Rosas que falam
A fala acima aconteceu após meu primeiro encontro com uma turma em meu novo trabalho. E refere-se à prova de aula pela qual passei para ser aprovada em um concurso. A empolgação da aluna pelo encontro e a lembrança daquele dia serviram de alimento para a minha alma. O tema da prova foi "A função social, política, cultural e pedagógica das instituições educativas" e a participação dos alunos, superando em número a banca examinadora, levou vida para uma avaliação que decidiria um destino. Em "Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa" (1996), Paulo Freire fala da importância de que o educando se perceba como um ser social e histórico: ele não está sozinho no mundo e faz história com sua presença. Pelo menos na minha história aquele grupo de meninos e meninas foi fundamental. O olhar de cada um, atento ao que era exposto, tinha relação direta com minha fala: a função da escola ? instituição à qual minha exposição se ateve? é a de valorizar a vida presente em cada canto: o que ocorre dentro dos muros se mistura com o que se passa lá fora e é inevitável que seja assim. Affonso Romano de Sant'Anna[1] fala com muita ternura sobre a vida nas escolas. Na crônica "Porta de Colégio" questiona o que será daqueles alunos em dez ou vinte anos. A imaginação do autor revela que porta de colégio "parece a porta da vida", e cria um "futuro" para cada um deles. Sant'Anna nos mostra como olhar para dentro das escolas, como perceber que em cada ser ali presente, conversando, comprando balas, ou apenas olhando o movimento, há uma energia capaz de mudar vidas. Cazuza[2], ídolo da geração dos anos 80, em sua canção "Ideologia" (1988), afirma que "aquele garoto que ia mudar o mundo, agora assiste a tudo de cima do muro". Pude ver naqueles olhares durante a minha prova, um desejo de mudar o mundo. Cabe a nós não deixarmos nossos alunos subirem no muro ou, então, precisamos fazê-los descer para que não se conformem com o que os incomoda, liberando a força que há dentro deles para criarem uma nova ordem, se necessário. Práticas que ainda vemos em muitas escolas valorizam conteúdos e rejeitam a vida. Alunos são reprovados em língua portuguesa, por exemplo, mas compõem letras de música, escrevem poemas e falam de questões da sua geração. Essa escola ainda reprovaria pessoas como Cartola[3], pois ele não disse nada que ninguém soubesse: rosas não falam mesmo. O óbvio não "interessa" à escola. O reencontro com aqueles jovens que assistiram à minha prova e que agora são meus alunos, reforça a minha convicção de que é preciso ouvi-los e conhecê-los. E a cada dia que passa, percebo que essas rosas falam e muito, mas lembrando que para isso, é preciso dar voz a elas.
Referências:
- FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
- SANT'ANNA, Affonso Romano de. Porta de Colégio in Introdução à Sociologia. Ática: São Paulo, 2004.
[1] Poeta, ensaísta, cronista e professor, nascido em Minas Gerais. [2] Agenor de Miranda Araújo Neto, nascido na cidade do Rio de Janeiro, líder da banda de rock "Barão Vermelho", sucesso nos anos de 1980. Conhecido como "o poeta da geração anos 80", faleceu em 1990, aos 32 anos. Mais informações em www.cazuza.com.br . [3] Angenor de Oliveira, sambista e poeta, um dos criadores da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, no Rio de Janeiro. Compositor da canção "As Rosas não Falam", entre outras, Cartola teve uma origem humilde, não tendo sequer completado os estudos (sua escolaridade regular não passou do 1º segmento do Ensino Fundamental). Mais informações em www.cartola.org.br, página do Centro Cultural Cartola na internet.
Adriana Maria Loureiro
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