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Pedagogias, competências e mediações: da competency-based training ao projecto Tuning

Competência é uma noção vaga e fluida, polifacetada, assumindo sentidos diversos decorrentes dos usos múltiplos de que é objecto nas duas esferas em que tem vindo a ganhar espaço e relevo: o mundo da educação/formação e o universo do trabalho.
Canário refere dois autores que, em 1993, recensearam 120 definições de competência, o que é suficiente para mostrar a polissemia do termo. Em todo o caso, apesar de serem sempre mencionadas diversas concepções de competência(s), a referência à acção em situação tende a ser uma constante, mesmo que muitas outras dimensões variem. É, então, apontado que [as competências] "não podem ser dotadas de universalidade e existir independentemente dos sujeitos e dos contextos" .
A noção de competência tem sido usada para designar: desempenhos em situação e de tarefas específicas; saberes/aprendizagens experienciais; mediação entre conhecimento e acção. Tem aparecido ainda associada a: construção e desenvolvimento de competências; o reconhecimento, validação e avaliação de competências.
O movimento e o debate sobre modelos de educação/formação baseada em competências têm percorrido sinuosos caminhos ao longo destas quase seis décadas de desenvolvimento. As questões colocadas são díspares, têm sofrido as marcas dos contextos político-sociais e as respostas estão também longe de serem unívocas.
No início, nos longínquos (e tão próximos) anos cinquenta, os pressupostos e procedimentos adoptados para a construção de dispositivos de formação de competências foram claramente marcados por concepções inspiradas na psicologia comportamentalista, procurando racionalizar, padronizar e medir os resultados da formação e tomando a visibilidade dos mesmos como indicador de pertinência. Neste quadro, como tem sido amplamente reconhecido, a competência, definida nos estritos limites do resultado de aprendizagem observável e padronizado, assume um pendor normativo, prescrevendo o resultado da formação, estruturando-a e finalizando-a.
As críticas são também conhecidas e sublinham que o resultado/comportamento observável: não permite compreender a aprendizagem e muito menos actuar sobre ela; ignora os diferentes saberes que lhe estão associados; subvaloriza os aspectos cognitivos, interaccionais, emocionais, contextuais, políticos e sociais.
Deve, no entanto, ser realçado que o campo do debate e das práticas de educação/formação baseada em competências é bastante mais plural e rico do que o do movimento de institucionalização de reformas, sistemas e modelos de ensino assentes em competências, que ressurgiu nos anos oitenta e, em diversos ritmos e formas, tem vindo a percorrer as latitudes do planeta. No último caso predominam as orientações mais próximas dos modelos de aprendizagem inspirados na psicologia comportamentalista e em pedagogias preocupadas mais com o valor performativo do que formativo do conhecimento e da aprendizagem e com a racionalização e padronização da formação. As duas últimas operações constituem aliás requisitos importantes para potenciar quer o ingresso da educação em relações de troca mercantis, quer a sua maximização como instrumento de controlo social.
Aquelas orientações e pedagogias constituem a principal tendência a alimentar o modelo educativo que ambiciona posicionar-se como dominante ou hegemónico no âmbito mundial, protagonizada por governos de países centrais na geopolítica do poder e apoiada por organizações internacionais e outros poderosos actores situados no arco da governação do mundo. Aquela tem-se revelado também a versão mais influente, mas não a única, de organização da educação segundo princípios alternativos à centração sobre a transmissão de conhecimentos, formalizados e organizados em corpos disciplinares. Outras propostas conceptuais e outras práticas se têm posicionado neste campo, propostas e práticas essas que levam a sério a essencial questão, já clássica, sobre a mediação entre conhecimento e acção a que a noção de competência e os dispositivos de formação nela baseados procuram responder. De modos divergentes, como procuro argumentar. Algumas daquelas propostas têm defendido uma concepção de competência enquanto praxis, articulando teoria e prática, conhecimentos científicos e saberes tácitos a experiências de vida e laborais. A definição anacrónica de competência, focalizada no fazer e no desempenho na tarefa, é desqualificada face às exigências colocadas à acção individual e colectiva nos actuais contextos complexos de actuação na vida quotidiana e de trabalho: a heterogeneidade cultural e social das situações de interacção; a impregnação da tecnologia, seus artefactos e universos, nas nossas vidas pessoais e profissionais; a intensa troca de informação, imagens e mensagens que atravessam os nossos mundos vivenciais são apenas alguns dos exemplos ilustrativos dessa superior exigência de acção reflexivamente orientada e teoricamente informada colocada a todos os sujeitos.
A complexidade, a imprevisibilidade, a incerteza que atravessam as nossas existências constituem, por isso, outras tantas interpelações que apelam ao ensaio e à construção de respostas de educação que capacitem para agir reflexivamente; para esta capacitação, a prática como mera actividade é insuficiente porque fonte de um conhecimento imanente ao sentido das situações concretas; a teoria é também limitada porque constitui uma interpretação provisória e parcial da realidade num dado tempo e espaço. A questão é então das articulações entre teoria-prática e conhecimento e acção que os processos pedagógicos podem promover, dado o seu carácter mediador. Neste sentido, estamos perante uma questão de método recolocada pelas competências, enquanto constructo regulador da educação/formação.
Acácia Kuenzer, por exemplo, enfrenta esta discussão propondo um projecto político-pedagógico que leve a sério o problema metodológico como uma das principais lacunas de diversos modelos de formação incapazes de responder à questão das relações entre conhecimento científico e saberes tácitos; defende assim uma atenção cuidada à mediação pedagógica como componente central capaz de propiciar essas vias de articulação teoria-prática. Nesta proposta, estamos então nos antípodas da versão da noção de competência focalizada nos resultados de aprendizagem e/ou desempenhos de tarefas; isto porque a centralidade atribuída à mediação e aos processos pedagógicos, às questões metodológicas ensaia construir as respostas em torno das mediações na busca de capacitação da acção enquanto praxis.
Ocorre-me que, por exemplo, a formação em alternância característica da profissão médica dever(i)á continuar a inspirar-nos e a alertar-nos para procuras dificilmente compagináveis com a mera sobreposição de tempos e espaços conducente por arrastamento à fragmentação do pensamento e da acção.
Agora que, no quadro do Processo de Bolonha, constructos como resultados de aprendizagem e competências ameaçam agigantar-se como reguladores da formação no ensino superior; agora que, por estes dias (12 e 13 de Junho de 2008), se realiza a segunda Conferência de Disseminação do, actualmente central, projecto Tuning (curiosa e assaz irónica designação), onde estarão as vontades capazes de avançar princípios e modelos alternativos e relacionais de construção curricular que disputem o império de modelos únicos e absolutos?
Ainda incrédulos, alguns de nós, estudantes-praticantes de pedagogia no ensino superior, temos vindo a assistir à exibição de intervenientes que postulam o deserto do património pedagógico anterior; avançam, no momento seguinte, para isolar, desse património não-reconhecido nem compreendido, fragmentos que usam e encaixam num puzzle manipulado ao sabor de fins e interesses, mas também ignorâncias, não confessadas. A valorização da aprendizagem baseada na experiência, a pedagogia do projecto, a ênfase metodológica constituem percursos centenários de pedagogias propostas por Dewey (1916), Kilpatrick (1918), Freinet (anos 20) e o Movimento da Escola Moderna (MEM) que realiza um congresso anual em Portugal e está activo em muitos outros países. Eis algumas das referências, ostensivamente ignoradas, fragmentadas e anacronicamente descontextualizadas, de propostas de ensino-aprendizagem que se assumem como novidades porque deliberadamente negam os fundamentos e as finalidades que animam as pedagogias e as abordagens metodológicas que na verdade recriam, não raro em sentidos opostos aos caminhos originariamente propostos.
O chamado paradigma de Bolonha tem múltiplas faces; algumas delas avançam determinadamente agora através da disseminação de resultados do projecto Tuning. Como no movimento e debate sobre as competências, o mais importante decorre das questões e das respostas que estão a ser colocadas à volta de: processos e/ou resultados de aprendizagem; valor formativo e/ou performativo do conhecimento; teoria e/ou prática; conhecimento e/ou acção. São estes os termos de equações que elaboramos ou de dicotomias que administramos?


Nesta discussão apoio-me em diversos trabalhos: CANÁRIO, Rui (1999). Educação de Adultos. Um Campo e uma Problemática. Lisboa: Educa; KUENZER, Acácia Zenaide (2003). Competência como práxis: os dilemas da relação entre teoria e prática na educação dos trabalhadores. Boletim Técnico do SENAC. Senac, Brasil. In http://www.senac.br/BTS/291/boltec291b.htm (consultado em 11 Fevereiro 2008). PIRES, Ana L. (2005). Educação e Formação ao Longo da Vida: Análise Crítica dos Sistemas e Dispositivos de Reconhecimento e Validação de Aprendizagens e de Competências. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e Tecnologia/MCTES; STOER, Stephen R. & MAGALHÃES, António M. (2005). A Diferença Somos Nós. A Gestão da Mudança Social e as Políticas Educativas e Sociais. Porto: Afrontamento.
Fátima Antunes

  
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Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

Fátima Antunes
Univ. do Minho
Fátima Antunes
Univ. do Minho

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