Página  >  Edições  >  Edição N.º 191, série II  >  Comaprender

Comaprender

A Escola restringe oportunidades de aprender através de modelos de interacção que os jovens procuram quando estão fora dela. Talvez fosse de perguntar se a avidez pelas TIC não será compensatória da pobreza relacional que a Escola oferece e proporciona aos jovens. 

O conceito de “naturalização” é muito desafiador quando aplicado à Escola. Naturalização é o processo pelo qual formas específicas e locais de comportamento pessoal ou social se tornam tão habituais que se assumem como inquestionáveis ou “naturais”. As atitudes que nos fazem estranhar ou aceitar algo estão de tal forma assimiladas que não imaginamos que possam ser, racionalmente, feitas ou pensadas de outra maneira. Sendo uma construção social, a Escola construiu e naturalizou um grande número de práticas, que, de tão usadas e tão embutidas na nossa cultura, passaram de hábitos a certezas e de tradicionais a únicas possíveis de serem aceites. É natural, por exemplo, constituir turmas “homogéneas”, assim como é natural só aprender se se estiver sentado…
É enorme a lista destas práticas naturalizadas pela Escola. As relações entre os alunos e os professores foram também naturalizadas: por um lado, desvalorizou-se a interacção entre os alunos; por outro, valorizou-se a interacção do aluno individual com o professor. A Escola passou, assim, a organizar-se como se o processo de aprendizagem se devesse circunscrever à relação exclusiva entre o aluno e o professor. Referimo-nos, é claro, às situações em que se promovem aprendizagens, e não outros objectivos, considerados “acessórios”, como a socialização, a motivação, o debate de ideias, etc. Ficou cometido ao professor o papel de legitimador da comunicação e, frequentemente, o seu centro nevrálgico – Professor, posso dar um recado ao meu colega?
Pessoas que se rejam pelo senso comum – o que, por vezes, se chama “filosofia dos transportes públicos” – diriam que estes valores estão correctos, sobretudo, porque os jovens estão cada vez menos interessados na comunicação interpessoal e se refugiam nas tecnologias como exercícios solitários e de fuga ostensiva à escola.
Nada mais errado. Evoco o estudo feito há 3 anos sobre a geração electrónica – EGeneration: os usos de média pelas crianças e jovens em Portugal (CIES-ISCTE, Lisboa) –, que investiga, entre outros aspectos, como os jovens que foram educados já no mundo das TIC estabelecem as suas interacções usando essas mesmas tecnologias de informação e comunicação. E as conclusões são muito interessantes:

– cerca de 80% dos jovens internautas inquiridos comunicam e pedem ajuda aos colegas, em chats ou noutras formas de comunicação online, e perto de 1/4 contactam os professores;

– uma das principais utilizações sociais da rede é a interacção e comunicação, ainda que mediada, com os pares que os jovens conhecem da escola e de outros contextos;

– as actividades mais populares na rede são receber mensagens de correio electrónico, consultar bibliotecas, enciclopédias, dicionários e atlas ou procurar informação relacionada com os estudos;

– mais de 80% manifestam clara preferência em comunicar com pessoas que conhecem de outros locais e, em especial, da escola.

Afinal a e-generation está receptiva e mesmo ávida de interacção! Mesmo quando usam as tecnologias, os jovens procuram grupos, colegas, professores e contactos, de forma a fortalecerem a sua interacção.
Perante este tão manifesto desejo de interacção, o que faz a Escola? Naturalizando práticas do século XIX, desenvolve a sua actividade como se uma classe não fosse mais do que um agrupamento de personalidades e individualidades que respondessem perante o professor. Desta forma, é mitigada e desvalorizada a possibilidade de aprendizagem em cooperação, que os jovens tanto prezam e quase obsessivamente procuram em contextos extra-escolares.
Muitos professores têm informação e experiência reduzida sobre como trabalhar com grupos de forma sistemática e organizada. É certo que a naturalização deste anacronismo – a interacção com o professor é boa e com os colegas é supérflua – é difícil de superar. Mas também é certo que, se a interacção e o conhecimento continuarem a repousar no papel de super-conhecedor e de super-comunicador que o professor interpreta na educação tradicional, não seremos capazes de reformar a Escola para educar eficaz e correctamente.
Isto é, seremos incapazes de promover uma educação de qualidade. Claro que este pensamento tem a ver com a Educação Inclusiva: a inclusão de todos os alunos – todos singulares e alguns com notórias dificuldades de aprendizagem em turmas regulares – só será possível e útil para todos se forem criadas na classe e na escola oportunidades em que todos possam dar e receber ajuda, todos possam trocar ideias, todos possam aprender juntos para aprender melhor.
Por analogia com a palavra compreender, que significa “prender conjuntamente”, propomos o neologismo comaprender – é uma excelente palavra, porque faz uma pergunta e, simultaneamente, dá a resposta: como aprender? aprendendo conjuntamente, cooperativamente.
É isso!

David Rodrigues


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

Autoria:

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo