Da melancolia ao esboço de bases para um outro modo de existir quotidiano, alternativo às alternativas já consagradas. Inquietação do pensamento e ação no contratempo.
Vivemos, lembrando o que disse Weber, num mundo que se tornou uma verdadeira gaiola de aço, isto é, uma estrutura reificada que encerra os indivíduos em leis sistêmicas, como numa prisão. A quintessência da civilização ocidental tem sido a ação instrumental que molda inteiramente a vida social, sendo reflexo disso até mesmo o movimento das pessoas nas ruas: sem se ter a ‘regulação de espécie’ que tem o movimento das formigas vermelhas, a movimentação humana não é menos determinada do que a destas. Anda-se dum lado a outro, a correr contra o tempo, em meio a multidões (onde as pessoas tornam-se ‘invisíveis’), na busca de se atingir um fim calculado no interior da gaiola de aço. E mesmo assim, o paradoxo, a civilização ocidental é apresentada, insistentemente, como fiel depositária da autonomia de espírito. Em tal paisagem, talvez seja o recurso à ‘iluminação profana’ uma opção para transcender as sombras da reificação. Trata-se de recuperar uma percepção surrealista da vida, a ‘cauda do cometa’ como assinalou André Breton, que faz cintilar uma visão romântica alternativa do mundo. Posto isto, é necessário realçar, então, que o romantismo não é apenas uma escola literária do século XIX, mas uma das principais formas da cultua moderna. Como estrutura sensível e visão de mundo, ele se expressa em diversas, a exemplo da literatura, da poesia, da música, da filosofia, da historiografia, da antropologia, etc. Não se trata, evidentemente, como no antigo romantismo, da pregação a um regresso ao passado. Trata-se, isto sim, como bem faz notar Michael Löwy, de um desvio pelo passado em direção ao futuro. O desvio da tempestade do progresso, que choca o ‘anjo de Benjamin’; a recuperação de uma vida interior em que, à maneira de Baudelaire, a primavera ainda não perdera o seu perfume. A alegoria do devir: a estrela da manhã. Estrela caída, expressão do pensamento romântico, símbolo da insubmissão. O surrealismo, esta última cauda do cometa romântico, que faz a luz ser conhecida através de vias como a poesia e a liberdade. Melancolia perante a gaiola de aço. Porém, no quotidiano, os fios de uma outra ontologia. O que não quer dizer, claro está, crença numa teleologia absoluta, mas, de par com um certo pessimismo criativo e atuante, a ação no sentido de vislumbrar Sísifo feliz, pois, na ‘soma das contas’, este é ponto da questão. O vislumbre romântico-surrealista pode nos fazer ver, e bem, aquilo que Camus descortinou em «O Mito de Sísifo». O paradoxo da vida. Por vezes, boa parte dela é construída com todas as fichas sendo apostadas no futuro, mas sempre, e nessa regra não parece haver exceção, o futuro é o caminho que nos aproxima do fim, da morte. E assim as pessoas vivem como se não tivessem certeza que vão morrer. O absurdo vivencial, estranho lugar é o mundo. Desde que esse absurdo – com as suas conseqüências – é reconhecido, ele se torna uma das mais angustiantes de todas as paixões. Contudo, a contradição deve ser vivida. Sísifo empurra uma pedra de uma montanha até o seu topo, a pedra rola para baixo e ele então começa tudo novamente. Metáforas. No mundo da gaiola de aço, a reificação e a alienação agigantam-se às mais diversas esferas da vida social. O homem unidimensional referido por Marcuse. A banalização da estética como sendo apenas forma, sem apreço pela outra face que a constitui: o conteúdo. A letargia que pode ser apreendida no evidenciado por Goethe: assim, todos, juntos, continuavam a sua vida quotidiana, com ou sem reflexão; tudo parecia seguir o seu rumo habitual, como em situações extremas, nas quais tudo está em jogo, e a vida continua como se nada acontecesse. O vir a ser romântico-surrealista. Da melancolia ao esboço de bases para um outro modo de existir quotidiano, alternativo às alternativas já consagradas. Inquietação do pensamento e ação no contratempo. Alquimia alegórica da estrela da manhã.
Ivonaldo Leite
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