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Educação e Formação de Adultos - Valores de educabilidade social

O presente texto procura assinalar algumas inquietações natureza ético-pedagógica, tentando perspectivar as dinâmicas de educação e formação de adultos à luz do que entendemos dever ser uma «antropologia da educabilidade humana» subordinada a um paradigma de reconhecimento e valorização da alteridade, mais do que da «identidade», esse substantivo que, de modo algo paradoxal, tende a comportar-se como um verbo no plano histórico da realização pessoal e social, como mostrou o autor de «Ser e Tempo», Martin Heidegger. Situando, pois, esta reflexão no horizonte conceptual do que podemos chamar «éticas da alteridade», partimos da convicção de que existe uma relação original e originária entre «educabilidade e laço social» ligada a esse misterioso jogo de «transferência de forças» que se dá na relação intersubjectiva, como evidencia o filósofo português José Gil a propósito de «Portugal hoje, o medo de existir» (2004).
Diz-se com frequência que «aprendemos até morrer», traduzindo assim a constatação empírica de que, quer queiramos quer não, estamos sempre em processo de evolução, inapelávelmente contaminados pela exterioridade. Mas se somos perfectíveis somos também educáveis, isto é, susceptíveis de beneficiar da influência de outros e de marcar esse processo de devir histórico com uma intencionalidade, impedindo que a aprendizagem aconteça de forma aleatória e inconsequente, qual vida abandonada à fatalidade de um destino. Julgamos que é precisamente aqui, na arte de despertar o desejo de aprender, mantendo viva a intenção de ser autor e narrador da sua própria história em cenários de solidariedade, que reside o grande desafio da educação ao longo da vida numa perspectiva de pedagogia social, concretamente no plano de acção que agora nos ocupa, o da educação e formação de adultos.
No quadro de uma sociedade educativa iluminada por valores de cidadania solidária, os processos intencionais de formação ao longo da vida, «na e com a vida», requerem a existência de cenários de educação plurais e diversos, totalmente incompatíveis com os formatos tradicionais de resposta colectiva. Interpretada numa lógica neo-liberal, esta exigência tende a justificar uma espécie de «mercado livre de educação» assente na procura individual, como se tudo dependesse da capacidade electiva e performativa de sujeitos isolados, senhores de vontades bem definidas e desde sempre desejosos de aprender. Bastará então organizar uma boa oferta formativa, apoiada numa rede eficaz de angariadores aptos no arrolamento de interesses e expectativas. Este tipo de crença antropológica pode igualmente ser encontrada do lado de um certo populismo romântico, em boa medida tributário Ivan Illich, segundo o qual teríamos em situação ideal uma sociedade liberta dos «muros institucionais», vitalizada por uma imensa teia de equipamentos sociais acessíveis a todos os cidadãos e permanentemente disponíveis em regime de «self-service».
Convencidos da possibilidade de realização temporal de todas as pessoas, enquanto sujeitos capazes de desejo, de ruptura e hospitalidade subjectiva, é sobretudo no plano da «construção de procura» de mais e melhor formação que situamos o desafio de educabilidade social, chamando aqui a atenção par ao lugar da «mediação de aprendizagem» no quadro mais vasto da mediação social. A aprendizagem de relação com a alteridade do tempo não acontece de forma automática, ela carece de enquadramento, de mediação pedagógica e de labor humano. Por esta razão, os processos de «reconhecimento e valorização das competências adquiridas ao longo da vida» perderão toda a sua virtualidade socio-antropológica se ficarem confinados a uma racionalidade técnica, apoiada em dispositivos de certificação e validação meramente formal. Dessa forma, acabaremos por agravar o fenómeno que pretendemos combater, obscurecendo e perpetuando os problemas de insucesso escolar e social. Muitas das práticas relacionais ditas de atendimento e acolhimento inseridas neste esforço de reconhecimento e validação de «adquiridos» merecem uma apurada vigilância ética. Referimo-nos, por exemplo, à apetência metodológica por modelos de relação educacional invasivos e, tantas vezes, conducentes à exposição despudorada de «biografias involuntárias». Não se trata de «fazer questão de conhecer as histórias individuais», indagando «a todo o custo», sobre razões de intimidade pessoal mas sim de promover condições para a expressão livre e autónoma. O imperativo ético ligado à experiência fundacional de enlaçamento humano ? à ligação do próximo com o seu próximo ? repousa no respeito por uma distância ontológica essencial, irredutível ao tipo de proximidade física e emocional que suporta as redes sociais primárias ou aos esquemas de aproximação que são hoje característicos das redes secundárias no quadro de alegadas «políticas de reconhecimento e proximidade». Por mais equipamentos ou «guichets» que coloquemos «perto» dos cidadãos e dos seus contextos de vida, em versão fixa ou móvel como acontece hoje com certos «autocarros de proximidade», enquanto nos mantivermos prisioneiros de lógicas de acção divorciadas desse sentido ético primordial, não conseguiremos atingir as metas de realização antropológica e de socialização solidária anunciadas.
Equacionada no plano pluridimensional de uma aprendizagem social, a mediação pedagógica pressupõe: a) reconhecimento da relação orgânica entre educação, vida e solidariedade; b) promoção contínua de processos de mediação de aprendizagem, diferenciados nos tempos, nos lugares e nos modos; c) garantia histórica de igualdade no acesso permanente a oportunidades de formação; d) valorização da dimensão relacional da aprendizagem segundo princípios éticos de hospitalidade cívica, cultural, geracional e profissional. Neste sentido, e explorando linhas de intersecção entre a pedagogia escolar e a pedagogia social, assume particular relevância a especificidade de uma mediação atenta à textura da vida comunitária e à singularidade de percursos pessoais, de forma a promover condições de emergência, e de perseverança, das vontades de aprender que, ao longo da vida, abrem caminhos para lá do mundo herdado, conhecido e amado. Em termos de desenvolvimento de identidades, o sentimento de autoctonia, de enraizamento e pertença comunitária, deve caminhar a par do desejo de alteridade Para isso, precisamos de experiências de ruptura educativa que permitam «sair do comum», aprendendo a gramática e a aritmética que nos torna aptos a entrar em sintonia com um mundo que começa, mas não acaba, na nossa casa, no nosso bairro ou na nossa cidade.

Isabel Baptista


  
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Edição:

N.º 182
Ano 17, Outubro 2008

Autoria:

Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto
Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto

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