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Da política ao planeamento, um terreno de acção e lutas políticas

educação de adultos e ao longo da vida

Desenvolver uma oferta pública sem obrigatoriamente edificar um sistema público de Educação e Formação de Adultos (EFA) parece ter sido a opção quando, em 1999, se tratou de dar corpo ao S@ber +, Programa para o Desenvolvimento e Expansão da Educação e Formação de Adultos, 1999-2006. Essa orientação afastou-se das propostas programáticas desse texto e do Documento de Estratégia para o Desenvolvimento da Educação de Adultos. Uma Aposta Educativa na Participação de Todos (1998).

A recomendação de “uma oferta pública educativa para adultos” previa a criação de “um sistema autónomo e gradualmente “municipalizado””. Propunha-se uma estrutura assente em Unidades Locais de Educação de Adultos (ULEA), coordenadas por Organizadores Locais de Educação de Adultos, funcionando com base em Protocolos Locais de Apoio à Educação de Adultos celebrados com os municípios. A ULEA não teria como missão organizar directamente as actividades de EA, mas contratá-las com entidades formadoras; a organização directa deveria ocorrer apenas quando aquela contratualização não fosse possível. Era este o figurino previsto para a designada “oferta estatal educativa que facilite a recuperação escolar (até ao nível actual de “escolaridade obrigatória”)”, em que deveria “imperar uma “lógica de serviço público”, assegurando uma cobertura generalizada. Preconizava-se ainda, “para as restantes dimensões de EA”, uma “lógica de programa (…) com base num Fundo próprio” para um Programa de Apoio às Iniciativas de Desenvolvimento da Educação de Adultos.
O sistema delineado, quer no Documento de Estratégia, quer no S@ber +, organiza-se numa tripla dimensão: estrutura pública estatal de coordenação político-técnica; estrutura (de coordenação política ou político-consultiva) de participação alargada; estrutura técnico-pedagógica de desenvolvimento no terreno, tendencialmente não-estatal e de natureza dual, pública e privada. O Estado está presente educação de adultos e ao longo da vida através de: um pequeno núcleo político-técnico central; uma rede de agentes de coordenação local e regional, no quadro de entidades de participação alargada (aos níveis central, regional, local); um orçamento autónomo e estável. Anos depois, Alberto Melo, o principal rosto deste muito tardio e (des)esperado esforço de criação de um sistema e uma política públicos, globais e integrados de EFA como projecto de sociedade, afirmaria: “E, falando de tempo, gostava de recuar trinta anos (…) [quando] pela primeira vez, assumi algumas funções de responsabilidade no campo da educação de adultos. O que estava na mesa era então uma campanha de alfabetização, que se propunha erradicar o analfabetismo em três anos. Foi o meu primeiro choque, de certo modo, com uma lógica de planeamento contra aquela que sempre defendi e tenho procurado adoptar: uma lógica de política. Muitas vezes faz-se planeamento, porque não se quer, não se pode, ou não se sabe fazer política” [Educação e Formação de Adultos em Portugal como um Projecto de Sociedade, em «Políticas de educação/formação: estratégias e práticas », Conselho Nacional de Educação, 2007]
Assim, uma agenda política nacional para a EFA, globalmente estruturada, de matiz neoliberal, foi lançada a partir de 1999, com ritmos, andamentos e progressos irregulares até 2002 (e aos dias de hoje). A assimilação estratégica entre sectores e esferas públicos e privados foi mobilizada pelo Estado para o controlo centralizado do desenvolvimento de um programa de oferta pública de EFA, avançando os objectivos estatais da política e corroendo tradições, processos e procedimentos indesejados em vigor, quer no sector público estatal, quer no sector privado, cívico, solidário ou sócio-cultural. Neste percurso, coexistem: o mandato qualificacionista, compensatório e particularista, dados o atraso e a distância que separa o desenvolvimento educacional da sociedade portuguesa; ambivalências e especificidades que sugerem tratar-se de uma prioridade política sob compromisso limitado do Estado perante o direito dos adultos à educação; o desafio persistente no campo à dominação da orientação neoliberal, por parte de aspirações, comunidades interpretativas, actores, práticas e projectos. Sem dispor de estudos suficientes sobre a complexa situação actual, é possível no entanto sugerir que a ‘política’ ainda hoje disputa o campo ao ‘planeamento’.
Por um lado, observam-se prioridade e visibilidade políticas e investimento e promoção de mobilização social em torno da EFA (sob compromisso limitado) por parte do Estado. Por outro, também se vislumbram bloqueios, ambiguidades e fragilidades: as estruturas organizacionais criadas são precárias, coordenadas centralmente através de contratualização de serviços em regime de quase-mercado e promovendo a assimilação estratégica entre público e privado; as articulações e pontes para uma política global, polifacetada e integrada são frágeis ou inexistentes; o enraizamento local das acções e a participação em dinâmicas sócio-educacionais e/ou comunitárias são marginais, senão dificultados; as tensões entre qualificação/educação-formação e certificação/educação-formação tendem a desembocar no reforço das lógicas do primeiro termo, na instrumentalização do segundo e no recurso crescente à armadilha compensatória. Não obstante, podem revelar-se ainda desenvolvimentos que potenciem recursos favoráveis ao desenvolvimento da ‘política’: a actual dimensão de entidades, organismos, agentes e públicos envolvidos em educação e formação de adultos, e o apelo insistente à mobilização e ao compromisso com o propósito da qualificação/educação da população adulta criam condições susceptíveis de constituírem esta política pública e o Estado que a promove como espaços de acção e luta políticas com significado. Os cenários futuros que podem ser delineados sugerem quanto a distribuição de poderes se encontra desequilibrada e como se mostra decisivo insistir em mobilizar, conjugar e fortalecer movimentos, dinâmicas e colectivos sócioeducacionais susceptíveis de resistir, de experimentar e afirmar projectos, interesses e práticas que desafiam a consolidação da governação neoliberal.

REFERÊNCIAS

A compreensão das dinâmicas sócio-políticas e das realidades portuguesas em termos das tensões entre ‘política’ e ‘planeamento’ (e das relações entre Estado e sociedade civil) é proposta por Steve Stoer em «Educação, Estado e desenvolvimento em Portugal» [Livros Horizonte, 1982]

«Documento de estratégia para o desenvolvimento da educação de adultos. Uma aposta educativa na participação de todos» – Alberto Melo, Ana Maria Queirós, Augusto Santos Silva, Lucília Salgado, Luís Rothes, Mário Ribeiro [Ministério da Educação, 1998] «S@ber + Programa para o desenvolvimento e expansão da educação e formação de adultos, 1999-2006» – Alberto Melo, Lisete Matos, Olívia Santos Silva [ANEFA, 1999]

«Novas políticas de educação e formação de adultos» – Alberto Melo, Licínio C. Lima, Mariana Almeida [ANEFA, 2002] A educação de adultos em Portugal (1974-2004): entre as lógicas da educação popular e da gestão de recursos humanos – Licínio C. Lima, em «Educação e formação de adultos. Mutações e convergências», Rui Canário e Belmiro Cabrito (org.) [Educa, 2005]

Fátima Antunes


  
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Edição:

Edição N.º 194, série II
Outono 2011

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