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Olhares e funções

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: Me ajuda a olhar!

De novo pensando as leituras nas escolas, invoco o poeta Eduardo Galeano (O livro dos abraços).
Olhar e ver o que é imenso, sabendo que não dá para ver tudo, que o real não é esgotável pelo conhecimento. Olhar e ver o que já chega editado, limitado, banalizado, deixando até de sugerir a presença da dimensão simbólica. Como pensar o “ajudar a olhar” na Escola?
Ajudar a olhar não pode se confundir com dizer ao outro o que se supõe esteja lá. A discussão do que se vê não é simples. Implica uma multiplicidade de questões como o fantasma do olhar cultural, nas suas relações com lugares sociais e posições assumidas. Heinz von Foerster [Visión y conocimiento: disfunciones de segundo orden] discute a cegueira epistemológica inevitável, destacando que nossa retina está sujeita a um controle central, o que exige que, para ver, acreditemos no que vemos. É a inversão da máxima atribuída a São Tomé – ver para crer – em “crer para ver”. Em outra direção, Pierre Bourdieu [Sobre a televisão] aborda a produção de um efeito de real na TV: “fazer ver e fazer crer no que faz ver”.
Em outras palavras, o gesto de olhar é, no mínimo, uma via de mão dupla, atravessando o sujeito que olha e o objeto olhado, em condições singulares. Nem é preciso trazer para esta conversa configurações textuais mais complexas. Tomemos uma foto em notícia de jornal [aqui reproduzida]. Sua legenda poderia ser: pelo buraco, querendo ver.
O que há para ser visto é um menino, com a camiseta do Brasil (versão camelô), olhando por um buraco, já por sugestão da legenda. A imagem, sozinha, pode ser ainda mais plural. O movimento de contextualizá-la, por sua vez, pode sustentar a produção de leituras que, sem negar a dimensão imaginária, remetam à simbólica.
A foto foi publicada na primeira página do jornal «O Globo», em 08.06.2006, duas semanas antes das oitavas-de-final da Copa da Alemanha. O menino vestido de “pra frente Brasil” não espiava um treino secreto da seleção brasileira. Logo acima, a manchete: “Tiroteio fere 17 crianças em escola”. Logo abaixo, a legenda real: “O menino espia a escola, em Inhaúma, por um dos buracos deixados pelos tiros”. Assim, em meio a outras possibilidades, a posição de destaque da imagem não pode ser desvinculada da invasão da violência ao espaço escolar, até então sagrado, inviolável.
O menino olha pelo buraco que a bala deixou bem na altura do seu olho. O outro, mais alto, não lhe serve para espiar. Penso em como ficamos diante das frestas ou rombos inacessíveis do lugar de onde olhamos. Um banco talvez nos permita espiar. Ainda assim, resta a dúvida acerca de podermos ver o que o menino espia. Corremos o risco de nem saber o que ele vê e até de dizer a ele o que há para ver, perdendo a chance da parceria no exercício do olhar, deixando que a polissemia degenere na paráfrase imposta pelas nossas visões ditas corretas.
Uma função da escola é ajudar a ler os textos em seus contextos; dar espaço para a pluralidade de olhares assumidos; dimensionar as condições de produção dos textos e das suas leituras. Portanto, desde a primeira vez, uma função imensa como o mar do poema.

Raquel Goulart Barreto


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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