comida que desejo', acaba por dizer, lembrando a amargura das 'rações diárias de arroz e uma pitada de sal'.


  
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Edição:

N.º 65
Ano 7, Fevereiro 1998

Autoria:

Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista
Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista

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