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Tecnologias, jogos e (des)encantos

As Olimpíadas (as Para olimpíadas também) foram um show de tecnologias. Como Paulo Serralheiro havia anunciado na edição de agosto/setembro, a transmissão de todos os eventos, com câmeras que captavam diferentes ângulos, levou os Jogos de Pequim para o mundo de forma mais "viva" do que até então.
Na dúvida, havia o recurso à gravação. Quem não se lembra da prova em que a chegada do grande campeão Michael Phelps gerou dúvidas sanadas pela disponibilização extraordinária do vídeo com o momento exato da batida de mão? Também houve episódios em que o recurso à tecnologia parece não ter evitado interpretações discutíveis por juízes de artes marciais, como no judô. Afinal, para que a tecnologia possa dar conta de um "tira-teima", é preciso que o esporte em questão seja marcado pela exatidão de tempo, distância, altura, etc..
Em Pequim, na cerimônia de abertura, tecnologias velhas e novas foram aliadas a um elenco de milhares de pessoas dirigidas por Zhang Yimou. O espetáculo, impressionante, não deixou de ter certo ar "fake", posteriormente aprofundado pela notícia de que o play back permitira colocar a melhor voz em menina mais bonita do que sua dona. Mas, pensando a produção cinematográfica como recurso para enganar o olho, a conjugação funcionou lindamente. Houve ainda momentos, como o da celebração da imprensa através dos blocos ondulantes que representavam os tipos móveis na geração de caracteres, em que a perfeita sincronia produzida pelos seres humanos foi posta no centro da apresentação. Ao se mostrarem, após formar a palavra Kè ("harmonia"), aquelas pessoas arrancaram aplausos ainda mais entusiásticos. Naquele ponto, era a ausência de tecnologia que agregava valor maior ao espetáculo.
Também houve muitas discussões acerca da colocação de várias tecnologias a serviço da quebra de recordes. Da arquitetura das piscinas, projetadas para minimizar a ação das ondas, aos maiôs IZR ou LZR, produzidos para aumentar a velocidade dentro delas, a influência foi tanta que o jornal O Globo (13/08/2008) chegou a trazer como manchete do caderno de esportes a indagação: "Doping tecnológico?"
Assim, falar de tecnologias e jogos é lidar com dois processos de (des)encantamento: o que é introduzido para interferir no resultado e o que é assumido para aferi-lo com precisão. O primeiro tem sido objeto de discussões mais acaloradas no que diz respeito à sua legitimidade. O segundo tem sido cada vez mais difundido como recurso para garantir resultados justos.
No tênis, por exemplo, há o hawk-eye ("olho de águia"), que corresponde ao processamento computadorizado, em tempo real, de imagens captadas por câmeras de alta precisão, de modo a definir com exatidão milimétrica posição e trajetória da bola. O tenista pode apelar para este "desafio" três vezes ou mais por set, a depender de ter ou não razão nas reclamações feitas. De qualquer modo, o recurso não impede olhares desconfiados de alguns tenistas, quando se sentem prejudicados pelas medições milimétricas.
No futebol, a discussão do uso desta tecnologia tem girado em torno das decisões referentes à linha de gol: a bola a teria ultrapassado completamente? Outras dúvidas devem permanecer fora da esfera tecnológica: o atacante estava ou não impedido? Foi mesmo pênalti? A expulsão foi justa ou a falta não era para tanto?
De qualquer modo, enquanto a FIFA discute os limites da utilização de tecnologias na arbitragem futebolística, é importante pensar nas suas relações com justiça e paixão. Para que nenhum time seja "roubado", quantas interrupções e retomadas marcariam o fluxo do tempo nos estádios? E, na saída, o ritual, que costuma incluir discussões entre um chope e outro, estaria circunscrito às questões técnicas e táticas e àquele espaço de interpretação dos "dados" gerados. Futebol com resultado (razoavelmente) justo, sem direito a muita reclamação e xingamento do árbitro? Não soa assim "desapaixonante", como uma espécie de tecnologia para o desencanto?

Raquel Goulart Barreto


  
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Edição:

N.º 183
Ano 17, Novembro 2008

Autoria:

Raquel Goulart Barreto
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ
Raquel Goulart Barreto
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ

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