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Investigação-acção e responsabilidade social

Em Investigação-Acção, agindo-se reflexivamente sobre a realidade, para a sua transformação, num determinado sentido e intencionalidade, resulta no crescimento interactivo dos sujeitos singulares e dos colectivos que contextualizam essa interacção.  Lugar privilegiado de experimentação social é, assim, um espaço exemplar de "bricolage epistemológica". Mas também de emergência de conflito sócio-cognitivo que acolhe um conjunto de problemáticas que lhe são centrais (ainda quando, pela tentação de uma leitura mais simplista, lhe possam parecer periféricas): a questão da comunicação e da linguagem; a dupla ruptura epistemológica, o senso comum esclarecido e a condição dialógica; a questão do sujeito e da relação sujeito/objecto; a escala a que se investiga, intervindo; a incompletude e a exterioridade, no âmbito de uma "hermenêutica diatópica"[1]
Espaço de afirmação mais epistemológico do que metodológico - já que, à luz do cânone positivista, resulta em incomodidade epistemológica, uma vez que se consente em constructo ambíguo e híbrido, num espaço de cruzamentos disciplinares - a Investigação-Acção revê-se num quadro praxiológico que reconhece e acolhe a implicação, não descurando o papel do distanciamento, enquanto correctivo dialéctico da pertença; se move na imprevisibilidade e na incerteza; se revê na complexidade, dispensando-se de uma simplificação arbitrária objectualizante. 
Aqui se desenha a questão central da comunicação a augurar a reabilitação da relação eu-tu no lugar que tem sido da antinomia sujeito/objecto, num desafio ao cruzamento do que pode parecer antagónico: a dimensão utópica inerente à não conformação com o curso do mundo; e a dimensão pragmática, ligada à preocupação com as consequências das coisas, fazendo-se, no plano da construção do conhecimento, o percurso do embate com as consequências para a identificação e confronto com as causas - no que se investe numa visão da prática como totalidade, por recusa da sua redução à resolução do imediato. 
O percurso das consequências para as causas expressa a ilegitimidade da obliteração da dimensão teleológica da produção científica, hoje eticamente insustentável, não apenas se nos reportarmos a condições de vida infra-humanas que subsistem na América Latina ou em África mas também pela universalização de modos novos de escravização e alienação dos seres humanos que não autorizam mais a ciência pela ciência. 
Esta incomodidade nos reporta a Marx e à ruptura que empreende com uma filosofia especulativa, "elevando a prática ao lugar de legitimação da teoria, em ruptura com uma visão do mundo que em Marx se afirma na coerência de não desligar a sua monumental produção teórica de uma incansável participação na organização esclarecida dos trabalhadores" (Nunes, R., 2007). 
Num pano de fundo das determinações estruturais decorrentes da globalização da economia neoliberal, a escala a que opera a Investigação-Acção tem essa dimensão virtuosa de, cobrindo pouco terreno com muito detalhe, laborar na proximidade do problema, vivendo-o. 
Considerando essa dimensão do lugar, a própria universidade, erigida a fórum privilegiado de debate e produção científica, em que estado se encontra no seu comprometimento com o trabalho de despertar a sensibilidade social e envolvimento dos estudantes nas tarefas (exigentes de um sério trabalho ao nível simbólico) de transformação social? Encravada entre uma produção conceptual, quantas vezes repetitiva e estéril, cristalizada na teoria sobre a teoria, alheada da "coisa em si", e uma "agressividade" interventiva que, com mais frequência do que o desejável, pouco ou nada tem a ver com o favorecimento da consciencialização das populações mais vulneráveis às consequências de uma diferenciação desigual na repartição da riqueza e do conhecimento, para a tomada em mãos da resolução dos problemas que verdadeiramente as afligem mas, quantas vezes, com preocupações academicistas que sobrelevam e encaminham energias e sinergias para o lugar da disputa no âmbito de uma carreira que - como sugere Bruno Latour em Le Métier de Chercheur - eleva a competição a níveis que fazem inveja à que se processa no âmbito das instituições do mercado capitalista. Assoberbada por uma racionalidade burocrática, que também transparece na pressurosa adopção de uma linguagem neoliberal, nem se pergunta: com tanta reflexão, com tanto debate, com tanta produção científica, com artigos produzidos em catadupa, como este curso do mundo? Qual o nível da nossa cumplicidade com este novo darwinismo social que, quotidianamente, consolida estratégias de concentração, nunca vista, da riqueza e do conhecimento produzidos, em meia dúzia de mãos alheias à dor e à humilhação que, num gritante silêncio, avassalam este nosso mundo? 
Em Investigação-Acção a proximidade dos problemas com vista à transformação da realidade, no sentido último da emancipação humana, confronta a investigação sujeita ao cânone dominante com a consideração da implicação, assumindo-se a interferência estrutural do sujeito no objecto da investigação. Sem essa assumpção, as tarefas de objectivação são, elas próprias, prejudicadas pela pretensão de impessoalidade, isto é, da eliminação, por princípio, da interferência da subjectividade. Não a considerando, deixa-se essa variável sem controlo, no risco de a objectualização se substituir ao exercício intersubjectivo da dinâmica de objectivação. 
Aqui se desenha um quadro de hostilidade da Ciência face à Investigação-Acção e o embate com mais de dois mil anos de relação hierárquica entre pensamento e acção. Correspondentemente, a emergência teórica de um terceiro campo, enquadrador da uma relação de interioridade e de simultaneidade que o instrumental metodológico mantém em relação ao objecto, «sendo o tratamento dos dados contemporâneo da acção» (Pourtois, 1981), vem perturbar a bipolaridade que delineia um campo da investigação e um campo da acção. 
É também no contexto dessas dificuldades que se torna compreensível que o sintagma Investigação-Acção tenha caído nos anos de afirmação - fértil em consequências científicas e sociais ? de um pragmatismo assertivo e reducionista, a augurar o esplendor neoliberal. Entretanto, assistimos à sua reemergência, pela constatação de que esta noção continua útil (cada vez mais útil), no combate ao pensamento único da nossa época: a ameaça que representa um pensamento totalitário de "uma ciência sem consciência". 
A dupla ruptura epistemológica (na proposta teórica de Boaventura de Sousa Santos) ? isto é, a ruptura com a ruptura com o senso comum mistificatório, inscrita na preocupação iluminista de um outro projecto de ciência e de sociedade ? com consequências ao nível das mudanças conceptuais e da linguagem que as veicula, na esteira de um senso comum esclarecido, dá conformidade à democratização da construção científica e à alternativa epistemológica em que reverte a aproximação simbiótica teoria-prática em que se revê a Investigação-Acção. Enfim, um espaço de laboração de um senso comum esclarecido que questione e se dispense do novo obscurantismo cientista, promovido por uma linguagem hermética e fria de suporte à manutenção de relações de poder condizentes com os desígnios de uma disciplinarização e sobreespecialização compartimentadoras dos saberes que, paradoxalmente, em si engendram o esquecimento do saber-sabedoria que nos torna melhores (para lembrar E. Morin). 
A multirreferencialidade da Investigação-Acção é uma rechamada constante à questão central da comunicação, no âmbito de um paradigma em que a democratização das relações de poder (que não se transformam por simples declarações de boa vontade) entre diferentes actores, com estatutos diferentes, diferentes competências e diferentes visões do mundo, não pode deixar de considerar as questões do diálogo para a multiplicidade e do "mercado linguístico" (como diria Bourdieu) que o potencia ou despromove. Questões que nos colocam a exigência de vigilância sobre as condições institucionais e situacionais de participação activa que criem e sustentem o diálogo plural e a polifonia (para usar um termo Bakhtiniano). Permanecendo essas condições desigualitárias, compromete-se o diálogo em expansão, entrando-se num círculo compulsivo que, em vez de criar encontro, pode produzir alienação. E, assim, não sair de um quadro agonístico que acaba no silenciamento, não de quem é impedido de falar mas, quantas vezes, de quem não tem como dizer o que poderia ser dito. O que nos coloca face à exigente atenção a uma estética de aproximação que, nesse sentido, é ética. E que reclama de nós «converter o mundo numa questão pessoal, assumir uma espécie de responsabilidade pessoal que cria uma transparência total entra os actos e as suas consequências» (Santos, 2000).

[1] Dispositivo conceptual que Boaventura de Sousa Santos desenvolve, no âmbito dos estudos multiculturais.

Rosa Soares Nunes


  
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Edição:

N.º 174
Ano 17, Janeiro 2008

Autoria:

Rosa Soares Nunes
Professora
Rosa Soares Nunes
Professora

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