Susan Robertson é professora da Graduate School of Education da Universidade de Bristol na área da Sociologia da Educação e coordenadora do Centro para a Globalização, Educação e Sociedades, o primeiro do seu género no Reino Unido. Em parceria com o seu colega Roger Dale (também ele professor da Universidade de Bristol e a quem a Página teve a oportunidade de entrevistar no número de Dezembro) fundou a revista Globalização, Sociedades e Educação. Os seus interesses enquanto investigadora cobrem áreas tão distintas como a globalização, a regionalização, as políticas educativas, a economia do conhecimento e as transformações da actividade profissional dos professores. Neste sentido, o seu trabalho actual incide sobretudo nos efeitos da globalização e da regionalização nos sistemas educativos e nos centros de produção de conhecimento, em particular no que se refere aos vários acordos globais (como a Organização Mundial do Comércio) e regionais (como a União Europeia e a NAFTA) e à criação do Espaço Europeu da Educação como parte integrante da estratégia competitiva da UE face à economia do conhecimento. Autora de numerosos livros e artigos em diversas publicações internacionais, Susan Robertson escreve regularmente no nosso jornal na rubrica "Reconfigurações", em parceria com Roger Dale e António Magalhães, professor da Universidade do Porto. Aproveitando a sua visita ao Porto, a PÁGINA entrevistou esta investigadora e questionou-a, entre outros temas, sobre o papel da escola e dos professores na construção da chamada "economia do conhecimento", que gradualmente está a substituir o paradigma económico vigente.
Um dos seus temas de pesquisa debruça-se sobre a chamada economia do conhecimento. Como definiria este conceito e que tipo de desenvolvimentos têm ocorrido nesta área nos anos mais recentes?
Eu penso que é seguro afirmar que a economia sempre esteve dependente do conhecimento. Neste sentido, penso que é pertinente questionarmo-nos porque razão se aborda actualmente de forma tão frequente nos círculos políticos a ascensão daquilo que se poderá designar como economia baseada no conhecimento. Na minha opinião, penso que tem havido alguns desenvolvimentos interessantes no campo económico na sua generalidade. O acentuar da ideia do conhecimento e a sua ligação à economia sugere que existe algo na forma como as economias procuram ser produtivas e gerar mais valia sobre o conhecimento em si mesmo ? como é o exemplo das técnicas de descodificação genética e dos desenvolvimentos nas áreas de aplicação biológica. É este tipo de conhecimento que nos últimos anos tem assumido uma particular importância nas economias ocidentais.
Quem está na origem da criação deste novo tipo de economia?
Penso que é importante reflectir sobre o que está no centro desta economia baseada no conhecimento. Eu vou chamar-lhe um imaginário económico, isto é, uma forma de pensar a organização económica e o que poderá constituir um impulso para novas formas de produção e de novas formas de gerar valor. Antigamente fabricava-se um produto e vendia-se no mercado. Mas cada vez mais as economias baseadas no conhecimento oferecem serviços altamente especializados e de grande valor acrescentado em diferentes áreas do conhecimento, gerando patentes e direitos de autor, aquilo que habitualmente se designa por propriedade intelectual. É aqui que as economias ocidentais irão basear o seu crescimento económico, não na produção de bens, que países como a China e a Índia irão produzir a baixo custo. Isto reflecte-se na própria estrutura da Organização Mundial do Comércio (OMC) - e não apenas nos acordos gerais sobre a produção de bens, que estará sobretudo orientada para os países em desenvolvimento - através da qual os países desenvolvidos têm procurado liberalizar o sector dos serviços a nível mundial de forma a proporcionar novas ofertas na área financeira, dos transportes e, mais recentemente, na área da educação, através da progressiva liberalização da OMC e do Acordo para a Propriedade Intelectual no Comércio. São acordos nos quais os países desenvolvidos estão a investir bastante do seu poder de negociação e do qual saberão certamente tirar partido. O processo de acumulação de riqueza a longo prazo das economias desenvolvidas advirá sobretudo deste processo.
A União Europeia quer assumir o papel de economia mais competitiva baseada no conhecimento. Quais são as propostas da União Europeia neste campo no sentido de atingir este objectivo? E qual é a sua opinião sobre elas?
Em 2000, a Agenda de Lisboa, através do Conselho Europeu e da Comissão Europeia, definiu precisamente que os diversos estados-membros da UE precisavam de adoptar uma postura mais agressiva no sentido de posicionar a Europa como uma região mais competitiva, em particular face aos Estados Unidos, mas também ao Japão, e, mais recentemente, face à China e à Índia. Sobre as propostas políticas e educativas nesta área, a Comissão Europeia considera que os estados-membros, por eles próprios, não são capazes de avançar isoladamente, tendo de haver, por isso, uma agenda ao nível supranacional e não apenas nacional. Mas verificamos que esse tipo de agenda política, que incide na criação de mais empregos, melhor crescimento, altos níveis de inovação na economia, é problemático em alguns sentidos, particularmente na educação, porque formar pessoas para estes objectivos, nomeadamente no que se refere à reorganização do ensino superior, implica interferir com a autonomia de cada um dos países. O avanço deste projecto a nível europeu, da ideia da importância de ser competitivo e de desenvolver a Europa como uma economia baseada no conhecimento, implica tanto a urgência de reformas no mercado de trabalho como nos sistemas educativos. Mas este processo é melindroso porque envolve a negociação em áreas habitualmente consideradas da alçada governativa de cada país.
Tem seguido a forma como cada país tem lidado com esta matéria? Existem diferenças substanciais na forma como o fazem?
Todos os países membros da UE, provavelmente sem excepção, afirmam que estão a procurar desenvolver economias baseadas no conhecimento. Mas o trabalho que tenho vindo a realizar como elemento de uma rede de especialistas que aconselha a Comissão Europeia em educação e políticas sociais, através do qual tive oportunidade de ter um olhar cruzado sobre as realidades de cada um dos países, demonstra-me que, embora apostem no discurso, o nível de implementação, nomeadamente no que se refere às universidades e às políticas com elas relacionadas, nomeadamente a estratégias de inovação, modernização das escolas ou na implementação de tecnologias digitais, há vastas diferenças entre cada um deles.
De que forma se pode ultrapassar essas diferenças?
De alguma forma apostando na Europa como um espaço que permita a mobilidade laboral e de estudo. Mas é muito difícil, porque o que tem de se ultrapassar é muitas vezes o facto de as pessoas terem família, raízes e identidade em determinados lugares.
Considera que existem países que estejam a funcionar como pontas avançadas deste processo?
Talvez, mas penso que é sobretudo a Comissão Europeia que terá de assumir esse papel. Nos relatórios intermédios de 2003 e 2004, comissariado pelo ex-primeiro-ministro holandês Wim Kok, este responsável apelava, aliás, a um incremento deste processo. Podemos dizer que países como o Reino Unido, que avançaram a nível interno com a modernização do ensino superior, parecem estar na vanguarda deste processo. Mas na Europa isso por vezes é problemático, porque para países como a França e a Alemanha isto representa, muitas vezes, como que um projecto anglo-saxónico, associado a uma "americanização" e a um liberalismo que a Europa continental nem sempre aprecia. E isto cria problemas no projecto europeu em termos mais gerais, apanhado em antigas diferenças ideológicas e de alinhamentos.
As escolas e os sistemas educativos estão a ser encorajados no sentido de acompanharem estas exigências e dar-lhes uma resposta adequada. De que forma está o conflito entre a velha e a nova escola a ser encarado?
Se olharmos para as políticas da Comissão Europeia destinadas tanto a procurar responder na prática aos desafios postos pela economia baseada no conhecimento como a criar as bases para gerar esse tipo de economia, o argumento avançado por países como o Reino Unido, por exemplo, é que as escolas, e inclusivamente o actual formato organizativo das universidades, atingiram o seu prazo de validade. Isto é, eram instituições úteis para a velha modelo de economia fordista, de produção em massa, mas não para economias baseadas nos serviços ou para a promoção de indivíduos mais criativos. Para isso, afirmam, as escolas precisam de ser modernizadas. E este é um argumento que tem também vindo a ser avançado pela OCDE e pelo Banco Mundial, que nas suas próprias estratégias de conhecimento para o desenvolvimento incorporam, entre outros, indicadores e tabelas de comparação entre os diferentes países.
E como está a escola a lidar com esta questão?
Eu penso que a primeira reacção visível dos sistemas educativos, e esta resposta não é igual em todos os países, é o aparecimento de novas parcerias público-privado ? como o caso da Microsoft, por exemplo, que tem um contrato com o governo português no sentido de equipar de novas tecnologias as escolas, que são, por sua vez, convidadas a integrar painéis de avaliação. No caso do Reino Unido esta parceria chega mesmo ao ponto de se estabelecerem contratos com empresas privadas que asseguram a construção de escolas, no sentido de reduzir os custos do Estado. No entanto, é comum estas empresas abandonarem estas parcerias quando elas não se revelam suficientemente lucrativas ou serem compradas por outras empresas. Esta agenda modernizadora procura ao mesmo tempo actualizar a gestão das escolas, associando o ensino aos fundamentos da economia globalizada.
Tendo em conta que alguns países estão mais avançados neste processo, isso significa que existirá sempre uma Europa a várias velocidades?
Absolutamente. E vemos nas políticas da União Europeia um reconhecimento desse facto, isto é, políticas que estão a ser dirigidas para o que podemos considerar uma elite das políticas da economia do conhecimento e, por outro lado, um conjunto de políticas para a Europa social, destinadas a integrar os indivíduos no mercado de trabalho mas numa base extremamente precária. As pessoas são responsáveis pelo seu próprio trabalho, mas, em boa verdade, não estamos a falar propriamente dos mesmos níveis salariais que são praticados nos trajectos profissionais ligados à economia do conhecimento? E essas diferentes velocidades têm lugar não só através da Europa mas no interior de cada um dos estados-membros da UE, pelo que, à excepção dos países escandinavos, os níveis de desigualdade associados às políticas neoliberais que estão a ser postas em prática, não só na maioria dos países europeus mas também no espaço económico europeu, têm aumentado.
E no que se refere ao conflito de interesses entre os valores tradicionais da educação e os valores inerentes à economia e às empresas? De que forma pode cada um cumprir o seu papel sem colidir com os respectivos interesses?
Eu penso que a um determinado nível existe um grande conflito de interesses, mas há, ao mesmo tempo, o reconhecimento desse conflito de interesses. A prioridade dada à economia tem estado associada frequentemente a expensas de formas de solidariedade e coesão social. Este é um debate que tem estado na agenda da definição das políticas, tanto a nível europeu como a nível interno de cada país. Actualmente, no Reino Unido, temos um programa de financiamento a cinco anos que pretende desenvolver oportunidades de aprendizagem na área da economia do conhecimento, mas procurando entender a relação entre a coesão social e a competitividade económica. Ou seja, existe o reconhecimento de que é necessário lidar com esta dualidade, porque, em particular no nosso país, temos assistido à exclusão de determinadas franjas da sociedade da participação na economia, o que inevitavelmente conduz a instabilidade social. E, fundamentalmente, o capitalismo precisa de estabilidade para se desenvolver.
Em que papel se colocam as escolas?
As escolas colocam-se numa posição difícil, porque historicamente sempre fizeram mais do que produzirem trabalhadores para a economia. As escolas sempre foram instituições de modernidade, associadas aos Estados nacionais e à construção de uma identidade nacional, e apesar de não se poder considerá-las como um instrumento de construção de igualdade social, elas sempre foram locais mais democráticos e permitiam alguma mobilidade social. Quando à educação se procura associar prioridades económicas, funções importantes como estas passam em grande medida para segundo plano. Se as escolas forem competitivas em termos económicos, as famílias tendem a desenhar estratégias que permitam assegurar aos seus filhos a melhor formação para o melhor emprego, e isso exclui desse processo a maior parte das famílias e indivíduos. E a minha impressão é que, em geral, as escolas não estão a conseguir lidar bem com este processo.
Há algum país que considere um exemplo?
A Finlândia é o exemplo de um país que é habitualmente considerado como tendo sido bem sucedido nesta área. O que caracteriza a Finlândia é o facto de, pelo menos até recentemente, ter sido muito homogéneo na sua identidade nacional e ter sido capaz de gerar riqueza e distribui-la equitativamente. Os países onde as populações excluídas estão habitualmente associadas a grupos étnicos, pelo contrário, foram menos bem sucedidos em incorporar esses indivíduos na economia e na sociedade.
Qual é o papel dos professores nesta transformação permanente?
Eu diria que os professores, assim como os sindicatos, foram simplesmente excluídos deste tipo de debate. Em muitos países os professores e os sindicatos têm sido muito pressionados, silenciados e até afastados da participação no processo de definição das políticas. A Internacional da Educação, que é um sindicato de dimensão mundial, é talvez a única entidade que tem participado neste tipo de discussão, pelo menos a nível do Acordo Geral para o Comércio de Serviços. A minha opinião é de que há algo de muito sedutor no termo "conhecimento" que facilmente passa ao lado de uma interrogação crítica, exceptuando talvez os próprios professores e as organizações sindicais. Quando afirmamos que vivemos numa economia baseada no conhecimento, quem se pode mostrar contra este argumento? Um professor, por exemplo, dirá que é a sua área de actuação? Este tipo de discurso substituiu o do neoliberalismo. Mas não se pense que deixou de ser um projecto neoliberal, porque ainda é. Este projecto de construção de uma economia baseada no conhecimento é sinónimo de uma progressiva liberalização da economia mundial, moldando tanto as instituições como os indivíduos no sentido de estes participarem na criação de novo conhecimento. Usa-se a linguagem do progresso, como desescolarização e reescolarização, que os professores reconhecem como o tipo de críticas que os radicais, como Ivan Iilich, avançavam na década de 70 no sentido de modernizar a educação. Mas ele queria outra coisa. O tipo de discurso usado na década de 70 por radicais como Ivan Ilich, que pretendiam modernizar a educação no sentido da igualdade social e da promoção da democracia, foi apropriado pelos economistas e decisores políticos e inserido num projecto que, não sendo conservador, porque de facto é radical, está profundamente empenhado em construir um novo tipo de economia, menos preocupado com a igualdade de oportunidades mas antes em criar as condições para que os indivíduos participem na produção de uma economia baseada no conhecimento e desempenhem o seu papel individual nesse processo.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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