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Nos “cria que” e “pensava que” acontecem os “equivoquei-me”

Tínhamos por hábito com Alice Miller trocar ensaios e comentários sobre a mente das crianças e as suas formas de pensar.
Éramos poucos os que nos interessávamos em entender essa mente. O primeiro foi Sigmund Freud, os seus ensaios de 1905 sobre o que ele denominava as aberrações sexuais da criança; a seguir, a sua discípula Mélanie Klein, especialmente o seu texto “Inveja e Gratidão”, de 1957, traduzido luso-brasileiro em 1991. Textos que analisam a libido das crianças. Análise que passou a ser uma novidade no mundo médico.
Com Alice Miller estávamos mais interessados no entendimento da vida social dos mais novos, as suas formas de pensar e as suas relações com os adultos.
Não é por acaso que coloco essa imagem de um pai a ensinar o filho. O que ensina?
Formas de comportamento social: como se deve agir na inter-relação com os outros.
A imagem não fala, mas eu ouvi a conversação na análise dessa família. O filho tinha-se enganado na conversa com seus pares e, sem saber, tinha mentido. No seu imaginário pensava que o pai era o homem mais rico e melhor sucedido na vida. Ideia que causou inveja entre os seus amigos. Perguntaram aos seus adultos se eles tinham tanto dinheiro como o Pedro, pai do João. Os pais ripostaram que não era verdade, que ele ganhava como qualquer empreiteiro que trabalha para arquitetos. Comentaram, no entanto, que o Pedro era forte e trabalhador, fazia biscates em outras obras. Tinha crianças na escola, que cobrava matrícula, e havia livros para comprar, cadernos e lápis, o mínimo para usar na escola e fazer os deveres em casa.
Mal o Pedro soube que o seu filho espalhava uma notícia não verdadeira, chamou-o e perguntou-lhe se era simpático mentir aos seus amigos sobre a vida precária que eles levavam. O João, com nove anos de idade, ripostou: “Pai, como vejo que em casa não falta nada, compras-nos roupa, comida, tiras dinheiro com um cartão de uma caixa no banco... pensei que tinhas muito dinheiro”. O pai não se zangou: entendeu que o João não tinha experiência de trabalho, nem sabia do suor gasto para trazer mais dinheiro para casa, o cansaço que produzia trabalhar para os empreiteiros durante a semana, bem como em dias de festa e fins de semana, dias em que não podia partilhar com a família, porque tratava das avarias em casas de outros. O João acrescentou: “É isso, pai, como nunca estás em casa e andas sempre a trabalhar, pensei que a tua conta era grande”. O pai, convicto de que o filho não mentia, mas se enganava, disse-lhe uma frase que ele nunca mais ia esquecer:
– Joaninho, lembra-te desta frase: nos “cria que”, nos “pensava que”, acontecem os “equivoquei-me”. O teu pai trabalha muito para vos manter, é essa a realidade. Dura e nua. Não esqueças a frase! Deve servir-te para aprenderes a entender a realidade.

Raúl Iturra
lautaro@netcabo.pt


  
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Edição:

Edição N.º 199, série II
Inverno 2012

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