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Thatcher ressuscitada

Reforma educativa em Espanha

Quando Margaret Thatcher se tornou primeiro-ministro da Grã-Bretanha, em 1979, consolidou passo a passo o que Roger Dale apropriadamente chamou “modernização conservadora” da Educação. Thatcher tinha sido ministra da Educação entre 1970-74, mas foi como primeiro-ministro que consolidou uma verdadeira revolução na forma de desenhar, implementar e gerir as políticas sociais, e em particular a política educativa.
A modernização conservadora combinou o back to basics (ênfase no conhecimento instrumental) como uma reação à ‘frivolidade’ igualitarista dos governos trabalhistas, com a construção de um sistema educativo completamente ao serviço do mercado de trabalho.
O governo de Thatcher estimulou a Technical and Vocational Education Initiative (TVEI) como mecanismo de incentivos para que um maior número de escolas secundárias orientassem a sua especialização para o currículo profissional, regulado pelas necessidades identificadas a partir do setor empresarial.
Por outro lado, apostou claramente em políticas de privatização da Educação, tanto exógenas como endógenas. Ou seja, favoreceu políticas que permitiram um maior acesso dos alunos mais desfavorecidos a escolas particulares – através do programa Assisted Places Scheme (APS) – e, acima de tudo, optou por políticas de liberalização, tanto da procura de educação (com maior liberdade de escolha), como da oferta educativa, através do sistema de Grant-mantained Schools, escolas com financiamento público, mas com autonomia de gestão e rigorosos mecanismos de prestação de contas.
A modernização conservadora caracterizou-se, assim, por uma combinação de ingredientes ideológicos neoconservadores e neoliberais – uma combinação contra natura como lembra Michael Apple. Um modelo capaz de compatibilizar elevados níveis de intervenção e controlo público (no currículo, na regulação pedagógica, na avaliação docente e na avaliação das escolas), com sistemas altamente liberalizados de gestão (escolha da escola, autonomia de gestão económica e pedagógica, externalização de serviços, etc.).

Vitória de Wert. Nos anos em que Thatcher estimulava a modernização conservadora na educação britânica, os países do sul da Europa, como Espanha ou Portugal, estavam, pela primeira vez na sua história, empenhados em construir uma educação de massas, com qualidade suficiente e abertura democrática para escapar ao obscurantismo das suas longas ditaduras.
Em Espanha, a batalha da política educativa situava-se na luta entre os setores que pretendiam acabar e os que queriam consolidar os privilégios do ensino privado, e em particular da Igreja Católica. A política educativa decidia-se entre as forças progressistas e as conservadoras, com pouca margem para abordagens liberais na gestão educativa, que não fossem a manutenção de uma suposta ‘liberdade de escolha’ (disponível apenas para os setores acomodados) e, sobretudo, a liberdade de criação de escolas. Em suma, um modelo liberal que não tinha nada de neo e era dirigido à legitimação dos privilégios derivados do caráter subsidiário da intervenção pública.
Durante esses anos, também não havia nenhuma obsessão para que fosse o Estado o garante do currículo ou de um qualquer back to basics. As tentativas de construir um sistema educativo mais orientado para o mercado, conforme definido na Ley General de la Educación (1970), foram pura retórica. Nunca se levou a cabo uma verdadeira política de modernização da formação profissional, nem foram estabelecidas as pontes necessárias para a reforma com o setor empresarial.
Só com a recente aprovação da nova reforma educativa do Partido Popular – LOMCE [Ley Orgánica para la Mejora de la Calidad de la Enseñanza], popularmente conhecida como Lei Wert, em ‘honra’ do ministro da Educação, José Ignacio Wert – se consegue adivinhar a chegada definitiva da modernização conservadora a Espanha.

Emulação do mercado. A nova reforma é efetivamente neoconservadora e neoliberal. A direita parece não se contentar em manter os privilégios das elites, mas procura intervir em todo o sistema, impondo mecanismos de mercado no acesso e gestão da educação e reforçando o papel regulador e avaliador do Estado para garantir a suposta qualidade do ensino.
Além da tensão territorial na Catalunha e das tentativas para desmantelar um modelo de imersão linguística que tem funcionado com sucesso ao longo dos últimos 30 anos, a LOMCE consolida sobretudo a modernização conservadora da Educação. A lei atribui um papel maior ao mercado, não só na provisão, mas também no planeamento educativo.
Pela primeira vez, Espanha terá uma lei orgânica que declara explicitamente a obrigação das autoridades públicas planearem com base no comportamento da procura. A mudança é significativa, porque até agora pensava-se que o Estado planificava com base no princípio da satisfação das necessidades educativas e que o sistema de acordos com os privados devia ser entendido como um mecanismo complementar e subsidiário à provisão do sistema público.
Mas esta não é a única medida pró-mercado da nova lei. O governo central levará a cabo avaliações padronizadas em todo o território espanhol e publicará os resultados para incentivar a competição entre as escolas. A LOMCE também abre a possibilidade da aplicação de fórmulas de financiamento das escolas com base nos resultados da avaliação em “ações de qualidade educativa”, definidas pelas escolas.
Com tudo isto, procura-se que o sistema educativo emule o funcionamento do mercado. A própria OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico] recomendou a não implementação destas políticas, porque não existem evidências de que favoreçam a eficácia da Escola e, ao contrário, aumentam a segregação e a estigmatização de certas escolas. As políticas de mercado favorecem a seleção negativa: criam incentivos às escolas para selecionar alunos de ambientes familiares mais favoráveis e facilitam a concentração dos alunos vulneráveis em certas escolas, geralmente públicas.

Mudança de objetivos. A segunda grande mudança que a lei incorpora é a tentativa de acabar com a abrangência do sistema. Uma das maiores conquistas da Ley Orgánica General del Sistema Educativo (LOGSE, 1990) foi acabar com o sistema de dupla titulação no final do Ensino Básico. Este sistema dava acesso a itinerários académicos e profissionais diferenciados.
A LOMCE, sem alterar a estrutura do sistema educativo, muda os objetivos e as funções desta etapa, ao mesmo tempo que pretende “flexibilizar” os percursos de aprendizagem para alcançar um quarto curso de Enseñanza Secundaria Obligatoria (ESO), completamente diferenciado em função do acesso à formação profissional ou ao bacharelato. A isto devem ser adicionadas as inúmeras provas a que os alunos vão ser sujeitos desde o Ensino Primário e que, sem dúvida, vão determinar a sua localização na hierarquia do conhecimento.
Por mais que o ministro distorça a realidade, garantindo que este é o modelo que funciona, a verdade é que as análises baseadas no PISA [Programme for International Student Assessment], realizadas pela própria OCDE, mostram que os sistemas mais diferenciados internamente estão longe de ser os de maior rendimento, e antes os mais desiguais. A segregação interna das escolas também anula o chamado efeito dos pares, isto é, o benefício educativo de misturar alunos com diferentes condições de aprendizagem.
Em suma, com a Lei Wert, o thatcherismo chega a Espanha. Para a direita, “nunca es tarde si la dicha es buena”.

Xavier Bonal


  
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Edição:

Edição N.º 202, série II
Inverno 2013

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