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Presença de Sintra na obra literária de Vergílio Ferreira

De longe, permanece sempre a memória da paisagem serrana rude e agreste ou do manto diáfano de neve em dias de invernia, porque as serras da Estrela e Nave ou os lugares míticos de Melo, Folgosinho e Gouveia percorrem de forma solene tantas páginas comovidas da obra do autor de Para Sempre. Mas outras paisagens e lugares também comparecem no fio dos anos e em nome da terra, como Évora, Coimbra, Guarda ou Lisboa. Mas é sobretudo no silêncio de Fontanelas e noutras paragens de Sintra que, numa espécie de festim e de alegria, se regista essa longa presença das águas encapeladas que correram por muitos frios Invernos, para nos fazer lembrar as origens serranas e os diferentes lugares que atravessam a criação literária de Vergílio Ferreira, num trajecto que teve mais de cinquenta anos às voltas com os segredos da escrita.
Ao longo das páginas de diário de Conta-Corrente inúmeras se revelam as referências a Fontanelas e outros sítios de Sintra como ponto de reencontro ou de sossego para concluir leituras e trabalhos literários, retomar a escrita de romances e histórias cruzadas de outras histórias na inspiração do mar, do sol e da paisagem, que por estes lugares nunca deixou de estar presente desde que se radicou em Lisboa em 1960 e em Fontanelas encontrou o lugar de paz e tranquilidade para a criação das suas obras e assim escapar do bulício da capital, cidade com que se relacionou muito pouco em quase quarenta anos de permanência até a morte chegar em Março triste de 1996, pouco depois de ter cumprido oitenta anos. vida.

Fontanelas 2.Outubro.1977 - Amanhã regressamos a Lisboa. E toda a melancolia
do fim me vibra neste dia de sol. Voltarão as aulas, a insolência dos
moços, o aturdimento de Lisboa. No espaço da janela aberta sobre a
mata olho pela última vez a minha serenidade do Verão. Vejo-o ainda
brilhar nos pinheiros dourados de luz, ouço-o no murmúrio dormente
do vento. E tudo é subitamente longínquo como uma praia deserta.
Tarde de Outono, tarde de fim. O Verão acabou. Está sol1

Sabemos que foram muitos os trabalhos literários que concluiu em Fontanelas, mas registamos que só dois dos seus romances foram aqui concluídos: Para Sempre (5.Maio.1982) e Na Tua Face (22.Março.1993). Mas a acção desse admirável romance que é Nítido Nulo (1971) decorre no Magoito, de que aliás Vergílio Ferreira deu a sua explicação:
Magoito 23.Julho.1977 - Depois fomos ver o mar ao Magoito e filosofar sobre
o mar. É ali que se passa o meu Nítido Nulo: a casa da guarda-fiscal
funciona de prisão no romance. Diante do mar, como diante de
qualquer espectáculo da Natureza, o comentário é feito quase só com
interjeições. Mas lá reflecti que é o espectáculo mais monótono e mais
fascinante. E pensei que há milhões de anos é assim. Obscuramente
prolongámos a nossa vida até esses milhões. E sentimo-nos menos
efémeros. É, aliás, uma das razões por que se cultiva a História
passar a alegria que puderem

Além de Fontanelas, muitos são os registos sobre Praia das Maçãs, Praia Grande, Azenhas do Mar ou Praia da Aguda, como confirmação de que nas horas de ócio e descontracção sempre estão presentes estas paragens, que ganham importância pela força e verdade de serem de facto uma presença constante nas anotações de Conta-Corrente:

Praia das Maçãs 21.Setembro.1981. - A Regina e eu fomos depois do almoço
o à Praia das Maçãs tomar o café e olhar o mar. Praia quase deserta
A armação de algumas barracas agrupadas a um lado. Os panos
listrados de azul já arrumados. Um ou outro banhista ainda despido
por exemplarismo ou falta de resignação. O mar com uma cor já fria
de inverno e muito batido de espuma da ondulação. Sentamo-nos na
esplanada do café, ao sol7

Praia Grande 22. Novembro.1983 - Ontem de tarde fomos ver os desastres da cheia
aqui ao pé. Do Rodísio para a Praia Grande há uma ponte com um
pilar sobre uma ribeira seca durante quase todo o ano. Com a
enchente, a ribeira inchou pavorosamente e levou a ponte adiante
ontem inundava todo o areal numa maré de água turva. Havia
almofadas vermelhas a boiarem, talvez de automóveis, muros
derrubados, canos rebentados ou postos à mostra nas ruas. Na grande
adega de Colares os tonéis sem vinho boiavam leves e ficaram
trancados contra as portas que eram estreitas para darem passagem.

Azenhas do Mar 3.Setembro.1982 - Mas de toda a nossa tarde na casa das Azenhas
sobre o mar, foi o mar que uma vez mais me deslumbrou de
fascinação. Havia sol, as águas alargavam-se até a um horizonte
de neblina, as ondas quebravam num rolar manso e dormente sobre
a breve areia da praia. Cerro os olhos ainda agora, ao cintilar da
planura, ao largo rumor marinho, todo aberto ao seu aceno de
infinitude.

Praia da Aguda 7.Julho.1983. - Vamos até ao desvio para a praia da Aguda
que é a praia propriamente de Fontanelas, lá no fundo das arribas.
A estrada é quase deserta. Mas de longe em longe há uma vivenda
isolada de persianas corridas, decerto sem ninguém. É a descer e
portanto pouco depois a subir. Dobrada uma curva, verifico que a praia
ainda é longe. E desistimos de mais aventura. Num dos campos da berma,
há uma queimada com homens a controlar. Com o vento que sopra,
pensamos logo em incêndio provável. Transmitimos aos homens os
nossos receios, eles sorriem como familiares do destino.

É difícil traçar todo o périplo percorrido por Sintra nos muitos anos de cansaço e sossego, de reflexão e escrita, porque todas essas paragens admiráveis serviram como pano de fundo à obra vergiliana em muitos anos, sobretudo a partir de Nítido Nulo e sem se esquecer que grande parte de Até ao Fim (1987) decorre em Fontanelas e nas Azenhas do Mar, na imagem da Capela de São Mamede tão presente nos seus passeios e deambulações e relembrada na conta-corrente:
Capela de São Mamede 27.Maio.1983 - Aproveitámos para excursionar até São Mamede que
tem uma capela num alto donde se vê o mar. E foi um deambular lento, de olhos abismados na verdura dos campos, nas flores silvestres
à beira da estrada. (...) Divagámos até ao alto de São Mamede. Nas
margens da estrada e no meio dos campos visíveis havia maciços
rubros de papoilas, manchas amarelas de malmequeres. De um
eucalipto novo colhi um ramo de que esmaguei na mão algumas
folhas para o seu perfume me penetrar6

Ou ainda por sítios como Galamares, Peninha, Cabo da Roca ou Almoçageme, nem sempre de preferência, em momentos de convívio a que Vergílio Ferreira nunca por nunca se recusou, ao contrário de se dizer que foi um homem isolado ou demasiado fechado na sua concha:
Galamares 10.Agosto.1977 - À tarde tínhamos ido a Galamares, a casa dos Serpa Branco. Em frente, a serra de Sintra. Nítida, verdejante ao sol. De vez em quando, passavam nuvens em correria, vindas do mar. A casa fica no meio de um pequeno jardim com uma pelouse de relva verde, aparada rente. Luz suave, e a cor, e uma flutuação aérea de tudo1

Peninha 27.Agosto.1977 - Anteontem fizemos uma excursão à Peninha. Ao alto, uma capela (séc. XVIII?) com azulejos, incrustações de mármore, uma sepultura de 1726 (?). E inscrições a toda a roda, algumas de mil e
setecentos, com o apelo para depois da morte - e que se ouviu. Fora, o espaço aberto para todo o lado. Mas breve vieram do mar cavalgadas de nuvens. Víamo-las passar em correria, transfigurar a paisagem em legenda e fantástico. Estar ali uns dias. É bom na imaginação. Ouvir a voz das origens, espraiar de nós o que em nós se reprime. Dilatarmo-
-nos a uma obscura dimensão cósmica. Sermos mais do que nós.

Cabo da Roca
1.Julho.1979 - Hoje acordámos sob um grande nevoeiro. É raro um
nevoeiro cá em cima. Os pinheiros da mata apagam-se dentro da neblina, ouve-se ao longe, no Cabo da Roca, a "ronca" de aviso à
navegação. Não há vento, os pinheiros imobilizam-se na névoa como
espectros. Silêncio. Nem uma ave se ouve. E irresistivelmente lembro- me de um mundo nos começos da génese, antes de um ser vivo surgir
à sua face. E então, mais evidente, assola-me o absurdo de um
universo sem razão, sem sequer um ser pensante que o fizesse existir.

Almoçageme
18.Junho.1979 - (...) aconteceu que se pôs a mesa numa varanda com um toldo alaranjado, com vistas para a aldeia de Almoçageme, a um lado, entrevista entre pinheiros com a sua geometria cezaniana de paredes brancas e telhados vermelhos, e em frente, num entreluzir de
sol, aberto ao infinito, o mar. E este instantâneo ficou em mim e
perdura como uma aparição de beleza e de reconciliação connosco
por sobre tudo quanto oprime e é cansaço e negação. Tanto se teoriza
sobre o mal ou o bem da vida. A depressão. O pessimismo. Um pedaço
de sol e mar ilumina e lava a noite mais sombria até aos confins da
sua sombra.24

Por vezes, sim, proclamou que não tinha biografia, mas guardava saudades da infância, talvez por ter sido bem triste e cheia de sombras de que muito falou em Conta-Corrente, ou nos seus romances, e a todo o instante a memória se ergue como absoluta celebração desse passado vivido e sofrido e os clamores mais profundos das origens ou vozes de um grave silêncio se levantam como farol de uma caminhada que foi longa e teve muitos sobressaltos. Ou ainda no registo dos muitos amigos que por Fontanelas passaram em tardes de longas conversas e de alguma má-língua literária. E foi nesse modo de conviver descontraído que o autor de Aparição encontrou a razão de ser para assim não deixar de registar as suas impressões de Fontanelas e quase sempre nos dias de Verão, na presença de pinheiros, o cantar dos pássaros ou a imensidão do mar.
Por último, a referência que se impõe no modo de falar acerca de
Sintra de uma forma directa e objectiva:

Sintra é o mais belo adeus da Europa quando enfim encontra o mar.
Camões o soube quando os seus navegadores a fixaram como a última
memória da terra, antes de não verem mais que "mar e céu". E no
entanto, ou por isso, o espaço que ela nos abre não é o da infinitude
mas o do que a limita a um envolvimento de repouso. Alguém a trouxe
de um paraíso perdido ou de uma ilha dos amores para uma
serenidade de amar. Ela é assim o refúgio de nós próprios e de todo o
excesso que nos agride ou ameaça

Serafim Ferreira


  
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Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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