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Contexto dos estudos biográficos e memorialisticos

A reflexão sobre os estudos da memória na formação docente não foge da realidade cultural e teórico-metodológica em que eles foram elaborados. Além disso, hoje, com a chamada crise de identidade e o fim das ideologias, essa reflexão coloca o sujeito como eixo do discurso, com o direito de reconstituir-se pela narrativa, a partir de lembrar quem ele é.
Por outro lado, é preciso reconhecer que o próprio género memorialistico e autobiográfico tem sido abalado, e até "esquecido", em certos momentos e que, por vezes, tem sido mais importante achar o sentido da própria vida por meio da biografia de outros do que saber detalhes de vidas alheias.
O homem já deixou de ser o centro não só do universo, mas também dele mesmo. O Eu abalado (Freud, 1989) levou a repensar o género autobiográfico nessa perspectiva, tanto que hoje ele pode ser abalado, segundo Fukuyama, na luta humana pelo reconhecimento "Os seres humanos, com sua memória, conhecimento e enorme aptidão para o raciocínio abstrato, são capazes de conduzir as luta pelo reconhecimento para ideologias, crenças religiosas, cargos em universidades, prêmios Nobel e uma miríade de outras honrarias." (Fukuyama, 2003, p. 57)
Este autor nos lembra que, além das problemáticas da sociedade moderna ególatra, somos interpelados pela sociedade pós-humana, produzida no laboratório, o que poderia influir na memória dos sujeitos imersos na cultura do reconhecimento, da depressão, do esquecimento do sujeito e do medo de esquecer ou de não esquecer, o que gera a impossibilidade de articular presente, passado e futuro. É, portanto, uma situação complexa, já que envolve mais do que se pode saber e refletir a respeito, pois o sujeito chegou ao terceiro milênio mudo, debilitado e procurando dar algum sentido à sua existência para continuar produzindo e produzindo-se. Paulo Freire é um educador que ajuda, ao longo de suas obras, a dizer que gente é processo e exige o trabalho interativo de autoconhecimento para o qual é necessário voltar-se para o passado. (Freire, 1994, p. 11)
O novo tempo se gera no velho e impõe aos seres humanos uma nova leitura de mundo (Freire, 1997, 1993, 1997b). Pronunciar, dizer, escrever como tempo de acontecimento é um direito que o sujeito pode exercer. Pode dizer-se que o professor escreve ou publica pouco; são os professores-pesquisadores da educação superior que promovem as rememorações das experiências para escrevê-las e/ou trabalhá-las em sala de aula. Deles é exigida a elaboração do memorial para o concurso de ingresso à docência superior. Na formação superior e nos concursos para professores, a realização do memorial, com destaque para a escrita sobre si mesmo, é hoje quase mais importante que os títulos, porém ainda se percebe um resíduo não dito em relação à vontade ideológica que sustenta essa importância.
Esses conhecimentos e o auto-conhecimento são uma tendência explícita que está crescendo nas pesquisas (Josso, 2004; Nóvoa, 1995, 1992; Vieira, 1999). Os estudos biográficos, autobiográficos e memorialísticos proliferam na formação do professor, especialmente nos finais da década de 80, depois de décadas de silêncio na América Latina. Embora se possa dizer que os docentes ficaram mudos, eles voltaram (os que voltaram) do processo autoritário sem capacidade para contar (Benjamin, 1994). Mas, não demorou muito tempo para surgirem a resistência, a negociação e a elaboração das rememorações e da denúncia. As lembranças foram se organizando, se contando e se tornando memórias sustentadas em experiência conservadas, que legitimaram os relatos, que se tornaram história.
Um novo contexto social foi tramado a partir do Nunca Mais (1984), que reivindica o acto de lembrar em prol da verdade que ajude a fazer justiça às vítimas; da Política do Perdão (Lefrac, 2002; Luskin, 2002), que busca restituições, com finalidade política, e pelo acto de lembrar e esquecer, procura promover que as vítimas perdoem os torturadores com a intenção de reconstruir os laços sociais e manter a paz. A partir da cultura judaico?cristã, a sociedade é interpelada com insistência e há motivo para essa insistência pois, "o motivo da insistência sobre o dever de perdoar é, obviamente, que "eles não sabem o que fazem", e não se aplica ao caso extremo do crime e do mal intencional? (Arendt, 1981, p. 251)
Há um substrato ideológico que impregna a cultura da memória e que envolve também a teoria da antecipação, a ação preventiva e a comunidade democrática ilusória, com pensamentos, idéias, políticas, fato e feitos desenvolvidos e fortalecidos pelo actual governo americano. Nessa ideologia, a ética instrumental e a moral transacional de mercadorias interessam mais que a ética emancipadora da humanidade chegando até o extremo de se viver num mundo onde se mata em prol da democracia global, e verdadeiros delitos contra a humanidade são perpetrados por meio de medidas preventivas sustentadas teórica e legalmente. Todas essas questões, por sua vez, se tornarão conteúdos a serem ensinados e/ou aprendidos.
O método autobiográfico é uma tendência em crescimento nas pesquisas educacionais e ajuda a sistematizar esses conhecimentos e até a compreender mais do que a biografia, ou seja, os processos de subjetivação e sentido que nascem do movimento gerado a partir da cultura da memória e da formação neste terceiro milénio.

Margarita Victoria Gómez


  
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Edição:

N.º 175
Ano 17, Fevereiro 2008

Autoria:

Margarita Victoria Gómez
Universidade Vale Rio Verde Minas Gerais
Margarita Victoria Gómez
Universidade Vale Rio Verde Minas Gerais

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